Muito além da corrupção
Na trajetória de formação, desenvolvimento e expansão da construção pesada foram articulados os laços políticos e econômicos entre as grandes empreiteiras e o Estado, os quais atravessam todo o aparelho estatal, formando uma complexa rede de poder e influênciaRegina Camargos
Em artigo no jornal Valor Econômico (18 mar. 2016), o economista Naércio Menezes enumerou alguns argumentos para explicar “por que a economia travou”. Um desses motivos era que a Operação Lava Jato havia colocado em xeque o modus operandi do capitalismo à brasileira, cujo fundamento reside em relações pouco transparentes entre o Estado e certos segmentos empresariais, sendo a construção pesada um dos mais importantes.
Tais relações se baseiam numa permanente “troca de favores” em que ao Estado cabe a instalação de políticas e projetos que resultem na criação de mercados de atuação para as empresas e, a estas, a “devolução” dos favores recebidos por meio do financiamento às campanhas eleitorais de políticos de todo o espectro partidário.
É esse tipo de relacionamento que a Lava Jato desestruturou, não se sabe ainda se temporária ou permanentemente, caso seus desdobramentos sigam além de operações espetaculares e condenações seletivas e, de fato, ensejem a instituição de novos padrões de relacionamento entre o público e o privado no país. A ver.
Por enquanto, afora a criminalização inédita de altos executivos de megaempresas e de políticos de ampla visibilidade nacional, especialmente os ligados ao PT, os estragos da Lava Jato recaem sobre toda a ampla cadeia produtiva da grande engenharia nacional, resultando na completa paralisia ou quebra de empresas, suspensão de empreendimentos que já consumiram fortunas de recursos públicos e paralisia de investimentos que respondem por expressiva parcela do PIB. Esse é o resultado mais visível e imediato da desestruturação de um pacto político e econômico que vigorou por quase setenta anos no país entre o Estado brasileiro e as grandes empreiteiras.
Desenvolvimento da grande engenharia brasileira. Um caso paradigmático das relações entre Estado e capital
A grande engenharia, ao lado dos bancos, é um dos núcleos do moderno capitalismo brasileiro, cujas bases foram constituídas na década de 1950. Trata-se de um setor em que a origem do capital é praticamente 100% nacional, fortemente oligopolizado, que aufere faturamento invejável comparativamente aos demais setores da economia nacional, opera com alta tecnologia reconhecida mundialmente e há cerca de quatro décadas exporta serviços para vários países.
O Estado desempenhou um papel crucial na acumulação de capital do setor de construção pesada no país ao tomar para si a tarefa da montagem da infraestrutura econômica a partir da segunda metade da década de 1940. O imenso volume de investimento público carreado para a construção de estradas, hidrelétricas e obras de infraestrutura urbana traduziu-se num mercado cativo para as empreiteiras brasileiras, o qual se expandiu até meados dos anos 1970.
O impulso dado pelo Estado à construção pesada não se restringiu ao nível econômico. A elaboração da legislação sobre concorrências públicas assegurou a reserva de mercado institucional para as empresas de engenharia nacionais, praticamente eliminando a concorrência com grandes companhias de engenharia pesada que atuavam no país desde os anos 1920.
A legislação sobre concorrências também teve o papel de sacramentar a divisão de espaços de atuação entre grandes, pequenas e médias empreiteiras, e assim resguardar os principais filões das obras públicas para um seleto grupo de empresas – as chamadas “cinco irmãs” da construção pesada, a saber, Andrade Gutierrez, Norberto Odebrecht, Mendes Júnior, Camargo Corrêa e OAS.
O elemento que garantiu a profunda imbricação entre o setor de construção pesada e o Estado foi a estatização da demanda. Até meados dos anos 1940, a construção de obras de infraestrutura estava a cargo das empresas de outros setores produtivos, que as demandavam às empreiteiras para satisfazer as necessidades localizadas de seus empreendimentos.
As primeiras obras de infraestrutura foram executadas por empresas multinacionais de construção pesada, mas, a partir do momento em que o Estado assumiu a tarefa de constituir a infraestrutura, a demanda do setor de construção pesada deixou de ser privada e tornou-se pública. O Estado passou a ser o principal demandante de grandes obras, planejando os empreendimentos e mobilizando os recursos financeiros para executá-los.
Inicialmente, o Estado era o responsável pela construção propriamente dita, por meio de órgãos como o Dnos e o Dner. As firmas nacionais de engenharia recém-criadas atuavam como subempreiteiras dos órgãos públicos, realizando tarefas de menor complexidade técnica. Essa experiência foi fundamental para o aprimoramento técnico das empreiteiras brasileiras, pois permitiu a aproximação das empresas com os gestores públicos e propiciou-lhes um importante aprendizado com as grandes firmas estrangeiras de construção que atuavam no país.
Nessa primeira fase, quando o Estado foi ao mesmo tempo demandante e construtor, o mercado para as empresas nacionais de construção pesada ainda era bastante restrito. O grande salto do setor ocorreu em 1953, quando o Dner foi transformado em autarquia e passou por uma profunda reforma institucional e administrativa, adquirindo autonomia gerencial e financeira para alavancar uma nova fase da construção rodoviária.
Com o governo de Juscelino Kubitschek, a construção rodoviária passou a ter um caráter de integração nacional. Deliberadamente, o Estado se retirou da atividade construtora e a transferiu integralmente à iniciativa privada. Para as empreiteiras que já haviam participado da construção de estradas em regime de subempreitada – entre elas, Camargo Corrêa e Andrade Gutierrez –, a nova fase se iniciou sob o signo da reserva de mercado. Essas empresas asseguraram por praticamente vinte anos o principal filão de obras públicas do país, o qual permitiu sua expansão econômica e a ampliação de seu mercado de atuação para além dos limites estaduais e regionais.
A construção rodoviária foi o esteio da expansão do setor de construção pesada até meados da década de 1970, quando o II Plano Nacional de Desenvolvimento (PND) inaugurou uma nova etapa do desenvolvimento industrial no país. Para a construção pesada, o II PND criou mercados inteiramente novos, como a construção de usinas atômicas e siderúrgicas.
Sem dúvida, porém, a construção das grandes hidrelétricas, como Itaipu, Tucuruí e Itaparica, foi o marco da expansão da construção pesada no período. A criação da holding Eletrobras, antes do golpe civil-militar de 1964, foi a iniciativa institucional que permitiu o novo salto qualitativo da construção pesada. A exemplo do ocorrido com a criação do Dner, nos anos 1950, a Eletrobras inaugurou um novo modelo institucional do setor elétrico brasileiro, baseado na centralização de recursos financeiros e no planejamento estratégico das obras e investimentos.
Os anos 1970 marcaram ainda o movimento de transnacionalização da grande engenharia brasileira. Nesse movimento, o Estado também teve um papel fundamental de articulação diplomática e financeira da inserção internacional das empreiteiras. A aventura internacional contou com recursos captados pelo governo brasileiro junto a organismos internacionais, ou seja, por meio do endividamento público promoveu-se a acumulação e a projeção internacional de empresas privadas.
O fim do regime militar e a estagnação da economia brasileira entre o fim da década de 1980 e a década de 1990, especialmente no segmento de infraestrutura, frearam o ritmo de expansão da construção pesada brasileira. Entretanto, as empreiteiras já haviam se tornado holdings, e seus negócios se expandiram para o rentável mercado de construção de shoppings centers, cujo boom teve início nesse período, e também para o agronegócio. Além disso, as obras internacionais asseguravam um bom retorno às empresas, em particular nos países árabes.
A retomada das grandes obras de engenharia coincidiria com expansão do setor de petróleo e gás e de energia elétrica nos dois mandatos do ex-presidente Lula, no âmbito do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) e do plano de investimentos da Petrobras com a descoberta de novos campos e, posteriormente, do pré-sal. A engenharia pesada brasileira revivia seus momentos de auge e atualizava seus laços políticos com a nova burocracia estatal guindada ao poder pelos governos do PT, potencializada, entretanto, por outros laços historicamente construídos havia muitas décadas.
A rápida descrição dos momentos relevantes para o desenvolvimento da construção pesada no Brasil deixa claro o papel do Estado no processo de acumulação capitalista do setor. Podemos dizer que sem a intervenção do Estado não seria possível pensar o setor tal como ele existe hoje em dia. Na trajetória de formação, desenvolvimento e expansão da construção pesada foram articulados os laços políticos e econômicos entre as grandes empreiteiras e o Estado, os quais atravessam todo o aparelho estatal, formando uma complexa rede de poder e influência.
Uma dinâmica capitalista peculiar
O fenômeno da estatização da demanda foi o elemento fundador do padrão de relacionamento entre empreiteiros e Estado no Brasil, na medida em que estabeleceu uma situação de interdependência, de caráter funcional, que se afigura, do lado das empresas, como dependência para com o investimento público – em termos de volume e composição – e, do lado do Estado, como dependência em relação às empresas que dominam o conhecimento técnico do processo construtivo na grande engenharia. Podemos falar de um oligopólio politicamente induzido na construção pesada, por meio de toda sorte de ações de vários órgãos do aparelho de Estado em favor desse setor, durante décadas.
No entanto, a estatização da demanda teve outros desdobramentos, pois interferiu na própria dinâmica de formação dos preços e dos lucros na construção pesada e na concorrência intercapitalista setorial.
Essas variáveis-chave da dinâmica setorial foram determinadas pelo mecanismo da concorrência pública, o qual, por sua vez, é regido por normas elaboradas pelo Poder Legislativo. Tal mecanismo distorceu a formação dos preços das obras públicas, que passaram a ser informados pela capacidade das empreiteiras de embutir, nos custos das obras, valores superiores aos efetivos custos de produção segundo critérios estritamente políticos. Os lucros, por sua vez, definiram-se ao longo da execução das obras, fixando-se em patamares tanto mais elevados conforme o volume de obras – necessárias e desnecessárias – que a empreiteira consegue introduzir no projeto original da obra. Além disso, a concorrência intercapitalista é mediada e arbitrada pelo próprio Estado, no interior de seu aparelho burocrático, tornando-a hiperpolitizada.
Por fim, a estatização da demanda e a consequente interação política entre Estado e setor de construção pesada levaram, no limite, as grandes empreiteiras a poder até mesmo criar sua própria demanda, antecipando-se ao planejamento estatal em áreas estratégicas. Essas empresas elaboram verdadeiros “pacotes” de obras públicas que incluem desde o projeto técnico até os esquemas de financiamento. Estes últimos são viabilizados por meio da capacidade das empreiteiras de alavancar recursos diretamente nas agências financeiras do Estado, como Caixa, BNDES e Banco do Brasil.
Corrupção: problema moral
ou modus operandi?
Compreender a história e o desenvolvimento do setor de grande engenharia no Brasil, bem como sua peculiar dinâmica, permite entender as relações entre as grandes empreiteiras e o Estado no contexto dos “pactos de poder” que ligam os grupos empresariais à burocracia estatal. Tais pactos traduzem a correlação de forças existente no campo econômico e a posição dos atores relevantes nesse campo no sentido de sua capacidade de influenciar decisões em nível estatal.
A constituição desses pactos, por sua vez, está relacionada ao processo de desenvolvimento capitalista brasileiro, suas tendências, padrões e conflitos. Desse ponto de vista, a corrupção não é meramente um desvio ético e moral, mas o próprio “cimento” das relações entre o público e o privado no Brasil. Mais propriamente, entre Estado e mercado, no contexto de uma República capenga e inconclusa, que em muitos aspectos mais se assemelha a um arranjo estamental do que a uma moderna democracia de massas.
Nesse contexto, a corrupção vicejou como o modus operandi de agentes públicos e privados e ensejou um capitalismo mais que perverso, posto que o dreno de recursos públicos que ela acarreta empobrece ainda mais um Estado que, secularmente, não conseguiu atender às urgentes demandas sociais de forma permanente e satisfatória.
Regina Camargos, doutora em Ciência Política pela UFMG, é autora da dissertação de mestrado Estado e empreiteiras no Brasil: uma análise setorial, IFCH-Unicamp, 1993.