Mudanças irrelevantes
Diante das atuais atrocidades aos direitos humanos, a busca para uma saída varia entre os que enxergam os instrumentos jurídicos como uma ferramenta atenuante e os que os veem sem força alguma
Quando, em 20 de novembro de 1989, a Assembleia-Geral das Nações Unidas, reunida em Nova York, aprovou por unanimidade a Convenção Internacional dos Direitos da Criança, em todo o mundo meninos e meninas viviam situações mais que sombrias. Apesar de avanços consideráveis terem sido registrados ao longo das duas décadas anteriores, o cenário dava sinais inquietantes de degradação. “O progresso está em pane”, alertava James Grant, diretor geral do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef).
Com os planos impostos aos países mais pobres pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) e pelo Banco Mundial para ‘purificar’ as economias, os orçamentos destinados a saúde e educação forçaram amputações. A dívida do terceiro mundo tinha alcançado o limiar de US$ 1 trilhão, a ajuda pública para o desenvolvimento não conseguiu passar dos 0,35% do Produto Interno Bruto (PIB) dos países ricos, e a renda média dos Estados mais pobres estava desmoronando.
A adoção da Convenção foi especialmente concebida a fim de reverter esse quadro, em que 14 milhões de crianças com menos de 5 anos de vida morriam no mundo por desnutrição ou atingidas por doenças que já se sabia tratar ou prevenir. Havia carência de um milhão de profissionais da área médica para cuidar de um bilhão de seres humanos, cuja metade nem sequer tinha atingido a idade adulta.
Para celebrar duas décadas de um tratado é necessário questionar seus fundamentos, suas necessidades e analisar seu impacto sobre a realidade.
No final dos anos 1980, a noção de um direito específico voltado para os menores ainda era embrionária. Em alguns países do Ocidente, certos textos jurídicos complexos visavam proteger a criança de violações mais flagrantes, especialmente maus- -tratos e homicídios. Outras leis permitiam que os menores de idade fossem punidos com menos rigidez que os adultos quando cometiam alguma infração, utilizando-se em primeira instância a dimensão educativa da sanção.
A Convenção “de NY” de 1989 trouxe uma orientação radicalmente diferente a esses conjuntos díspares de leis. Repousando sobre fundamentos conceituais inteiramente novos, esta anunciou um princípio geral: todas as decisões relativas aos menores, individuais ou coletivas, deveriam levar em consideração, antes de tudo, o “interesse maior” da criança, em detrimento das prerrogativas dos adultos. Esta é precisamente uma das orientações que a direita americana julgava, e ainda julga, inadmissível.
Em torno desse princípio se organizam três tipos de disposições: todos os países devem fornecer às crianças os serviços sem os quais sua sobrevivência e desenvolvimento são impossíveis (em particular saúde, nutrição e educação); elas têm que ser protegidas da violência, seja do Estado, institucional ou familiar; e todas as administrações públicas e estruturas judiciais precisam ouvir a opinião dos menores sobre as decisões que lhes concernem.
Hoje, quase todos os países do mundo já ratificaram o tratado. Restaram apenas dois: o mais rico, os Estados Unidos – cujo governo, cansado de ser estigmatizado sobre esse assunto, anunciou a intenção de submeter a Convenção ao voto do Congresso; e a Somália, cujo caos político-militar a priva de instância necessária para a ratificação de um tratado em Parlamento.
Mas será que a Convenção provocou mudanças relevantes? Inegáveis progressos têm sido registrados. Os últimos indicadores envolvendo mortalidade infantil falam por si mesmos: a cifra de mortos com menos de 5 anos causada por fatores conjugados, como desnutrição e infecções, caiu para menos de 10 milhões, contra os 14 milhões em 1989; e a educação, principalmente de meninas, melhorou, em particular na África subsaariana.
O direito da criança transformou-se, sobretudo, em uma questão política. As violações mais grosseiras não são mais aceitáveis pela opinião pública mundial. Alguns pontos, como a exploração sexual de menores, tornaram-se até mesmo objeto de escândalo: dezenas de países, como a França e a Alemanha, promulgaram leis extraterritoriais que permitem punir com severidade os clientes de menores prostituídos. Além disso, tolera-se cada vez menos, mesmo em tempos de crise, a venda nos mercados de produtos manufaturados por menores em condições de quase escravidão. E algumas empresas internacionais abraçaram a causa e não vendem nenhuma mercadoria que seja fruto de trabalho infantil. Inúmeras organizações e instituições vêm surgindo na sequência da adoção da Convenção, mobilizando as pessoas sobre esta questão.
Ainda assim, por volta de 200 milhões de crianças são exploradas no trabalho, e cerca da metade em condições que colocam diretamente a saúde e até mesmo sua vida em risco. Entre essas, 70% estão na agricultura, setor considerado um dos mais perigosos para elas: falta proteção contra as máquinas e a inalação de pesticidas – ainda mais tóxicos para elas que para os adultos, já que possuem massa corporal frágil. As crianças também são amplamente utilizadas em minas de ouro, prata, pedras preciosas e metais ferrosos, na indústria têxtil, de tapetes, de compostos eletrônicos, de explosivos, entre outros.
Dentro e fora de casa
Além disso, muitas não são escolarizadas, ou vão à escola durante um período muito reduzido de tempo. Isso significa que não terão acesso ao mínimo de quatro anos de ensino fundamental para não se tornarem “analfabetos funcionais”.
Muitas dessas crianças trabalhadoras vivem nas ruas, expostas a toda sorte de violência, ligadas à extorsão ou ao mundo das drogas. Em muitas cidades da América Latina elas são “varridas” pela polícia, que pretende com isso “limpar” as grandes artérias da cidade. Cerca de um milhão de crianças estão nessa situação em todo o mundo.
Nessa lista terrível não podemos esquecer também a violência que os adultos infligem à geração seguinte e que não conhece fronteira. Essa agressão permeia muitas famílias, classes sociais e atravessa toda a história da humanidade; são aquelas cujos pais espancam e insultam, ou que são forçadas a atos sexuais que as marcarão para sempre.
Isso sem esquecer da violência privada combinada com a do Estado: cerca de 30 países no mundo continuam a aplicar aos menores a pena capital, ou punições como apedrejamento, chicotadas e amputação.
Há, por fim, os conflitos armados, nos quais as crianças acabam feridas, mutiladas ou mortas. A guerra também produz vítimas indiretas, que sucumbem por falta de água, alimentos, medicamentos e cuidados em geral. O caráter devastador da guerra não só priva as crianças de itens necessários como escolas e clínicas, mas dilacera seus entes queridos, família e professores. Como resultado de tantas guerras, parte dessas crianças se torna refugiada. Hoje elas constituem 60% da população desses imensos campos, carentes de financiamentos e sofrendo com as sucessivas reduções de doações pelas agências da ONU, particularmente o Alto Comissariado para Refugiados e o Programa Mundial de Alimentos. Por fim, como se não bastasse, a guerra transforma menores em soldados: guerrilheiros armados e mesmo tropas governamentais recrutam à força crianças e as obrigam a cometer crimes e atos de uma violência inimaginável.
Tendo em vista este quadro de horrores, só nos resta ponderar sobre o que pode fazer a Convenção Internacional dos Direitos da Criança. Para os céticos, o mundo continua, mais que nunca, palco da violação dos direitos dos mais vulneráveis. Já os que apoiam o postulado da necessidade absoluta de instrumentos jurídicos para regulamentar ou atenuar, por pouco que seja, o efeito deletério da violência, verão neste tratado uma formidável ferramenta.
*Claire Brisset é membro do Alto Conselho para População e Família na França.