Mudar mentalidades e práticas: um imperativo
Precisamos pôr em questão a medida de valor da riqueza comumente usada. Afinal, o Produto Interno Bruto é uma degradação, uma elegia à destruição ambiental e social que a mercantilização de tudo provoca. Exclui quem não está no mercado e aquilo que não tem propósitos comerciais
A crise climática é a consequência mais evidente, mais imediata e mais ameaçadora do modelo industrial, produtivista e consumista em que se baseia a nossa economia e o modo de vida que levamos.
Não se trata de algo conjuntural, mas do esgotamento de um sistema que tem como motor o ter e o acumular. Um desenvolvimento que tem como pressuposto básico o crescer mais, sem parar, sem respeitar limites naturais. Tudo para concentrar riquezas, não importando a destruição ambiental que possa haver, nem que essa geração de riqueza seja, ao mesmo tempo, geração de pobreza, exclusão social, desigualdades de todo tipo.
O aquecimento global e a crise do clima são expressões de uma inviabilidade intrínseca a esse desenvolvimento que, tanto do ponto de vista ambiental como do social, não pode se tornar sustentável. Não importa o lugar que ocupamos neste planeta único e finito, o fato é que precisamos mudar. Está em questão a integridade da vida, sua visceral relação com o meio ambiente, e, portanto, da humanidade inteira.
A crise está aí. Não a vê quem não quer. Não adianta pensar que dá para se safar, que não é com a gente. O clima, como bem comum, tem a virtude de ser cosmopolita, para o bem e para o mal. A mudança climática resultante do tipo de economia que temos, em especial sua base energética, afeta e afetará particularmente os 80% da humanidade que pouco ou nada receberam desse modelo de desenvolvimento. Ouso dizer que estamos condenando a esmagadora maioria a ser refugiada ambiental sem eira nem beira, à deriva, como os barcos de migrantes clandestinos no Caribe e no Mediterrâneo ou a espantosa expansão de favelas nas grandes cidades já anunciam.
A lógica do desenvolvimento, gestada com a Revolução Industrial, tornou-se o motor econômico, político e cultural do mundo nos últimos séculos. Não se trata mais de um embate nos velhos termos – capitalismo vesus socialismo –, no marco da civilização industrial e seus desdobramentos. Estamos diante da crise da própria civilização industrial e de seus modelos de organização econômica e política – a dominante capitalista e a desafiante e subalterna socialista – para a sociedade. São os fundamentos desse tipo de civilização que se esgotaram. Literalmente, derreteram, foram consumidos pelas suas próprias contradições. E ameaçam o planeta inteiro.
Nova civilização, novo paradigma
Aqui e agora precisamos transformar nossos ideais, modos de pensar e os sistemas políticos, econômicos e técnicos que sustentam o desenvolvimento. A ruptura tem de ser total, de ponta-cabeça. Passar de uma civilização industrial e produtivista para uma biocivilização, comprometida com a vida no planeta, implica verdadeira revolução.
A ruptura é espinhosa. O desenvolvimento está incrustado na gente, é um valor. Desenvolvimento lembra imediatamente progresso. E quem não quer progresso? O problema é que deixamos de discutir a qualidade de vida que nos traz o progresso.
Quanto de lixo, poluição e destruição estão associados a esse progresso?
Basta lembrar o carro, um dos protótipos atuais do modelo de desenvolvimento. As nossas cidades são desenhadas para eles e não para nós, cidadãs e cidadãos. E, no entanto, quase não andamos, por conta dos monumentais engarrafamentos.
Será que para viver bem precisamos sempre de mais? Ter mais e mais bens, trocados sempre porque estragam logo (feitos para não durar) ou pela compulsão, que o ideal nos impõe, de adquirir o último modelo. Isso só gera destruição em todo ciclo, da extração das matérias-primas ao lixão onde jogamos os bens em desuso. Já paramos para pensar quem está ganhando nessa história?
Muita gente tem seus direitos econômicos, sociais, culturais e ambientais não atendidos. Grupos e povos inteiros estão condenados à exclusão, miséria, fome, pobreza, privações de todo tipo. Mas por quem e como isso é gerado?
Quanto mais se desenvolve o mundo na base desse modelo – mais evidente com a atual globalização –, mais e mais desigualdade se gera. Apenas 20% da humanidade consome mais de 80% dos recursos naturais e dos bens e serviços produzidos por esse sistema. E se tal padrão de consumo fosse generalizado, faltaria planeta, faltariam recursos naturais para atender a todos os seres humanos!
Os ecologistas criaram a “pegada ecológica” (footprint) exatamente para avaliar essa apropriação indevida da natureza pelas camadas privilegiadas da população e pelos países mais desenvolvidos. Para viver na média de um americano, a humanidade precisaria de cerca de cinco planetas. Por isso, mudar é uma condição sine qua non.
Precisamos superar a ideologia do progresso e voltar a colocar no centro a justiça social e ambiental com a ideia de bem viver para todas as pessoas. Isso enquanto ainda é tempo, pois se não mudarmos já, amanhã será tarde.
Comecemos disputando os sentidos e significados do desenvolvimento que nos são dados como salvação. Há uma ditadura de pensamento econômico no debate e nas decisões políticas, como se nada pudesse ser feito sem crescimento econômico.
Considerações ambientais e sociais são custos na visão economicista dominante e não bases em que assentam as próprias sociedades. Repolitizar tudo é a palavra.
Trata-se de submeter o econômico e o mercado, a ciência e as técnicas, as estratégias de desenvolvimento a uma filosofia de vida que vê os seres humanos como parte intrínseca do meio natural e em íntima interação com todos os seres vivos, em sua biodiversidade, seus territórios.
Necessitamos de novos paradigmas (ético, analítico e estratégico) para iniciarmos aqui e agora a mudança. Precisamos de uma revolução cultural, como diria nosso Betinho, que valorize o lugar da vida, da natureza, das ideias, de nossa enorme capacidade coletiva de criar, de inventar. Propomos um reencontro entre nós mesmos, seres humanos, com a diversidade do que somos e do que sabemos fazer e criar. Mas nosso reencontro também precisa ser com o meio ambiente do qual sugamos a vida e do qual somos parte integrante.
Trata-se de criar um grande movimento de ideias, uma espécie de religião, onde cremos e agimos com determinação. Isso pode fazer a diferença hoje e balançar a política – a única arena possível para enfrentar e levar a cabo nossa responsabilidade coletiva diante do desastre que se anuncia –, do local, onde vivemos, ao mundial. Não dá para esperar! A Conferência sobre o Clima, em Copenhague, já está quase se realizando. Pressionemos nossos negociadores para que assumam a responsabilidade republicana e cidadã que deles esperamos!
Mas o fundamental é estarmos convencidos de que outro mundo é possível. A dúvida só retarda a ação efetiva. Pior, permite que sejamos presas fáceis de um falso discurso sobre a necessidade de agredir o meio ambiente para desenvolver, para resolver nossos gritantes problemas sociais.
Uma coisa é encarar nossas necessidades inadiáveis, outra é confundir isso com apoio aos grandes conglomerados econômicos e financeiros para que tratem do problema. Isso vai das grandes hidroelétricas ao agrocombustível, do desmatamento para criação de bois e dos grandes desertos verdes para celulose, ao apoio às grandes empreiteiras porque criam empregos.
Nenhuma ação política de mudança poderá acontecer se nós, cidadãs e cidadãos, não acreditarmos que ela pode e precisa acontecer, e que queremos que aconteça. Está em nossas mãos a possibilidade de o Brasil agir diferentemente, nós que somos detentores de um dos maiores patrimônios naturais da humanidade.
Bases para começar
Compartir o mundo, esse é o segredo simples de uma nova consciência ética e cidadã, de dimensões planetárias. Precisamos compartir entre nós e com gerações futuras aquilo que generosamente recebemos, como dom, da própria natureza.
Precisamos compartir, também, o que produzimos, respeitando a vida e o meio ambiente a partir do gênio coletivo – ou alguém tem dúvida de que o conhecimento humano é algo essencialmente coletivo, produzido na interação e troca que a linguagem e a inteligência nos permitem? Compartir significa se solidarizar e ser responsável. Compartir quer dizer reconhecer nos outros os mesmos direitos que queremos para nós mesmos.
É fundamental recolocar no centro os bens comuns, aqueles que são condição de vida para todos os seres humanos: em primeiro lugar a água, o ar que respiramos, o clima, a biodiversidade, os enormes recursos que a natureza contém, enfim, a bioesfera como um sistema único em sua diversidade. Mas também são fundamentais os bens comuns criados ao longo da história humana: as línguas, o canto e a música, a arte e a cultura em geral, assim como os conhecimentos, a ciência e as técnicas, as filosofias. A preservação, o fortalecimento e o uso responsável desses bens é condição de vida em sociedade e de uma relação saudável, justa e sustentável com a natureza. Uma tarefa urgente e incontornável é desprivatizar e desmercantilizar os bens comuns – hoje, uma das maiores ameaças produzidas pelo modelo de desenvolvimento que temos e, portanto, um dos fatores determinantes do aquecimento global.
Precisamos potenciar as conquistas da democracia como método de transformação e como modus operandi de uma sociedade baseada na justiça social e ambiental. Ampliar o espaço da política sobre a economia, o espaço do público sobre o privado, do poder cidadão sobre o poder do dinheiro e das empresas. A democracia é essencial para reposicionar a questão ambiental como uma questão de justiça social, desta e das futuras gerações.
Quando falamos em sociedades sustentáveis, em vez de desenvolvimento sustentável, estamos sobrepondo o direito coletivo cidadão – de ter comida, roupa, casa, saúde, cultura e felicidade – sobre o direito individual e privado de acumular sem limites. A democracia traz o direito e a responsabilidade cidadã de definir o tipo de justiça social e ambiental que a sociedade pode garantir para todos os seus integrantes.
Novamente, o problema está no modelo dominante, mas a possibilidade de mudança está nas mãos da cidadania ativa. Mais do que nos desiludir pelo que fazem nossos representantes e os responsáveis pelas formulação e gestão das políticas, precisamos exercer nossa capacidade de constituintes do poder político e dos governos.
São mobilizações vindas do seio da sociedade em ação que levam a mudanças. Diante da mídia, das poderosas empresas, de suas estruturas que a tudo parecem dominar, precisamos inventar modos cidadãos de controle social e público que as constranjam, inibam e obriguem a mudar estratégias e práticas. Afinal, empresa nenhuma resiste a um boicote cidadão.
Trilhas a transformar
Precisamos pôr em questão a medida de valor da riqueza comumente usada. Afinal, o que é a riqueza? O Produto Interno Bruto (PIB) é uma degradação, uma elegia à destruição ambiental e social que a mercantilização de tudo provoca. Exclui quem não está no mercado e o que não se faz com o propósito de vender. Não considera geração de valor o trabalho doméstico, o cuidado com a própria reprodução da vida humana. Trata-se de uma medida do que se ganha e não do que a humanidade perde. No PIB está embutido muito da destruição ambiental e da injustiça social que vemos.
Já existem contestações sobre a medida da riqueza e a hegemonia do PIB. O bem viver aponta outra base para se considerar a riqueza como índices de felicidade humana ou de bem-estar bruto. O Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), proposto pelo Programa das Nações Unidas pelo Desenvolvimento (PNUD), vai no sentido da contestação da hegemonia do caráter econômico e financeiro do PIB, mas ainda não é uma ruptura, pois o próprio PIB per capita é ainda um de seus componentes. Além do mais, o IDH ignora o impacto sobre os bens comuns.
Qualquer nova medida de valor, capaz de apontar um mundo mais igualitário e diverso, com justiça social e ambiental, deve levar em conta a interação entre os seres humanos, a comunidade, vizinhos(as) e amigos(as). Também deve considerar a experiência mais direta com a natureza. Indispensável é sentir-se bem, a realização pessoal e coletiva, a criação e a possibilidade de participar para além da acumulação de bens e patrimônios materiais.
Um segundo movimento a registrar aqui é o da economia solidária. Trata-se, fundamentalmente, de modos de organização social e econômica, baseados na cooperação e responsabilidade social, que visam servir à vida e não à acumulação. O compartir vem junto com o repartir no ato mesmo de constituir um empreendimento econômico solidário, em qualquer setor de atividade humana. Está aí um princípio revolucionário, na prática, de construção de vida e sociedade sustentáveis.
No centro das iniciativas e da rede de economia solidária está a busca do reequilíbrio dos sistemas bioecológico, socioeconômico e do técnico e científico, na base de qualquer atividade humana de produção de bens e serviços. Ainda cabe registrar aqui toda uma nova tendência de reciclar e conservar os bens, mais que produzir novos a se jogar fora. São raízes de uma nova economia, seja na relação entre os seres humanos com a natureza, seja na relação entre eles mesmos ao produzir, repartir e consumir os bens.
Deve-se inventar formas de produzir riquezas menos materializadas. A economia da informação e do conhecimento, hoje com grande impacto nas nossas vidas, pode ir nesse sentido se não for presa dos grandes conglomerados capitalistas. Produzir mais riqueza, mais felicidade, sem usar destrutivamente a natureza, é o que mais precisamos.
Um outro aspecto fundamental é a relocalização e a reterritorialização do poder e das economias. Elas partem do reconhecimento do bem comum maior, o planeta, a biosfera, a biodiversidade, com o ar, os oceanos e o clima. Mas reconhecem também as potencialidades e os limites diversos de cada canto do planeta, de cada sociedade humana aí ancorada. Todos e todas dependemos uns dos outros, devemos buscar o possível e decidir por nós mesmos(as) segundo as possibilidades do lugar que ocupamos na crosta terrestre. Ninguém tem o direito de nos tirar a capacidade de decidir por nós mesmos(as), impondo soluções de fora. Claro que nós, também, não temos o direito de decidir ignorando as consequências sobre todos os outros.
Localizar e territorializar é nos reencontrarmos com nós mesmos e com o meio ambiente. Precisamos de formas de organização que nos permitam internalizar tudo o que pode ser internalizado, produzindo aqui para consumir aqui, decidindo aqui o que concerne aos cidadãos e às cidadãs daqui, tendo a cultura e a identidade que nos convêm.
Tudo o que diz respeito ao bem comum coletivo maior, tudo o que precisamos e não temos, tudo o que temos a mais e outros têm pouco, tudo isso deve ser organizado e decidido em instância maior, seja nacional, regional ou mundial.
O que não pode acontecer é a imposição de formas de exploração e uso dos recursos como até aqui, sempre determinados de forma colonial, de fora, seja dos centros econômicos mundiais, seja dos polos industriais no interior dos países, sem considerar as necessidades dos grupos humanos locais envolvidos.
Para além de conclusões
Está evidente nesse percurso que faço o esforço de libertação. Sim, libertação de dogmas, de ideais e valores, de estruturas de pensar e agir. Ciente de minha responsabilidade como diretor geral do Ibase, quero instigar, motivar, desencadear um poderoso movimento de mudança interna que nos leve a ousadas propostas e novas práticas. O Ibase precisa ser participante ativo na construção de uma nova agenda, dentro e fora do Brasil, agenda da cidadania por um mundo justo e diverso, com justiça social e ambiental. Radicalmente comprometidos com a democracia como estratégia de mudança social, devemos tomar o desafio de uma nova agenda para o Brasil e o mundo como a agenda da própria cidadania.
A questão do aquecimento global e da mudança climática e, junto com ela, a problematização do desenvolvimento, exige de nós uma reflexão e uma prática capazes de fazer emergir na sociedade uma nova visão sobre as bases que precisamos construir para atender às nossas necessidades e ao que a cidadania planetária espera de nós. Por pequena que seja nossa contribuição, como sempre digo, não podemos esquecer que, em nossa pequenez de pulga que pica e incomoda, podemos fazer a diferença no modo de andar do elefante político e econômico, o Estado e a economia. Comecemos imaginando o quê e como, um ato libertário nele mesmo.
*Cândido Grzybowski é sociólogo e diretor do Ibase, Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas.