Por que não estamos diante de uma Nova Guerra Fria
A utilização do termo para definir a disputa entre Estados Unidos e China no século XXI não revela apenas falta de imaginação, como carece de fundamentos históricos
Os parlamentares e oficiais alemães que se reuniram na Orquestra Estatal de Weimar, em fevereiro de 1919, para a Assembleia Nacional Constituinte que escreveria a Constituição do Império Alemão, após o fim da Primeira Guerra Mundial, não se levantaram em tom eufórico e uníssono e proclamaram: “estamos inaugurando a República de Weimar!”. Por certo, a Alemanha ingressava em uma nova era, porém os generais, políticos e acadêmicos de outrora, ainda que cientes do limiar de um novo período, se viam apenas no “pós-guerra”.
De fato, a história do século XX (bem como a história moderna e contemporânea da Europa) pode ser definida como uma sucessão de “pós-guerras”, sendo a Alemanha uma das principais protagonistas. Posteriormente, a historiografia alemã periodizaria aquele tempo histórico como a República de Weimar, assim como designou a República de Bonn, tempo histórico que perdurou entre 1945 e 1990, e a República de Berlim, vigente desde a queda do Muro de Berlim.
Da mesma forma, os parisienses e aristocratas ingleses entre 1870 e 1914, apesar dos seus privilégios, não festejavam todas as noites por estarem vivendo na Belle Époque. O termo só seria conferido pelas gerações posteriores, impactadas pelos horrores das guerras mundiais e saudosas de um passado recente, porém distante. Nos Estados Unidos, o período equivalente (a “Era Dourada”, ou Gilded Age) foi nomeado por historiadores da década de 1920 em alusão à obra The Gilded Age: A Tale of Today, de Mark Twain, publicada em 1873 – uma feliz realização terminológica, porém utilizada de forma satírica para descrever a corrupção prevalente na América pós-Guerra Civil.
A historiografia terminológica invariavelmente precisa de distanciamento. Outro norte-americano, todavia – este menos celebrado que Mark Twain –, redefiniria antecipadamente a periodização do século XX após a Segunda Guerra Mundial com um simples termo, que vem sendo utilizado até hoje por políticos, jornalistas e acadêmicos para definir a nossa própria época. Bernard Baruch, assessor presidencial de Franklin D. Roosevelt, em discurso proferido na Carolina do Sul, no mês de abril de 1947, afirmou: “Não sejamos enganados: estamos hoje no meio de uma Guerra Fria!”. O termo, que já havia sido utilizado por George Orwell em um artigo publicado em 1945, definiria os rumos da história do século passado.
O fim da Guerra Fria e o colapso da União Soviética e de seu sistema de alianças, contudo, conforme analisou o politólogo britânico Fred Halliday, representou o esgotamento do comunismo como um bloco político-ideológico no plano internacional e a quebra de uma ordem existente desde a Segunda Guerra Mundial.
Mesmo assim, fala-se hoje no surgimento de uma “Nova Guerra Fria”, na qual a ascensão da China como principal potência emergente do século XXI substituiria o bloco soviético, em termos frequentemente maniqueístas. De acordo com esse ponto de vista, a escalada de tensões entre a China em ascensão e os Estados Unidos, superpotência que emergiu vencedora da Guerra Fria, somada à guerra comercial travada entre os dois países a partir da eleição de Donald Trump à Casa Branca, em 2016, justificariam a nova (velha) terminologia.
A utilização do termo para definir o conflito entre Estados Unidos e China no século XXI, no entanto, não revela apenas falta de imaginação, como carece de fundamentos históricos. Ainda que a China, desde 1949, esteja constituída como uma república socialista governada por um partido único – o Partido Comunista Chinês (PCC) –, Beijing em nenhum momento orquestrou um sistema de alianças e satélites na forma de um bloco antagônico que não interage ou se opõe hostilmente ao sistema capitalista ocidental.
Ao contrário, a China mantém extensas relações comerciais com os principais países capitalistas do sistema internacional, sendo este um dos elementos fundamentais do seu projeto nacional de desenvolvimento. Da mesma forma, a China não busca exportar o seu modelo ideológico de política interna nas suas relações exteriores, como o fez a política externa soviética em diversos períodos do século passado (um estudo de caso interessante é a atuação comparada dos dois Estados no continente africano).
Em 2017, Xi Jinping proferiu um discurso marcante no Fórum Econômico Mundial, em Davos. Nele, fez uma defesa da globalização econômica durante a qual muitos espectadores desavisados poderiam confundi-lo com um líder ocidental: “devemos permanecer comprometidos com o desenvolvimento do livre-comércio, promover a liberalização e a facilitação do comércio e do investimento por meio da abertura, dizendo não ao protecionismo […] ninguém sairá vencedor de uma guerra comercial”, disse Xi, sinalizando as suas intenções de tornar o país um “campeão do livre-comércio” na arena global.
Beijing está em vias de se tornar o maior parceiro comercial da União Europeia, superando os Estados Unidos, e recentemente liderou a formação do maior bloco comercial do mundo, a Parceria Regional Econômica Abrangente, tratado de livre-comércio assinado junto aos países-membros da Associação de Nações do Sudeste Asiático (ASEAN) e quatro tradicionais aliados norte-americanos na Ásia-Pacífico: Austrália, Nova Zelândia, Japão e Coreia do Sul.
A China possui hoje a maior reserva internacional do mundo em dólares e é um dos maiores credores de títulos do Tesouro norte-americano, algo impensável durante os anos do bloco soviético. Os Estados Unidos, por sua vez, dependem cada vez mais da China para a sua produção industrial e manufatureira – fenômeno que, indiretamente, culminou na ascensão de Donald Trump. Já imaginou empresas norte-americanas terceirizando setores da sua produção em Minsk em meio à crise dos mísseis em Cuba? As economias de China e Estados Unidos, portanto, estão mais interligadas do que nunca, e o país asiático cada vez mais se posiciona como um stakeholder da ordem internacional capitalista.
Neste sentido, o historiador norte-americano Mike Davis, da Universidade da Califórnia em Los Angeles (UCLA), nos lembra que a Guerra Fria não foi apenas um conflito, mas também um sistema composto por dois elementos antagônicos – o capitalismo e o comunismo – cuja incompatibilidade constituiu a gênese da ordem mundial de 1945 a 1991. Com a derrocada do bloco comunista e a prevalência do sistema capitalista nas relações internacionais pós-1991, portanto, não há como se falar em uma “Nova Guerra Fria”, posto que as características e os dois elementos centrais que compunham aquele sistema não estão mais presentes – posição esta compartilhada por historiadores como o norueguês Odd Arne Westad.
Vivemos em um período transitório no qual ainda não temos nomes próprios para os processos em curso, e temos a tendência de procurar explicações conhecidas na tentativa de entender o desconhecido. Porém não podemos cometer o erro de analisarmos processos do nosso tempo com lentes do século passado, sob o risco de prejudicarmos o seu entendimento e a própria inserção estratégica do Brasil neste novo período – independentemente de qual nome daremos a ele no futuro.
Guilherme Thudium é Presidente do Instituto Sul-Americano de Política e Estratégia (ISAPE) e doutorando em Estudos Estratégicos Internacionais na UFRGS, em Porto Alegre