“Na cidade dos ricos, o pobre não tem lugar”
A capital financeira do Brasil atualmente lida com uma crise humanitária que denuncia nos quatro cantos da cidade o cenário da desigualdade no país. Neste contexto, pessoas dormem nas ruas no meio do lixo do qual se alimentam e milhares de famílias vivem em habitações precárias, com riscos de incêndio e desabamento.
A capital financeira do Brasil atualmente lida com uma crise humanitária que denuncia nos quatro cantos da cidade o cenário da desigualdade no país. Neste contexto, pessoas dormem nas ruas no meio do lixo do qual se alimentam e milhares de famílias vivem em habitações precárias, com riscos de incêndio e desabamento. Principais responsáveis por despejos[1], as políticas habitacionais mais recentes, contrariando o que deveriam fazer, aprofundam o contexto de situação de rua e precarização da vida, seja pela atuação ou pela omissão da Prefeitura de São Paulo.
As políticas de moradia em São Paulo são um grande emaranhado de ações que confrontam os pobres, ao invés de dar acesso a este direito essencial para uma vida digna. Segundo Benedito Barbosa, advogado do Centro Gaspar Garcia de Direitos Humanos, membro do Observatório de Remoções, da União dos Movimentos de Moradia e da Campanha Despejo Zero, “o governo estadual passou a investir nos programas de parceria público privada (PPP) que nada mais é do que incentivar a atuação do mercado imobiliário e excluir as famílias de baixa renda das políticas de habitação social”. Ele comenta que os principais motivos para as remoções na capital são devido a obras de infraestrutura da Prefeitura ou justamente para construção de unidade habitacional. “O governo propôs fazer aqui na cidade a PPP habitacional em várias áreas, mas em algumas regiões ela vai despejar mais gente do que atender”, relata Benedito. O advogado explica que isso acontece porque “as famílias que não têm condições de acessar políticas de financiamento não vão conseguir entrar nesses programas”. Nesse cenário, são removidas do seu local de moradia e, em paralelo, excluídas dos programas habitacionais.
De acordo com levantamento da Campanha Despejo Zero, somente no estado de São Paulo mais de 30 mil famílias correm risco de remoção. Somado a isso, a criminalização das ocupações parece ser um fator determinante para a omissão diante de casos de incêndio e desabamento. Nessas ocorrências, a falta de atendimento adequado por parte das secretarias responsáveis pode resultar no aumento da população em situação de rua. Um caso emblemático que se estende há mais de 10 anos denuncia um abandono sistêmico.
A pedido do Ministério Público de São Paulo (MPSP), o Corpo de Bombeiros realizou, em 2011, uma vistoria em um prédio localizado na Rua Alexandrino da Silveira Bueno, no bairro Cambuci, no centro da capital. Em 2007, as famílias já haviam sofrido com um incêndio no prédio e foram removidas com bala de borracha e gás lacrimogêneo pela Polícia Militar, mas retornaram ao local após dois meses vivendo em um galpão oferecido pela Prefeitura e sem possibilidade de acessar outra moradia. O documento enviado ao MPSP, então, concluiu que as condições do local eram de extremo risco para as famílias. No ano seguinte, o Ministério Público contatou a Subprefeitura da Sé para efetuar procedimentos de interdição e assistência às famílias. O órgão moveu uma Ação Civil Pública[2] direcionada ao Município de São Paulo, em 2013. O processo se estendeu até 2019, quando foi encaminhado para julgamento no Superior Tribunal de Justiça, sem data marcada. Benedito explica que o MPSP responsabilizou o município, então “se acontecer alguma coisa com as famílias, a Prefeitura vai responder criminalmente”. Neste período em que o processo transitava, outras situações, concomitantemente, alertaram para a urgência de atendimento às famílias da ocupação no Cambuci.
Mas, se por um lado é importante a atuação do Ministério Público ao mapear as moradias de risco e exigir atuação da Prefeitura, por outro lado isso se confronta com o problema da ausência de políticas efetivas para as famílias, tornando o procedimento abstrato e pouco eficiente, o que pode abrir precedentes para perseguição às ocupações.
“Depois do incêndio do Wilton Paes de Almeida a gente viveu um arrefecimento no processo de criminalização das ocupações, com a prisão da Preta Ferreira, da Ednalva Franco, do Sidney Ferreira, um verdadeiro ataque do Ministério Público, da Política Civil e Militar”, comenta Benedito. À época, foi feito um mapeamento das ocupações na capital pela Defesa Civil. Das 51 mapeadas, três foram consideradas moradias de risco, entre elas a da R. Alexandrino da Silveira Bueno. A Prefeitura deveria dar atendimento, garantindo moradia segura às famílias das três ocupações. O que não foi feito.
Como resultado da ausência de assistência municipal, em 2021, outro incêndio acometeu o prédio e resultou no desabamento de parte da ocupação no Cambuci. Mais de 80 famílias ficaram desabrigadas e, durante dois meses, dormiram debaixo de lonas e em barracas na calçada. Entre elas, crianças, mulheres grávidas, bebês recém-nascidos e idosos com doenças crônicas.
A situação como um todo escancarou o abandono por parte do município. Logo após o Corpo de Bombeiros apagar o incêndio, as famílias ainda retornaram ao prédio para ver o que havia restado de seus pertences, somente cerca de sete horas depois a Subprefeitura da Sé chegou ao local acompanhada da Secretaria Municipal de Habitação (Sehab). Durante o tempo em que estiveram no local não conversaram com as famílias, apesar das tentativas dos moradores. Ao deixarem o local, ficou sob responsabilidade de uma empresa terceirizada de Assistência Social informar o planejamento feito pelos gestores: direcionar as famílias para um galpão na Barra Funda por cerca de quatro meses e os pertences para outro lugar que ainda não havia sido definido. Com receio de ficarem sem o acesso a uma moradia, as famílias não aceitaram e resolveram acampar em frente à ocupação a fim de serem ouvidos pela Prefeitura. Os moradores reivindicavam o direito à obra no local. Como não foram ouvidos, um processo de resistência se iniciou.
A atuação da Rede de Proteção Contra o Genocídio, das Brigadas Populares e da Campanha Despejo Zero, que acompanharam as famílias desde o primeiro dia, garantiu o acesso ao auxílio aluguel de R$400,00 por um ano. Apesar disso, a falta de opções de moradia com o valor do auxílio forçou o retorno por parte das famílias ao prédio danificado pelo fogo e outras foram morar em ocupações nas redondezas para ficar perto da escola dos filhos e do trabalho. “As famílias enfrentam uma situação no Brasil que é extremamente grave, que é o aumento do custo dos aluguéis, inclusive é componente do déficit habitacional no Brasil, chamado ônus excessivo do aluguel”, explica o advogado que atua há mais de 40 anos com o tema do direito à moradia.
Além do auxílio, a Sehab cadastrou as famílias da ocupação na fila da Companhia Metropolitana de Habitação de São Paulo (Cohab-SP), responsável por construir unidades habitacionais com recursos do programa Minha Casa, Minha Vida, que sofreu, em 2021, corte de 98% pelo governo Bolsonaro.
Os cadastros na fila da Cohab são atualizados anualmente desde 2005 e hoje mais de 150 mil pessoas estão inscritas aguardando serem chamadas. Segundo Benedito, “a fila da Cohab é um verdadeiro estelionato municipal, uma enganação, essa demanda que se inscreve anualmente dificilmente vai ser atendida, pode demorar 30, 40, 50 anos para receber atendimento habitacional”.
O caso da ocupação no Cambuci não é isolado, é mais um exemplo do que acontece com quem precisa de política pública para acesso à moradia. No Censo de 2019[3], um dado importante apontava que 12% das pessoas em condição de rua estavam nessa situação devido à perda de moradia.
Diante deste contexto, a atuação distorcida das políticas habitacionais tem aprofundado a precarização da vida dos mais pobres, já que os remove no lugar de solucionar o problema. Para Benedito, “a lógica é essa, expulsar os mais pobres das regiões mais valorizadas. Eles querem pobre para fazer limpeza da casa, trabalhar de empregada doméstica, não para morar. É uma lógica no Brasil presente desde a escravidão. Na cidade dos ricos, o pobre não tem lugar”.
Referências
[1] O Relatório bianual 2019-2020 do Observatório de Remoções identifica contradições nas políticas habitacionais de São Paulo, responsáveis por remoções em alguns casos. Ver ‘PPPs habitacionais em São Paulo: política habitacional que ameaça, remove e não atende os removidos’, p. 181-221.
[2] Processo n° 0036074-40.2013.8.26.0053.
[3] Pesquisa Censitária da População em Situação de rua na cidade de São Paulo