Não é só por um ministério
A horizontalidade é respeitada, qualquer um pode sugerir pautas e pedir a voz, transformando a sede da Funarte, órgão vinculado ao MinC, em um local de vibrante formação políticaIvan Hegenberg
Logo à porta de entrada, o cartaz “Globo Golpista” deixa claro que qualquer narrativa proposta pela grande mídia não tem como dar conta do que se passa no edifício da alameda Nothmann, tomado por trabalhadores da cultura. Nos primeiros dias da ocupação da Funarte, é tanta gente que mal tem espaço para todos dormirem. Alguns alunos secundaristas integram o grupo de manifestantes ofendidos por um governo ilegítimo que despreza a cultura. Não se trata simplesmente de retomar um Ministério, feito menor que conquistaram em menos de uma semana. Os manifestantes não cogitam negociar com representantes de um Estado de exceção, que não deveriam ter autoridade para decidir o que fazer das pastas governamentais. A intenção é resistir como maneira de inviabilizar o governo Temer.
As assembleias reúnem muita gente que jamais lutou como classe coesa, formando uma soma de individualidades que vai se integrando ao longo do processo. Aliás, sequer a iniciativa de ocupar o edifício veio de uma direção só, tendo partido de grupos de origens diversas que se articularam no último momento para coordenar a ação. A experiência dos secundaristas é tomada como exemplo, em grande parte são os alunos da rede estadual que ensinam como se deve organizar a ocupação e como conduzir coletivamente uma assembleia. A horizontalidade é respeitada, qualquer um pode sugerir pautas e pedir a voz, transformando a sede da Funarte, órgão vinculado ao MinC, em um local de vibrante formação política. Sendo assim, não há unanimidade em algumas questões, havendo, como era de se esperar, os que defendem a volta da Dilma Rousseff e os que preferem a convocação de novas eleições. Em alguns momentos se nota a tensão entre manifestantes que simpatizam com o PT e os mais críticos aos governos petistas.
À parte as inevitáveis divergências, o governo Temer deixa claro o suficiente a gravidade do retrocesso para manter a união. Há consenso a respeito do golpe, compreendido como hipócrita proteção de corruptos, imposição de uma agenda neoliberal asfixiante e extinção de direitos obtidos com muita luta. Observando a força que gays, trans, negros e outras minorias adquirem nessa Funarte ocupada, o local pode até parecer uma vila utópica, em contraste com a sociedade que vai se perdendo em conservadorismo. O caráter misógino deste golpe está de tal forma presente na consciência geral dos ocupantes que homens não estão autorizados a falar com ninguém da imprensa. Em um dos primeiros dias, foram eles que prepararam o almoço para as mulheres. São medidas simbólicas, mas significativas se considerarmos o ministério formado apenas por homens e tanto desrespeito ligado ao gênero sofrido pela presidenta, inclusive na grande mídia.
A Funarte ocupada abre espaço para uma extensa programação de eventos, de fazer inveja a muito produtor cultural. Shows, performances, palestras, saraus, oficinas e outras manifestações artísticas podem ocorrer em simultaneidade. Na Galeria Flavio de Carvalho, as pessoas ouvem em roda as escritoras presentes no bate-papo “Mulheres silenciadas”. Micheliny Verunschk fala sobre a Capitu de Dom Casmurro, ressaltando que a personagem dos olhos de ressaca só chega ao leitor através de um narrador tendencioso, que jamais tem voz a não ser sob o filtro masculino. Compara-a à presidenta Dilma Rousseff, que foi duramente silenciada nos porões da ditadura e nas manobras para seu impedimento. “Quando batem panela para abafar a voz dela, silenciam a mim também.” Ana Rüsche lembrou da importância fundamental que as mulheres tiveram nos momentos iniciais da Revolução Francesa, quando tomaram as ruas em ondas de protesto: “E agora estamos vendo um monte de mulher contra o Temer”.
A poucos metros, na Galeria Mario Schenberg, ativistas ligados ao Ocupe a Democracia tocam uma oficina de stencil. Imprimem cartazes e camisetas com as palavras “Temer Jamais”. Suas ações se espalharão por diversos palcos da Virada Cultural, contando com a adesão de Criolo, Tico Santa Cruz, Nação Zumbi, Zé Celso, além de grande parte da plateia. Nesse momento, enquanto operam com o estilete sobre os moldes, dividem o espaço com um animado grupo de artistas de rua. O figurino caricato e a música alegre divertem os espectadores, que gargalham com um humor físico bem ensaiado. Ao final, um dos clowns passa o chapéu com uma última piada, fazendo graça de sua própria necessidade de sustento: “a contribuição de vocês irá para o Lar da Família de Jesus”. Então ele aponta para um dos músicos e o chama pelo nome: Jesus. Os ativistas do Ocupe a Democracia interrompem a oficina de stencil para aplaudir. “Resistir!”, o palhaço completa, dessa vez sem o menor tom de brincadeira.
Há ocupações de prédios ligados ao MinC em todos os estados do país. As atividades diárias em cada centro são divulgadas pela internet com milhares de seguidores. Nessa comunicação virtual, o clown, o funkeiro e o cordelista aparecem de maneira tão emblemática quanto uma apresentação de música erudita, uma performance feminista ou a entrevista de um professor acadêmico. Assim como petistas e esquerdistas mais radicais unem forças pela democracia, nesta conjuntura não há gosto pessoal ou critério estético que possa dividir essa ampla rede heterogênea em defesa da cultura.
Em um mundo onde a cultura tende a se confundir com mero entretenimento, nem sempre é fácil perceber um potencial de enfrentamento através da arte. No entanto, não é casual o escárnio do governo ilegítimo para com os que vivem da cultura, tampouco os patéticos pedidos de jornalistas medíocres por boicote a qualquer artista resistente. O fascismo, já se sabe muito bem ao menos desde Goebbels, requer uma estética, um certo pathos, uma conformação dos afetos limitadora. Os publicitários e jornalistas mais perigosos empregam tais conhecimentos, e abusam de recursos formais para fins de manipulação. O artista crítico, por trabalhar com ferramentas parecidas – com a forma, com a estética – ocupa um campo que os inimigos gostariam de monopolizar.
Infelizmente, os golpistas vêm conseguindo impor muito do que almejam, mas é crucial demonstrar resistência. Como disse Mujica, “temos que lutar sempre, não existe vitória definitiva, e tampouco derrota definitiva”. É impossível que Marcelo Carelo, ministro interino, administre a pasta de Cultura com maior vitalidade que se vê nesses prédios ocupados pelos trabalhadores da cultura. Há um horizonte utópico nas ocupações que ultrapassa em muito a defesa de um gabinete ou de patrocínios com verbas públicas – questões que também merecem uma discussão, mas não para este momento. O que interessa reforçar agora é o grande combate dos agentes culturais, a luta contra a ignorância.
Ivan Hegenberg é mestre em Teoria Literária e Literatura Comparada pela USP e escritor. Publicou, entre outros, Puro enquanto e A lâmina que fere Chronos.