Quem chega por último?
Carol Rodrigues descoisifica a linguagem por todos nós em seu novo romance A mulher do padre
No princípio era o Grito, e o Grito estava com Deus, e o Grito era Deus. Sim grito, subverto o apóstolo João pela certeza que iniciamos o mundo gritando, esperneando em plenos pulmões. A ausência de linguagem faz com que o nosso primeiro signo seja o urro. Daí entre os papa, mama, gugu, dá dá e a leitura dessa resenha parece tudo um grande pulo. Mas não somente não é como Carol Rodrigues nos leva por esse caminho mostrando as dores de sentir e calar (como também de sentir e falar) em seu novo romance A mulher do padre (Todavia, 2023).
Olhos de limonada fraca
Não precisamos nomear nada para sentirmos o sofrimento, apenas sofremos. A autora nos apresenta desde a primeira página Lina, uma menina de pouca idade vivendo em um país distante na virada das décadas de 1980 e 1990 sofrendo pelo receio dos acontecimentos ao seu redor: seja síndrome da vaca louca, a estranheza cada dia mais aparente da sua mãe ou a chegada de seu pequeno irmão. A língua e a linguagem nos guiam desde o começo da obra, onde Lina tenta se adaptar ao novo idioma, junto com sua nova amiga brasileira na escola, ou quando o corpo se faz linguagem em brincadeiras de criança na construção de uma sexualidade ainda ingênua, porém já dotada de violência.
Aprender algo é sempre uma violência e Carol Rodrigues consegue nos mostrar isso da maneira mais astuta, sincera e pedregosa possível: através das próprias palavras e construção do léxico de Lina. Na literatura adulta – distinguindo um pouco das infanto-juvenis – a voz das crianças é geralmente relegada às peripécias ou justificativas do universo adulto ao seu redor, trago dois exemplos. No Caderno rosa de Lori Lamby (1990), Hilda Hilst nos traz uma criança que conta as suas aventuras por meio da visão dos adultos ao seu redor, seja pela emulação de suas linguagens ou pela influência externa da mídia em uma tentativa de conserto da realidade bruta à sua frente. Em Lolita (1955), Nabokov através do seu narrador Humbert Humbert nos guia em uma narrativa impecável sobre como a linguagem pode tentar justificar o injustificável: as únicas armas do seu antagonista são as palavras e o seu passado.
Lina, ao contrário dos personagens que citei, briga com as palavras, não as entende, desafia a realidade – que tão pouco compreende. Os sentimentos são o que está em voga, a realidade material à sua frente. Os amigos príncipes têm olhos de limonada fraca na sua despedida, seja lá o que isso for e é isso o que mais importa, a construção de uma linguagem própria para lidar com o real que se aproxima mais rapidamente do que a própria língua. Carol Rodrigues nos demonstra um esforço anti-nabokoviano de justificação do que é justificável nas dores mais honestas e cotidianas do dia a dia de uma criança.
Sim, essa palavra ridícula
Bom de ouvir, ruim de falar? Para Lina essa palavra não encaixa, dói e se arrasta por todo livro. Toda concordância é uma perda de exclusividade, quando a dizemos ou aceitamos entrar na visão do outro ou abrimos as portas da nossa para eles. Ceder ou nos adaptar é a tônica desse livro e da caminhada da protagonista que chega à pré-adolescência planejando suas palavras, seus momentos e sentimentos tal qual Brasília, sua nova cidade.
No entanto, como nem as cidades nem a linguagem saem sempre como planejamos, vemos essa corrida frenética de Lina e seus colegas por descobrir quem são e como conseguir se explicar durante o processo. Religião, guerra fria, música pop, os caras-pintadas e até o Cigano Igor são temas dentro desses embates fundamentais.
Aprendemos com ela que temos que ficar atentos aos nossos sim durante todo o tempo, economizá-los tal qual fazíamos com as 36 poses, de um filme asa 100, na nossa máquina de fotos.
Hoje é sempre o mesmo dia
“Eu queria poder gritar só hoje só hoje mas hoje é sempre o mesmo dia de arbusto enfiado no gelo”, diz Lina rememorando sua infância na sua tão recente pré-adolescência. O grito, para ela, nunca foi tão fácil como no princípio, como Deus, como o Verbo – por mais que faça uma maravilhosa exegese adolescente do Credo em uma das tantas partes divertidas desse livro. Lina nos rememora a dificuldade e dor que é crescer, que é tentar se expressar, que é sentir sem poder dizer.
Carol Rodrigues nos quebra o encanto de que a infância é um local mágico a ser revivido. Por mais divertido que possa ser às vezes, também é um espaço de muito sofrimento por sentirmos aquilo que não sabemos expressar, por expressarmos mal o que estamos sentindo. A linguagem é a grande mulher do padre, ela sempre chega por último. Porém, durante o meio tempo vamos brincando com ela, tal qual uma brincadeira de pirata pela metade: sem tubarões, sem corda, mas com muitos risos que incomodam qualquer vizinho.
Pedro Torreão é sociólogo e escritor. Autor de Alalázô (Aboio, 2022) e Pão só (Urutau, 2021). Tem textos publicados em revistas e portais como Lavoura, Aboio, Primata e outros. @torreao