Na pandemia, é preciso fazer malabarismo para sobreviver
Após 150 dias de isolamento, muitas famílias seguem vivendo de doações, sem renda para pagar as contas ou comprar comida
Dezenove itens foram listados para cada uma das 100 cestas básicas distribuídas em uma das campanha que Maria de Lourdes do Carmo organizou durante a pandemia da Covid-19. Arroz, feijão, açúcar, sardinha em lata, leite, salsicha e papel higiênico eram alguns dos produtos. A ‘Maria do Camelôs’, vendedora na Rua Miguel Couto, Centro do Rio de Janeiro, iniciou uma rotina diferente, desde 16 de março, quando encerrou temporariamente seu comércio. Além de precisar colocar comida na mesa para ela, o marido e três filhos, seus colegas de trabalho, outros vendedores sem renda alternativa, também precisavam de ajuda.
Afora organizações conhecidas pelo trabalho de doações durante a pandemia, camelôs, trabalhadores informais e lideranças comunitárias precisam ‘furar a quarentena’ para sobreviver. Todos os dias, tem o trabalho de mobilização online para arrecadar fundos e cadastrar pessoas que procuram por auxílios. Fora do ambiente virtual, planejam mutirões de coleta, higienização dos produtos e entrega destes.
Segundo o Monitor das Doações da Associação Brasileira dos Captadores de Recursos (ABCR), o valor de auxílio contra a Covid-19 ultrapassou a marca de R$ 6 bilhões no Brasil. Porém, movimentos sociais mostram preocupação com a redução de donativos, que já é aparente. A demanda, todavia, só aumenta.

O Movimento Unido dos Camelôs (Muca), da qual Maria faz parte, cadastrou centenas de trabalhadores do comércio de rua para receber doações em campanha feita pela internet. A meta foi atingida em apenas uma semana e, por meio de depósitos bancários, R$ 250 foram distribuídos para cada trabalhador. “Entrou também pessoal de feira, da Lapa, de Copacabana. Incluímos também domésticas, motoristas e outros que precisavam.”
Nos meses seguintes, o Muca recebeu cestas da Ação da Cidadania, movimento social reconhecido por doações de alimento e luta contra fome e miséria no Brasil. Outras doações seguiram, como da Prefeitura do Rio de Janeiro e do Instituto Unibanco, além de valor arrecado em live do cantor Belo em abril. Até 01 de agosto, o movimento contabilizou 12 mil cestas doadas. Após última leva entregue (4 mil cestas) para o mês de agosto, a preocupação de Maria aumenta. Iniciou outra campanha virtual, sem sucesso. “Foi muito ruim, não rendeu. Acho que as pessoas já estavam ajudando muito outras vaquinhas”. Para os próximos meses, está no escuro: ainda não há doações previstas.
A matemática é inimiga dessa solidariedade da qual Maria e outros comerciantes e informais vivem para comer. Há 25 anos como camelô, a carioca já trabalhou em campanhas, arrecadando dinheiro para ajudar camelôs detidos pela PM em 2003, e outras de menor porte. Mas a situação emergencial da pandemia trouxe novos desafios. “Dessa vez, é diferente. Não tem um camelô que conseguiu ajudar o outro.”

Ambulante cadastrada no Muca, a vendedora de balas Thais Figueira de Souza foi uma das que recebeu a cesta básica, essencial para que ela, o companheiro e o filho, com 2 anos de idade, pudessem se alimentar. A renda da família vinha do trabalho de ambos, que atuavam no Centro do Rio em festas e outros eventos, e teve que se encerrar. Hoje, vivendo na casa da sogra em Heliópolis, no município de Belford Roxo, a baleira conhecida como Kika aguarda mais ajuda, pois ainda não pode retornar ao seu trabalho.
Kika, amazonense, veio para o Rio de Janeiro em 2016 e desde então sofre com problema de moradia. A situação de vulnerabilidade acirrou nos últimos meses, e ela iniciou uma campanha de doação online para arrecadar o suficiente para construir uma kitnet em cima da casa da sogra. O link vaka.me/1200499 mostra que, dos R$ 20 mil da meta estipulada, após 40 dias de campanha, apenas 25% foram doados.
O site Vakinha.com, onde Kika e Maria organizam seus esforços, revelou que houve aumento de campanhas com viés solidário entre 30% e 40% durante a pandemia do novo coronavírus. No primeiro semestre de 2020, foram criadas 325 mil novas vaquinhas, contra 190 mil no mesmo período em 2019. As arrecadações da plataforma, exclusivas para a Covid-19, já contabilizam R$ 15 milhões.
Maria conta que há uma lista de espera com mais de 3 mil trabalhadores para receber alimentos, enquanto não há desistência das cestas básicas. A sala que a ambulante aluga para guardar a mercadoria já tem atraso no pagamento, assim como a Taxa de Uso de Área Pública, pagamento anual necessário para que ela monte sua barraca para vender. “Posso levar multa, ser impedida de trabalhar ou perder a mercadoria, depende do fiscal que estiver no dia. A minha barraca custa R$ 180, depende do tamanho. Esse pagamento é uma das negociações que estamos tentando com a prefeitura para que parcelem o valor”, explica.
Nem vírus, nem fome, nem tiro
No último dia 8 de agosto, um sábado, dezenas de crianças foram até o caminhão de donativos organizado pela Frente Complexo de Acari. “Não divulgamos previamente, até por conta da aglomeração que pode se formar antecipadamente. A gente chega na localidade, chama as crianças que estão na rua, formamos fila com espaçamento de um braço esticadinho e consequentemente outras crianças aparecem”, conta Buba Aguiar, uma das organizadoras da campanha que entregou 100 kits com biscoitos, sucos e máscaras infantis nas localidades do Amarelinho e da Parmalat neste dia.
Desde março, cerca de 1.800 cestas básicas foram doadas para moradores do bairro de Acari, que assume o 3° menor IDH do Rio de Janeiro. Junto a mais seis pessoas, a patologista Buba Aguiar, uma das organizadoras da Frente Complexo de Acari, vem coletando arrecadações por meio de doação online. As doações passaram a fazer parte do dia-a-dia dos moradores, impossibilitados de trabalhar. Alimentos, quentinhas e equipamentos de proteção chegam toda semana para as famílias.

Formada por moradores e militantes das Favelas de Acari e Amarelinho, na Zona Norte do Rio de Janeiro, a Frente foi criada especialmente para lidar com as necessidades durante a pandemia, que se tornaram mais severas. A cada entrega, munidos de Equipamento de Proteção Individual, os organizadores costumam permanecer por 2h em cada ação. “Resolvemos fazer também ações direcionadas para elas (crianças) porque são o futuro do nosso território e pensamos estar sempre em conexão com elas”, declara Buba.
Nas redes sociais, Buba denuncia a violência do Estado sofrida pela população das favelas, em especial no seu bairro de origem. Durante a pandemia, organizou também atos para exigir o fim das Operações Policiais em Acari e outras localidades. Por vezes, mutirões de sanitização nas ruas ou outras ações de doação foram interrompidas por tiros da PM. No dia 6 de junho, antes da decisão do Supremo Tribunal Federal de suspender operações na cidade, Buba escreveu no Twitter: “Estamos aqui no Cpx do Alemão desde cedo planejando próximas ações sociais para nossas favelas. Neste momento, estamos presos em meio a uma operação policial”, disse, pedindo ajuda e monitoramento dos outros ativistas presentes na ocasião.
A patologista também já usou as redes para denunciar operações com invasão a casas e outros espaços desde março. “Aqui em #Acari passamos dias seguidos com operação policial com PM invadindo creche e tudo mais no meio de uma pandemia”, postou. Também integrante do Coletivo Fala Akari, fundado em 2015, Buba desenvolve ações na favela e já pensa na próxima doação para crianças. Planejado com antecedência, o mutirão para o Dia de São Cosme e Damião já é anunciado nas redes pela jovem. Em cinco meses, Buba saiu quase todos os dias do isolamento para prestar ajuda aos seus, tentando equilibrar, num malabarismo de necessidades, o medo do coronavírus, o medo do tiro e o medo da fome. Doe aqui.