“Nada vem sendo feito há trinta anos”
Já confrontada com angústias sanitárias, ecológicas, econômicas e sociais, a sociedade francesa precisa lidar também com uma série de golpes sob a forma de atentados terroristas. Querem então mobilizá-la para a “guerra”. Mais uma.
Já confrontada com angústias sanitárias, ecológicas, econômicas e sociais, a sociedade francesa precisa lidar também com uma série de golpes sob a forma de atentados terroristas. Querem então mobilizá-la para a “guerra”. Mais uma. Contudo, por ser o inimigo quase sempre indetectável, sua destruição requer sempre um arsenal mais potente que o precedente. Não – ou ainda não – canhões e tanques, mas violações suplementares às liberdades públicas. Quem ousa de fato protegê-las após um atentado ou durante uma epidemia? Restrições são então impostas e aceitas sem debate. Trata-se apenas de um parêntese, dizem-nos; voltarão a fechá-lo tão logo seja vencido o vírus, ou o terrorista, e os dias felizes estejam de volta. E os dias felizes não voltam. Porém, submetida a esse regime, a sociedade pode rachar.
Intervindo em tal contexto, o crime de um islamita fanático, que, com base em um testemunho mentiroso espalhado pelas redes sociais, decapitou um professor que não conhecia, atordoou e revoltou todo um povo. Um checheno sem ligação estreita com uma organização terrorista; poucos cúmplices; apoios quase inexistentes no país: em outros tempos, o assassinato de Samuel Paty teria se parecido com uma tragédia que apenas um demente é capaz de provocar. Mas esse caso incide em uma história marcada por atos de terror islâmicos associados por uma palavra ou duas: Salman Rushdie, 11 de Setembro, Bali, Madri, Mohamed Merah, Charlie Hebdo, Bataclan, Nice… Tantos atentados sangrentos ou ameaças de morte que visaram escritores, juízes, caricaturistas, cristãos. E que também mataram muçulmanos.
Medimos então a irresponsabilidade daqueles que, desde que foi revelada a decapitação de Conflans-Sainte-Honorine, prontamente superaram sua emoção para declarar, de modo injusto, que em matéria de vigilância e repressão “nada vem sendo feito nos últimos trinta anos”. E em seguida exige-se que o Estado tome medidas de exceção contra os imigrantes e os muçulmanos. A direita fala em emendar a Constituição; o ministro do Interior se preocupa com “seções de cozinha comunitária” nos hipermercados; jornalistas exigem que silenciem o Conselho de Estado, o Conselho Constitucional e a Corte Europeia de Justiça a fim de que mais nada possa entravar as detenções administrativas arbitrários e as prisões motivadas por uma mera ficha policial. As mesmas pessoas acrescentam que é preciso proibir os “discursos de ódio” nas redes sociais, sem perceber que suas falas são também venenosas, mas em canais de notícia 24 horas.
O horror de um crime teria conseguido favorecer o apoio finalmente unânime da população aos professores, que os sucessivos governos reduziram ao papel de variável de ajuste orçamentário e colocaram à mercê das pressões dos pais de alunos. Em vez disso, um cheiro de “guerra de civilização” surge de novo. Isso só fará o povo francês se dividir em frações que serão devolvidas sistematicamente – e não somente os fundamentalistas muçulmanos ou a extrema direita – à sua “comunidade”, à sua família, ao seu Deus1. É contra essa máquina infernal que “nada vem sendo feito nos últimos trinta anos”.
*Serge Halimi é diretor do Le Monde Diplomatique.
[1] Ler “‘Ahmadinejad, mon héros’” [“Ahmadinejad, meu herói”], Le Monde Diplomatique, ago. 2016.