Mudanças resolverão os problemas de saneamento do Brasil?
Para pesquisadoras da Fiocruz, a questão do saneamento não diz respeito à resistência, nem política partidária ou dicotomias sobre o que é melhor entre o público e o privado, mas de garantia do serviço público e de qualidade como direito humano. Confira no sexto artigo da série sobre o novo marco regulatório do saneamento básico
Universalizar o saneamento significa que todos tenham acesso a ele. E que interessa a cada um que os outros também tenham saneamento. A marca das dificuldades de universalização dos serviços de saneamento está intimamente ligada às desigualdades sociais das cidades brasileiras, às formas com que se organizou a sociedade, na maneira com que se construiu o Estado, marcado pela exploração do trabalho e, principalmente, no controle absoluto das elites sobre o processo de acesso à terra, rural e urbana. A segregação socioespacial reproduz as desigualdades sociais, tensionando as disputas do espaço urbano entre grupos e classes sociais por moradia, serviços, trabalho e recursos. Portanto, o acesso aos serviços urbanos, como o de saneamento básico adequado, permite entender e correlacionar o valor da terra com a universalização dos serviços e o lugar de habitação de moradores de baixa renda, bem como entender a territorialização do processo saúde-doença.
Para reduzir as desigualdades sociais e garantir que todos tenham acesso ao saneamento, sem deixar ninguém para trás, se faz necessário encarar e resolver as perversidades por trás dos dados gerais de cobertura do saneamento básico, que escondem o tamanho do problema e da qualidade dos serviços. O funcionamento é intermitente em quase todos os aglomerados urbanos, desconsiderando os mais desfavorecidos, uma vez que as habitações populares nem sempre possuem capacidade de armazenamento, desenvolvendo manejo pouco seguro da água. Os serviços de saneamento ainda não atendem à real condição de saúde pública dos mais vulneráveis, que na sua maioria estão localizados em regiões não urbanizadas. Medidas poderiam ser adotadas de modo a garantir a saúde e reduzir o número de mortes e o risco de surtos de doenças, com melhorias das condições ambientais e aumento da universalização do acesso ao saneamento.
Os indicadores de acesso à água atuais não refletem exatamente onde estão as desigualdades territoriais e os déficits no Brasil. Esses indicadores não expressam a pouca quantidade de água disponível na maioria dos aglomerados subnormais, que obrigam a mudanças no cotidiano ao impor seus horários para o fornecimento de água. E os inconvenientes dos sistemas de rodízio da oferta de água passam despercebidos devido ao menor poder de pressão, pela ampliação da capacidade de armazenamento de água, pela perfuração de poços particulares ou compra de água no mercado privado de carros-pipa. Sendo assim, os tradicionais índices de cobertura, descritos pelo percentual da população atendida por um determinado serviço, são insuficientes para a apreensão de realidades tão complexas, de modo a embasar diagnósticos dos déficits para formulação racional das políticas de saneamento.
Na região Sudeste do Brasil, em que os indicadores operacionais de saneamento refletem as melhores condições de abastecimento de água e de esgoto coletado e tratado, a população considerada no grupo dos 10% sem abastecimento de água e nos 20% sem esgoto coletado faz parte da configuração de locais de domicílios dos mais pobres e vulneráveis, caracterizada por negros e pardos, mulheres chefes de família, favelados ou moradores de periferias. Os dados oficiais indicam que os marginalizados no processo de universalização estão em territórios onde a universalização dificilmente chegará, pois não fazem parte dos espaços formalmente declarados.
Dados oficiais estatisticamente trabalhados do IBGE e do SINAN estimaram que, , em 2019, para a população residente nas áreas urbanas, existiam cerca de 16 milhões de pessoas sem abastecimento de água canalizada, 39 milhões de pessoas sem esgoto coletado, por rede ou fossa séptica, e 4,9 milhões sem coleta de lixo. Portanto, falta saneamento básico principalmente para a população mais pobre, e também nas áreas rurais, onde a cobertura é muito baixa. Assim, as desigualdades no acesso explicitam o racismo estrutural marcado pelo acesso diferenciado entre as classes sociais mais pobres, onde a mulher em sua maioria é responsável pela família, e pessoas pardas e negras são a maioria, com uma disparidade de ordem socioeconômica e racial muito marcada.
O acesso ao abastecimento de água por rede, que garante uma melhor qualidade no serviço, mostra essa diferença: 85% dos brancos têm esse serviço, enquanto na população preta e parda são 77%. A diferença representa 2 milhões de pessoas excluídas da universalização do saneamento, segundo dados autodeclarados no IBGE e dados descritos, mas não auditados, do SINAN. Portanto, a instalação de redes de distribuição de água sem um serviço adequado para o seu gerenciamento pode até piorar as condições de saúde, o que geralmente acontece nas áreas de aglomerados subnormais, cuja distribuição de água é providenciada por conta do próprio morador.
As desigualdades regionais no Brasil, quanto ao acesso ao saneamento básico adequado, refletem como as concessionárias avaliam o mercado da privatização, ou seja, elas agem como se esse modelo privatista realmente fosse resolver os problemas da falta de universalização do saneamento. As regiões mais bem servidas deveriam ser as últimas a serem contempladas com investimentos massivos. Dessa forma, deveria começar pela região Norte. Segundo dados do SNIS de 2018, a região Norte apresenta um déficit de 42,9% de abastecimento de água, mesmo sendo a região com maior disponibilidade hídrica do país. Depois a região Nordeste (déficit de 25,8%), seguida da Centro-Oeste (11%) e Sul (9,8%). O Sudeste (com apenas 9% de déficit) deveria ser o último local, contudo está sendo exatamente o contrário. O interesse privado começou onde existe rede coletora instalada, à custa dos recursos públicos previamente investidos, onde está o “filé”, ou seja, a parte que dará lucro certo e garantido. Contudo, os mapas do déficit de cobertura não refletem necessariamente o déficit de qualidade. O percentual de moradores em domicílios particulares permanentes urbanos sem saneamento básico adequado, considerando água, esgoto e lixo simultaneamente, alcançava 59,5% na região Norte; na região Centro-Oeste 53,1%; na região Nordeste 44,3%; na região Sul 21%; e na região Sudeste, o déficit de saneamento era de apenas 10,7%.
Outro dado que demonstra as desigualdades da universalização do saneamento é a renda per capita: famílias com renda acima de dez salários mínimos têm cobertura de água 50% maior, e na coleta de esgoto quase 100% maior. Portanto, os investimentos, sejam públicos ou privados, não conseguem anular os efeitos da concentração de renda, visto que as políticas públicas não estão voltadas aos mais necessitados. Segundo o PLANSAB, deveríamos alcançar a universalização em 2033, mas como os investimentos não estão sendo feitos, essa projeção foi adiada para 2060. E não é só dinheiro que falta, falta pensar fora da economia de escala. Grandes sistemas não conseguem atingir a todos, principalmente os que moram em locais em que a urbanização é diferenciada, como as favelas, ou onde a densidade habitacional é baixa, como as áreas rurais. Para essa população que representa os setores que menos têm saneamento, são necessários modelos e tecnologias que se adaptem à sua realidade, e não o contrário.
Promessas na mudança do marco legal do saneamento
O projeto de lei n. 4.162, apresentado em 2019, votado na Câmara dos Deputados em dezembro de 2019, no apagar das luzes do ano, culminou com a aprovação da Lei 14.026/2020 durante a pandemia. Ele veio apresentado como o novo marco do saneamento. Porém, a Lei 11.445/2007 é que foi o grande marco do saneamento, ocorre que o atual governo, defensor da privatização do setor, divulga o feito como um novo marco legal. Essa nova lei do saneamento favorece a entrada da iniciativa privada no setor com mais força, de forma hegemônica, ou seja, um setor usado por muitos segmentos e controlado por poucos, visto que as condições impostas desfavorecem o setor público e não prevê a participação social no controle nem no desenvolvimento dos projetos. Sendo colocadas as mesmas regras para o setor público participar do processo, os pequenos municípios não conseguirão competir por não possuírem recursos para pleitear recursos de financiamento, com garantias.
Assim, em processos que privilegiam o setor privado, populações de baixa renda serão discriminadas ou mesmo desconsideradas no acesso aos serviços de qualidade, sem as garantias da participação social na tomada de decisões. E como os pequenos municípios não são atrativos para investimentos pelo setor privado, que pela lei de mercado buscam por lucratividade, então serão regiões com investimentos inibidos, o que aumenta ainda mais as exclusões sociais, as desigualdades e os problemas de saúde. Portanto, não se trata de uma questão de resistência, nem política partidária, nem de dicotomias entre o que é melhor entre o público e o privado. Mas de garantias do caráter de serviço público do saneamento de interesse difuso. Ou seja, o modelo privatista dessa legislação tende a excluir dos investimentos cerca de 5 mil municípios, comprometendo as condições de vida de sua população.
Além disso, devem-se considerar os prazos longos dos contratos com empresas privadas, e com favorecimento de financiamento público para garantia dos investimentos necessários. Assim, terá investimento do dinheiro público, só que administrado por empresas privadas, com taxas de juros baixíssimas. E os municípios, que são os titulares, ficam reféns e comprometidos a dar lucros às empresas privadas, o que significa deixar no Estado o custo de investimento e transferir o lucro final à iniciativa privada.
Como nesse modelo as empresas devem comprovar viabilidade econômico-financeira, ou seja, devem demonstrar que conseguem se manter por conta própria, elas apenas conseguem dar conta desse compromisso quando exploram locais que pagam e dão lucro aos acionistas, dentro da lógica do mercado. Como uma empresa poderá ter lucro em locais menos favoráveis ao pagamento de tarifas? Em se tratando de um setor estratégico à vida, um modelo privatista coloca em risco a vida de milhões de pessoas, cada vez mais marginalizadas na sociedade capitalista. E os serviços essenciais de água e saneamento, relacionados com a saúde pública e com o direito humano fundamental, tornam-se comprometidos no modelo privado, já que a lógica de mercado não tem obrigação de considerá-los. Essa mudança na legislação do saneamento torna obrigatória a abertura de licitação, envolvendo empresas públicas e privadas, contudo não obriga nenhum compromisso social, próprios e inerentes às empresas públicas. Ou seja, as regras privadas visam ao lucro, e as tarifas sociais ficam sem garantias e sem regras, e por serem decisões políticas, não são suportadas dentro de um modelo empresarial.
Embora pareça que na lógica privatista o estabelecimento nos contratos e de metas de universalização sejam cumpridas até 2033, com cobertura de 99% para o fornecimento de água potável e de 90% para coleta e tratamento de esgoto, sabe-se que muitas concessionárias podem, ao longo do tempo, abandonar os pequenos municípios e os municípios mais pobres, que não são lucrativos. Para não serem punidas, as empresas podem ocasionar o cancelamento dos contratos, caso não cumpram essas metas. Ou mesmo a prorrogação dos prazos e reajustes de contrato com aumento das tarifas, no caso de riscos à lucratividade.
Água e saneamento são direitos humanos fundamentais
A principal reivindicação é que o saneamento seja para todos, mas infelizmente a mudança no marco do saneamento básico não garante isso, pois a universalização só é possível com recursos públicos. A água é um recurso natural não-renovável, por isso não pode ser tratada como mercadoria, com exploração de águas subterrâneas, privatização de fontes de água e exploração dos mananciais. Como um setor estratégico relacionado ao direito fundamental humano, a solução para ampliar o tratamento de esgoto e o abastecimento de água deve passar por ampliação e qualificação do investimento público e das políticas públicas que possam garantir o saneamento ambiental. Ou seja, o saneamento ambiental é uma ferramenta para reduzir a desigualdade e um caminho para uma vida mais saudável para todos. Desta forma, é preciso que o dinheiro da população seja investido para beneficiar a própria população.
A Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE) prevê, para os países membros, o acesso à água de boa qualidade e à rede coletora de esgoto, com garantia ampla para a população e o ambiente. Isso significa adequação da infraestrutura relacionada ao saneamento, considerando as alterações climáticas associadas ao aquecimento global, a aplicação de recursos necessários para despoluir nascentes, evitando transtornos decorrentes de secas e inundações, e o emprego de técnicas apropriadas ao tratamento de efluentes. A estratégia ambiental prevista pela OCDE é um desafio para reforçar as várias ligações entre condições sociais e ambientais, com o objetivo de valorizar a vida humana, a equidade ambiental, o emprego, o acesso à informação, à participação pública no processo de decisão, acesso à justiça em questões ambientais e educação ambiental. Assim se faz necessário todo um processo de reabilitação urbana, que considere desde a intervenção na malha viária, passando pela requalificação da moradia e indo até a reformatação do modus operandi dos serviços, seja internamente ao setor de saneamento, seja em relação aos outros setores afins, especialmente aos serviços de saúde.
O setor de saúde, em vez de usar metodologias que consideram a presença/ausência de cobertura de saneamento, deveria atentar para abordagens mais abrangentes, de modo a garantir a prevenção, a proteção e a promoção da saúde. Por isso, no caso do saneamento, é imprescindível o uso de modelos que orientem e avaliem a qualidade dos serviços prestados, os resultados alcançados e os efeitos na saúde sobre a percepção dos sujeitos.
Portanto, tratar a água como uma mercadoria, em que as pessoas só terão acesso mediante pagamento, ou se cumprirem requisitos para serem liberadas do pagamento, gera injustiça social. Somos um país que tem 52 milhões de pessoas abaixo da linha da pobreza, número que tende a aumentar diante do desemprego e da recessão prevista por causa da pandemia de Covid-19. A garantia ao acesso aos serviços básicos deveria considerar e contemplar a todos, assim como considerar soluções mais solidárias e menos mercadológicas. Por isso não são simplesmente leis que irão resolver os problemas de saneamento no Brasil. Dadas as características do déficit e o modelo de intervenção setorial, o “novo marco” do saneamento só vai contribuir para que a universalização seja continuamente adiada.
Adriana Sotero Martins e Maria José Salles são pesquisadoras do Departamento de Saneamento e Saúde Ambiental da Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP) da Fiocruz.
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Saneamento básico é condição mínima de dignidade e saúde. Parceria do Diplo Brasil com o Observatório Educador Ambiental Moema Viezzer, esta série visa a colaborar com o debate sobre o novo marco legal do saneamento básico. Especialistas de diversas áreas evidenciam as implicações sociais, de saúde pública, jurídicas, econômicas e ambientais da gestão de água, esgoto e destinação do lixo urbano. Neste momento em que a pandemia ressalta a crise civilizatória que vivemos, o acesso à informação é essencial à transição para sociedades sustentáveis.