Suportar o “mas”, para chegar ao “e”
O “mas” é insuportável porque ele nos mostra o outro. O “mas” é o outro. O que vem depois dele é sua dor, sua história, sua catástrofe, sua desgraça, e também sua longa história de resistência anticolonial
Imediatamente após o ataque do Hamas, no dia 7 de outubro, enquanto as notícias sobre os detalhes da tragédia ainda chegavam, foram muitos aqueles que, mesmo diante do horror, sentiram o dever de introduzir um “mas”. A adversativa incomodou, enfureceu, gerou revolta, e tudo o que veio depois dela foi rapidamente identificado como “relativização”, “justificativa”, como tentativa de culpabilização das vítimas e até mesmo “comemoração”. Estava proibido o “mas”. Certo silenciamento se impôs aos que buscavam dar um contexto e trazer a visão do povo palestino que, sabemos, como oprimidos e subalternos, não podem falar. Um povo que – como mostra sua literatura – convive com o medo da “morte lenta e súbita”,[1] mas sobretudo com o terror do esquecimento e da impossibilidade de fazer memória. O 7 de outubro, portanto, deveria ficar, sob a égide desse silêncio sufocante e violento, encapsulado no tempo e no espaço, impossibilitando tentativas de compreender e estabelecer ligações da tragédia com a memória, com a história, com o passado; com os por quês e os para quês. Perguntas que eu, como a jornalista que um dia fui, e a historiadora e a psicanalista que sou, jamais posso admitir não poderem ser feitas, por um imperativo ético.
Nos lembra o dicionário que adverso é aquilo “1. que traz desgraça; que provoca infortúnio; prejudicial. 2. que se encontra ou se apresenta em oposição; contrário”. Incluo-me aqui entre os que introduziram o “mas” e o adverso logo no início. Alguns apontaram que as contextualizações e explicações desrespeitavam o sofrimento e o luto dos sobreviventes do ataque e de familiares daqueles que foram mortos pelo Hamas. Não era hora de contextualizar (e qual seria, então?). Cabe aqui apontar que esse luto tampouco foi e vem sendo respeitado pelo Estado de Israel que inflige às vítimas uma segunda violação. “Teremos toda nossa vida para fazer o luto, e vamos fazê-lo. Mas agora, há apenas um objetivo: nos vingar e ser cruéis”, disse um ex-militar israelense a um canal de TV. Muitas das vítimas manifestaram de forma inequívoca seu rechaço à (previsível) reação genocida do Estado de Israel, bem como a instrumentalização de sua dor. Voltarei mais adiante no tema do luto.
Do lado de cá, entretanto, o “mas” é urgente. Não podia esperar. Para quem acompanha o tema de perto – para quem essa história não começou no dia 7 –, não foi possível afastar a ideia aterrorizante de que o que veríamos nos dias seguintes seria exatamente aquilo a que estamos assistindo (literalmente) hoje: um genocídio, cujas maiores vítimas seriam civis. Nem bem sabíamos por completo as proporções da tragédia do dia 7, uma montagem que circulava pelas redes sociais entre israelenses de extrema-direita colocava lado a lado duas vistas de Gaza. Na primeira, a região tal como naquele momento ainda estava: prédios, uma avenida bordeando o mar, carros sobre ela, com a legenda: “Gaza, outubro de 2023”. Na segunda, uma foto, adulterada, em que nada disso aparecia, apenas o mar e um asfalto, com a legenda “Gaza, novembro de 2023”, seguida de comentários que prometiam transformar a região em um grande estacionamento. Para nós que temos memórias dos últimos ataques à Faixa de Gaza nos últimos anos,[2] sabíamos que aquilo não era um meme. Era o anúncio de um novo massacre, de uma nova limpeza étnica. Uma “Grande Nakba”, como passaram a pregar os colonos judeus na Palestina ocupada. Posição hoje reafirmada cotidiana e desavergonhadamente na boca de políticos israelenses e sua retórica abjeta e genocida, às vezes mais aberta, outras vezes mais velada.
Acredito que, no entanto, nesse contexto, o “mas” é insuportável porque ele nos mostra o outro. O “mas” é o outro. O que vem depois dele é sua dor, sua história, sua catástrofe, sua desgraça, e também sua longa história de resistência anticolonial. No caso dos palestinos, uma história em que massacres de população civil indefesa se acumulam há mais de sete décadas. Quando decidi começar a escrever este texto, no dia 28 de outubro, fui lembrada dos 75 anos do massacre de al-Dawaymeh, uma vila habitada por 6 mil palestinos, arrasada durante a Nakba (palavra que em árabe significa “catástrofe”, tal como “shoah”, em ídiche). À ONU, um sobrevivente do massacre, o muktar [chefe da comunidade] Hassan Mahmoud Ihdeib, contou que:
“Meia hora depois da oração do meio-dia de sexta-feira [dia sagrado para os muçulmanos], dia 28/10/1948, ouviu o som de tiros no lado oeste da aldeia (…) observou uma tropa de cerca de vinte carros blindados aproximando-se pela estrada Qubeiba-Dawaymeh, uma segunda tropa aproximando-se pela estrada Beit Jibrin-Dawaymeh e outros veículos blindados aproximando-se da direção de Mafkhar-Dawaymeh. A vila possuía apenas vinte guardas que foram posicionados no lado oeste da aldeia. Quando os carros blindados estavam a meio quilômetro, abriram fogo com armas automáticas e morteiros e avançaram sobre a aldeia num movimento semicircular, cercando-a, assim, pelos lados oeste, norte e sul. Uma parte dos carros blindados entrou com armas automáticas em punho – as tropas judaicas saltaram dos carros blindados e espalharam-se pelas ruas da aldeia, disparando promiscuamente contra tudo o que viam. Os aldeões começaram a fugir enquanto os mais velhos se abrigavam na mesquita e outros numa caverna próxima chamada Iraq El Zagh. O tiroteio continuou por cerca de uma hora.
No dia seguinte, o Mukhtar reuniu-se com os aldeões e concordou em voltar à aldeia naquela noite para descobrir o destino daqueles que ficaram para trás. Ele relata que na mesquita estavam guardados os corpos de cerca de sessenta pessoas, a maioria delas homens de idade avançada que se abrigaram ali. Seu pai estava entre eles. Ele viu um grande número de corpos nas ruas, corpos de homens, mulheres e crianças. Ele então foi para a Caverna Iraq El Zagh. Encontrou na entrada os corpos de oitenta e cinco pessoas, novamente homens, mulheres e crianças. O Mukhtar realizou então um censo dos habitantes da aldeia e descobriu que um total de 455 pessoas estavam desaparecidas, das quais 280 eram homens e o restante eram mulheres e crianças (…). Mukhtar afirma explicitamente que a aldeia não foi chamada a render-se e que as tropas judaicas não encontraram qualquer resistência. Nem é necessário mencionar que este ataque brutal e não provocado ocorreu durante a trégua.”
Eu poderia contar aqui inúmeras histórias dos massacres contra a população palestina durante a Nakba, palavra tabu em Israel, retirada de livros escolares árabes-israelenses, e cuja data simbólica, 15 de maio, é proibida por lei de ser comemorada pelos mais de 1,7 milhão de palestinos que, apesar de terem cidadania israelense, vivem de forma segregada, sob um regime de apartheid, realidade que já foi reconhecida, tardiamente, pela ONU, em 2017.
Poderia reproduzir relatos de massacres como o de Deir Yassin ou Tantura,[3] e o requinte de crueldade praticado pelas milícias sionistas que quase sempre encontraram civis desarmados. Eu poderia, precisamente, segundo o historiador israelense Ilan Pappé – em A limpeza étnica da Palestina (aqui publicado pela Sundermann), obra fundamental para quem quer entender a natureza colonial e violenta do Estado de Israel –, contar 521 histórias de vilas palestinas destruídas, além de 11 bairros urbanos esvaziados, incluindo dezenas de massacres que, em grau de crueldade e barbárie, em nada diferem daquele perpetrado pelo Hamas no dia 7 de outubro. A Nakba, vale sempre lembrar, causou o deslocamento – pela força, por intimidação ou por medo – de ao menos 750 mil palestinos e matou cerca de 15 mil. Números que, tudo indica, serão superados no atual genocídio na Faixa de Gaza.
Cabe aqui fazer um parêntesis. As forças políticas e militares que planejaram e executaram a Nakba identificavam-se como sionistas de esquerda, vinham do sionismo trabalhista. A maior parte das armas usadas pelas milícias sionistas veio da então Tchecoslováquia, com apoio da União Soviética stalinista, o primeiro país a reconhecer o Estado de Israel.[4] Foi também a chamada esquerda sionista que, em 1967, ocupou os territórios da Faixa de Gaza, Cisjordânia, Jerusalém Oriental, Colinas do Golã (Síria) e Península do Sinai (este último, o único devolvido, ao Egito). Digo isso porque circula em meios progressistas certa adesão à teoria das “maçãs podres”, isto é, o problema do Estado de Israel é apenas seu atual governo de extrema-direita (vale lembrar que Netanyahu foi primeiro ministro de 1996 a 1999, e de 2009 a 2021). Não há dúvida de que Netanyahu e sua gangue são um enorme problema, mas suas ações são coerentes com o projeto sionista que desenhou e levou a cabo a Nakba, o qual nunca pretendeu uma coexistência com os palestinos, mas sim sua expulsão forçada e completa da região.[5] “Eu sou pela transferência compulsória. Não vejo nada de imoral nisso”, disse em 1938 David Ben-Gurion, líder do movimento sionista socialista e um dos fundadores do Mapai, um partido social-democrata sionista trabalhista, e primeiro-ministro por praticamente as duas primeiras décadas do país. Para os palestinos, a única diferença entre o sionismo de esquerda e o de direita é o sabor do molho com o qual são devorados. A natureza colonialista do sionismo, sempre em busca de expandir seu território, como qualquer empresa colonial capitalista (e brasileiros progressistas em tempos de debate sobre o marco temporal deveriam saber disso), promove o que os palestinos chamam de “Nakba contínua” [ongoing Nakba], caracterizada por uma experiência ininterrupta de violência e espoliação, por um trauma que não encontra o “pós” porque nunca se encerra e sempre se atualiza em tempos infinitos, por lutos que não podem ser feitos, como apontou o psicólogo palestino Devin G. Atallah em um diálogo com Judith Butler (sim, discordar é também diálogo, parece que estamos esquecendo noções básicas nestes dias):
“Como palestinos, não temos o privilégio de nos enlutarmos porque não podemos lamentar os nossos cadáveres assassinados como parte desta contínua violência columbial [em referência à Colombo]. Sabemos, no interior de nossos corpos, que, para sofrer, devemos ter acesso à fluidez do tempo que nos foi roubado junto com nossa terra. O luto é para cadáveres que tiveram acesso à vida enquanto estavam vivos, e que foram então cerimonialmente enterrados na terra e no céu, em cemitérios, na fumaça. Os corpos dos colonizadores têm esses privilégios. No entanto, nós, os colonizados, ainda não conseguimos recolher as partes dos nossos corpos, estraçalhadas pelos espaços e tempos. Desde agora, na Cidade de Gaza, até há quarenta anos em Sabra e Shatila; desde há alguns meses em Jenin até há vinte anos em Belém; de dois anos atrás em Sheikh Jarrah, há um ano em Nablus; há nove anos, em Khan Younis, há 75 anos, em Deir Yassin; e assim por diante. É por isso que nós, os colonizados, não podemos lamentar os nossos mortos. Somos obrigados a roubar o nosso presente para lutar pelo nosso futuro.”
Todas essas contextualizações, fora de hora para alguns (repito: qual a hora, então?), insuportável, para outros, apontava para a obviedade que mais tarde foi reconhecida até mesmo pelo secretário-geral da ONU, António Guterres: os ataques do Hamas não nasceram em um vácuo, mas se inserem em um contexto de 75 anos de opressão colonial, de repressão feroz aos palestinos e do fracasso absoluto de quaisquer iniciativas diplomáticas e negociadas. Como nos lembraram professores da USP, em texto publicado na Folha de S.Paulo, estas foram sempre boicotadas pelo Estado de Israel que, para não ceder um milímetro e seguir seu plano de anexação completa da Palestina histórica (que, repito, não é uma invenção da extrema direita isrelense, mas um dos objetivos declarado e muito bem documentado do movimento sionista desde o início), preferiu alimentar o Hamas, adversário perfeito para poder fortalecer sua natureza opressiva e colonial, encoberta pelo discurso de “mais segurança”, de garantia de um lugar onde os judeus pudessem viver em paz, após milênios de perseguição e diáspora.
No entanto, como apontou Devin G. Atallah, o Sul Global sabe que quando o Norte promete mais segurança, ele, na verdade, está prometendo justamente o oposto: mais violência. “Os imaginários de paz e não violência do Sul Global aboliram há muito essa bússola colonial do Norte (…) nós, como teóricos transnacionais decoloniais originários e negros, temos trabalhado para nos orientarmos para longe de zonas destrutivas coloniais de segurança, proteção e certezas”, escreve Atallah.
Não são raros os judeus que percebem que a promessa de segurança é, na verdade, uma promessa de violência; que o sonho de uma nação judia que pudesse lhes assegurar um território para viver em paz, sob a égide da arquitetura sionista, tinha como contrapartida o pesadelo de outro povo, como afirmou o médico húngaro Gabor Maté, sobrevivente de Auschwitz, em entrevista que circulou nas redes nos últimos dias.
A luta antissionista e anticolonial não se trata, como afirmam alguns, de pregar a destruição do Estado de Israel e expulsão dos judeus daquele território, como vemos recorrentemente em fantasias projetivas dos opressores – já que o Estado que nunca sequer pôde se formar é o palestino, e quem está sendo expulso há 75 anos também são os palestinos –, mas sim refundá-lo, sob bases laicas, democráticas e não coloniais. Não se trata, portanto, de desvalidar a reivindicação justa do povo judeu de autodeterminação e de ligação ao território da Palestina histórica, mas sim de afirmar, com toda clareza, que não aceitamos que sua presença naquele território se dê por vias coloniais, segregacionistas; não aceitamos – e chega a ser estranho afirmar essa obviedade – que para garantir o direito de autodeterminação do povo judeu, se passe por cima do direito de autodeterminação do povo palestino, o que apenas situa o primeiro como privilégio, não mais como direito. Privilégios esses que, sabemos, são garantidos pela violência e se assentam no racismo. “Eu não tenho nada contra os judeus, tenho contra o colonialismo. Nós também lutamos contra os ingleses, e também lutamos contra o imperialismo estadunidense, e vamos lutar contra qualquer um que se oponha a nosso direito de autodeterminação”, me disse um palestino de Hebron quando estive lá em 2010.
Por fim, para apontar a um horizonte no qual o “e” seja possível, isto é, a coexistência, quero dizer que nesses anos lendo sobre a Questão Palestina, há algo que me captura imensamente. São os relatos de judeus ex-sionistas em que contam seu momento de quebra, o ponto de inflexão que os levou a romper com o sionismo. Judeus, israelenses ou não, que, em determinado momento, aceitam o “mas”, permitem que o outro entre em cena. Não de uma forma racional, como vemos em muitos discursos politicamente corretos que, nas entrelinhas, revelam conter pouquíssimo registro desse outro, mas que sentem essa alteridade com as tripas. Esses relatos me fazem acreditar na possibilidade do “e”, na possibilidade de uma coexistência possível entre esses dois povos.[6] Conto aqui algumas dessas histórias também porque as vozes de judeus antissionistas costumam ser silenciadas, perseguidas e atacadas, inclusive por outros judeus sionistas e pelo próprio Estado de Israel, sob a acusação de praticarem o auto-ódio [self hating jews], como se realizassem uma espécie de introjeção do discurso de seus opressores, quando, na verdade, o que não aceitam é justamente identificar-se e reproduzir atos e ideologias que seus algozes direcionaram aos judeus ao longo da História.
Eran Efrati, ex-soldado israelense, conta sua experiência na capital da distopia colonial, Hebron ocupada, uma cidade de 180 mil palestinos e 800 colonos judeus fundamentalistas.[7] Efrati, cuja família foi parcialmente exterminada em Auschwitz, conta que, durante seu serviço militar, se preparou para uma guerra; queria lutar para evitar que seus familiares sobreviventes jamais tivessem que passar de novo pela perseguição e pelo genocídio. Quando estava em serviço, após o assassinato de um jovem palestino, Efrati é encarregado de não permitir que a família do jovem morto saia de casa para ir a seu funeral.
“Quando o pai tenta sair e entender o que está acontecendo, o prendemos. Quando a mãe do jovem que minha unidade havia matado tenta sair, começa a gritar em árabe – com palavras que eu não compreendia – [mas] podia entender cada palavra que ela dizia porque o grito dela era exatamente como o grito da minha avó quando ela tinha pesadelos com Auschwitz no meio da noite. Nesse momento, eu entendi que eu não era a vítima, eu era a força colonial no território, e se eu queria seguir o legado do meu avô, eu não precisava lutar na IDF [Israeli Defense Forces], mas lutar contra a IDF, contra Israel nos territórios ocupados.”
A ativista israelense Hava Keller, que faleceu aos 90 anos em 2020, após uma vida de luta pelos direitos humanos e contra a ocupação sionista, se alistou à milícia Haganá e participou da tomada de Acre em 1948. Ela relembra que:
“As pessoas fugiam em carros. Meu trabalho era sentar em uma torre de observação e contar o número de veículos que saíam de Acre. Quase não havia moradores lá quando entrei. Caminhamos pela cidade. Um apartamento me causou um choque (…) a porta estava aberta. Sobre a mesa havia pitas e café, como se tivessem [escapado] no meio do café da manhã. Havia um par de sapatinhos de bebê no chão. [Pensei comigo mesma] que aqueles pés deveriam estar frios, que precisávamos encontrar a criança. Comecei a gritar e a chorar.”
O militante do Partido Socialismo e Liberdade (Psol), Waldo Mermelstein, contou recentemente em uma aula:
“Eu fui sionista aos 17 anos, estive em Israel justamente naquela região [dos atentados do Hamas], em um dos kibutzim que foi atacado; eu fiquei seis meses nele, perto de Khan Yunis, a gente via [a cidade]. E eu aprendi o que era o sionismo por duas vias, uma via prática, [foi] quando eu ia para outro kibutz, de ônibus, cheios de trabalhadores palestinos que iam trabalhar em Israel, e um palestino [perguntou]: ‘escuta, onde você vai?’. ‘Vou ao Kibutz Zikim’. ‘Ah, eu e minha família morávamos lá há 20 anos’. De repente meu inglês sumiu, eu não sabia o que falar, fiquei quieto, [disse a ele] ‘não entendi, não entendi’. Mas eu tinha entendido.”
Para construir o “e”, ou seja, qualquer coexistência pacífica possível, é necessário, antes, suportar o “mas”. É necessário se deixar penetrar pelo outro, por sua história, e sair da recusa, vendo-o como um igual. Gabor Maté, cuja entrevista já citei aqui, relembra o caso do nazista Albert Speer, ministro do Armamento de Hitler. Speer cumpriu pena de 20 anos de prisão em Spandau, período no qual passou por uma espécie de conversão. “Perguntavam a ele com frequência: o que você sabia?”, diz Maté, em referência aos crimes nazistas, ao genocídio do povo judeu. “A pergunta é o que eu poderia ter ficado sabendo se eu quisesse”.
*Dafne Melo é psicanalista e tradutora.
Este texto foi escrito após debates e conversas com colegas psicanalistas, a quem agradeço imensamente pela generosidade nas trocas; a responsabilidade pelo texto, no entanto, é inteiramente minha.
[1] A expressão estava no comunicado do Grupo de Harvard de Solidariedade à Palestina, que precisou ser retirado após pressões, e foi retomada por Judith Butler em seu texto “O alcance do luto”, 25 out. 2023.
[2] Para citar apenas os dois ataques mais sangrentos, a Operação Chumbo Fundido, entre 2008 e 2009, resultou em 13 israelenses mortos (3 civis) e 1400 palestinos mortos (entre 900 e 1000 civis); a Operação Margem Protetora, de 2014, deixou 74 israelenses mortos (7 civis) e 2189 palestinos mortos (1586 civis). Destaco que, entre 2018 e 2019, na Faixa de Gaza, foi realizada a Grande Marcha do Retorno, em que a população protestou pacificamente contra o cerco à Gaza, e pelo seu direito de retorno às terras onde viviam antes da criação do Estado de Israel. Nenhum israelense foi morto em decorrência dessas manifestações, enquanto 223 palestinos foram assassinados pelas Forças de Defesa de Israel (IDF, na sigla em inglês) e outros 9204 ficaram feridos.
[3] Há um documentário recente sobre o massacre de Tantura, feito pelo diretor israelense Alon Schwarz: https://www.tantura-film.com/. Tanturra, perto de Haifa, foi uma vila massacrada mesmo após a rendição. Os corpos dos palestinos foram jogados em uma vala comum que historiadores acreditam estar localizada sob uma área que hoje é um estacionamento em Dor Beach. As estimativas variam de 40 a 200 pessoas assassinadas.
[4] A URSS reconheceu de jure Israel três dias após sua declaração de independência, no dia 17 de maio de 1948. O reconhecimento de jure é um tipo de reconhecimento oficial. Os Estados Unidos foram os primeiros a dar o reconhecimento de facto, mas formalizou legalmente o reconhecimento em 1949, após as primeiras eleições no país recém-formado.
[5] Ver a obra do historiador palestino, Nur Masalha, Expulsão dos palestinos: o conceito de transferência no pensamento político sionista 1882-1948, traduzido e publicado no Brasil pela editora Sundermann.
[6] Não me cabe aqui apresentar alguma solução, há especialistas infinitamente mais preparados para esse debate. Opino, entretanto, que seja qual for, ela passa, irremediavelmente, pela descolonização de todo território da Palestina histórica: uma Palestina livre do colonialismo, do rio Jordão ao mar Mediterrâneo.
[7] Sobre Hebron, recomendo o documentário “This is my land… Hebron” (2010), infelizmente (mas não por acaso), difícil de encontrar.