No Brasil e em outros países ditos democráticos, com frequência escutamos falas descontentes dos que não se sentem representados politicamente. Eleição transparente, partidos que incluem minorias, livre expressão e ainda assim os desejos do povo não ecoam nos parlamentos. Por quê? Segundo o cientista político Robert Dahl, ter instrumentos formais não é suficiente para salvaguardar o princípio democrático. É preciso ainda inclusão progressiva da população em termos de senso crítico, tornando-a capaz de distinguir propostas, refletir e debater, sem se deixar influenciar pela comunicação recebida, que, no mais das vezes, sem isenção ou a serviço de interesses específicos, está longe do bem comum. Além da fragilidade político-social de alguns países como o Brasil, sistemas políticos, tradicionalmente equacionados, cujos modelos nos serviam de exemplo, encontram-se também desestabilizados.
Indo aos fundamentos do ainda hoje melhor regime político – a demokratia – é preciso lembrar que, quando Aristóteles a analisa na Política, já havia passado o seu auge nas condições favoráveis da Atenas de Péricles. E mais: estava com credibilidade abalada; afinal Sócrates havia sido condenado no regime mais louvável. Aristóteles descreve seis formas de governo que se revelam pela combinação do número de governantes com os interesses aos quais se voltam. Pelo desejável interesse comum do povo, há três formas admissíveis, a depender do número de governantes (um, alguns e muitos): monarquia, aristocracia e politeia. Mas, se o interesse é voltado para os próprios governantes, surgem desvios correspondentes: tirania, oligarquia e democracia. Como na prática o interesse dos governantes se mostra distante do bem comum, dos desvios citados, a democracia, como mais próxima do seu ideal (politeia), tornar-se-ia a melhor forma concreta de governo, mesmo com falhas – o que justificaria a condenação do mais sábio da polis.
Na demokratia, dita politeia, é “o povo reunido em assembleia, julga, delibera e decide” (Aristóteles, Política, III, 15, 1286a26), com vistas ao bem comum. A deliberação coletiva está no centro do seu bom funcionamento. A maioria democrática é conquistada pelo exame das questões, a partir de argumentos a favor e contra, em um diálogo na presença das partes, em deliberação pública, tão aberta quanto possível. A maioria surge como indicador de plausibilidade da decisão, já a divisão quase igual das vozes denunciaria a complexidade do problema e a fragilidade do resultado. Porém este Areópago deixou de fazer sentido nas teorias modernas da democracia, sobretudo em Rousseau, onde a maioria expressaria a “vontade geral”. Para Rousseau o ser humano natural e livre tem forças finitas que se completam com as dos outros humanos, por isso o “contrato social”, que seria a formação de um só “corpo social”, uno e forte, “ato pelo qual o povo é um povo” (Contrato Social, Livro I, Cap.V).

Ao aceitar o contrato social cada qual mantém seu lado natural, mas torna-se parte integrante do “corpo social” e livre para defender qualquer decisão tomada por ele, ou seja, o limite da liberdade é a “vontade geral”. Neste sentido, o ideal de Rousseau é a unanimidade, utopicamente obtida na soma de opiniões particulares convergentes. Sem a assembleia grega, o sufrágio passa a ser a técnica para se descobrir a vontade coletiva, que teria êxito se fosse unânime, mas em geral o resultado é plural, o que pressupõe não terem sido ouvidas e debatidas todas as vozes individuais e as diferenças tendem a ser descartadas. A democracia rousseauniana reflete, segundo Pierre Aubenque, “a metafísica moderna da subjetividade, segundo a qual o sujeito racional, livre de todo apego, […] tradição ou classe social, se autodetermina […], dilui sua particularidade na universalidade de suas decisões. Hoje, após as experiências dos dois últimos séculos, sabemos que esta visão não é somente utópica, mas também perigosa.” (Problemas Aristotélicos, p.197)
A demokratia não trata de vontades, mas de julgamentos a partir de argumentos explicitados, onde opiniões opostas têm parcialmente razão. Como forma de governo de seres gregários, o desafio para o progresso coletivo é o aprendizado de uns com os outros, a ponderação de argumentos e o diálogo. A boa prática democrática exige respeito ao outro para escutar suas razões, de modo a inclinar-se para elas no caso de se tornarem maioria.
Diante de governos que privilegiam armas a argumentos, que impõem valores individuais aos coletivos e onde a unanimidade não é mais o ideal dos sufrágios, parece ser premente nos interrogarmos se queremos exercer e usufruir de fato da democracia, ou se a utilizaremos como vazio instrumento retórico.
Claudia Barbosa, doutora em Filosofia e pesquisadora do Programa de Estudos em Filosofia Antiga da UFRJ