Não engessar governos futuros
Para o jurista Renato Rua de Almeida, professor da PUC-SP, a proposta de consolidação das políticas sociais é “complicada”. “Aprovar uma lei de direito público para que essas medidas venham a ter um caráter de política de Estado, condiciona os governos futuros e praticamente congela sua ação”
Diplomatique – É possível realizar uma consolidação das leis sociais no Brasil.
Renato Rua – Criar um modelo consolidado para as políticas sociais públicas, nos moldes da consolidação das leis do trabalho, eu considero um atrofiamento da própria ação do governo. Se o governo muda, justamente por fazer as políticas públicas, o próximo governo deveria poder alterar o projeto social. Então, criar uma legislação tornando obrigatórias essas políticas, impondo que os governos futuros passem a adotá-las como uma obrigação do Estado, isso me causa espécie.
Diplomatique – Em que sentido?
Renato Rua– No sentido de condicionar os futuros governos a adotar as mesmas políticas públicas da área social. O governo Lula sucedeu o governo Fernando Henrique Cardoso, que já tinha políticas públicas em relação à Bolsa Família, tinha outro nome. Lula ampliou, alterou. Imagina se o Fernando Henriquetivesse aprovado uma lei desse tipo, uma lei de direito público.
Diplomatique – Mas toda lei não é de direito público?
Renato Rua– Não, a CLT é uma lei de direito privado. Existem leis de direito privado e leis de direito público. O princípio é o seguinte: o servidor público, ele só pode fazer aquilo que a lei autorizar; já o particular, nas nossas relações privadas, nós podemos fazer tudo aquilo que a lei não proibir. Então, se você aprova uma lei de direito público, direito administrativo, condicionando os governos futuros a cumprir rigorosamente aquela política pública, você está congelando a atuação desses governos.
Diplomatique – O salário mínimo pode ser considerado um avanço, e é exatamente esta situação.
Renato Rua– Não, não é. A lei sobre o salário mínimo é uma lei fundamentalmente dirigida para as atividades privadas e para as empresas públicas e de economia mista, que são obrigadas a seguir o mesmo regime de direito privado.
Diplomatique – Se a CLT está no âmbito do direito privado, então não é possível fazer esta comparação, que o Lula está fazendo, entre a CLT e a consolidação das leis sociais?
Renato Rua– Eu vejo como uma situação um pouco complicada aprovar uma lei de direito público para que as políticas sociais venham a ter um caráter de política de Estado, condicionando os governos futuros a ter exatamente a mesma política pública em determinado assunto, congelando praticamente a ação dos futuros governos.
Diplomatique – A social democracia dos países nórdicos garante uma qualidade na prestação de serviços públicos, como educação, saúde, previdência, de caráter universal e gratuito, como política pública assegurada por legislação, como política de Estado. É um novo pacto de civilidade onde a sociedade no seu conjunto decide garantir um mínimo de qualidade de vida para todo mundo. Este é o pacto civilizatório que se deu lá.
Renato Rua– Tudo bem, aí eu acho possível, numa visão programática, digamos assim. Talvez seja possível admitir isso dentro do que os juristas do direito público ou do direito constitucional chamam de progresso social. A partir daí é possível estabelecer um patamar mínimo civilizatório para as políticas públicas, essa é até uma expressão usada pelo ministro Mauricio Godinho Delgado, em relação ao direito do trabalho. Uma lei dizendo que a política pública é uma política de Estado, no seu sentido mais amplo, mas não com os detalhamentos, aí eu concordo.
Diplomatique – O Brasil precisa promover uma melhor repartição da riqueza social, que pode se dar pela mão do Estado, por meio das políticas públicas e garantir esse patamar mínimo civilizatório. É possível consolidar e ampliar os direitos sociais do ponto de vista jurídico?
Renato Rua– O caminho é estabelecer normas de direito público, de direito administrativo, programáticas para o Estado. O que obriga os governos a cumprir minimamente aquelas políticas públicas. Pegue, por exemplo, a Constituição portuguesa de 1976. Ela consagrou os direitos fundamentais, é bem abrangente, mas ela é enxuta, não é tão detalhista quanto a brasileira. Ela traz essas visões mais amplas, deixando para a legislação infracondicional fazer esse detalhamento, essa operacionalidade.
Diplomatique – Hoje você tem 50 milhões de brasileiros que recebem o Bolsa Família, e isso melhorou substancialmente, apesar de ser um valor muito baixo, sua condição de vida. Se acontecer o que aconteceu em Brasília com o Bolsa Escola, que acabou junto com o governo do Cristovam Buarque, nós vamos ter 50 milhões de pessoas que não vão mais receber esse subsídio. Imagine isso em larga escala, com todos os programas sociais atuais, você acha que o próximo presidente vai falar que isso tudo é bobagem?
Renato Rua– O jurista tem tendência a pensar muito em termos de Constituição. Mas realmente você pode fazer uma legislação infraconstitucional até especificando como isso vai funcionar, até porque a mudança de uma lei, depois, é muito mais fácil que a mudança da Constituição. Então, você pode realmente fazer uma legislação de consolidação das políticas sociais, estabelecendo alguns patamares mínimos na própria legislação. E essa legislação seria de direito publico, de natureza de direito administrativo, e por isso obrigando, por assim dizer, os serviços públicos a cumpri-la.
Diplomatique – Em todos os níveis da Federação?
Renato Rua– A legislação Federal seria para as políticas públicas do governo federal. Parece-me que os estados teriam que aprovar isso em suas Assembleias Legislativas, e as Câmaras Municipais também, mas é possível. O jurista, antes de fazer a lei, de trabalhar com a dogmática, ele tem que pensar em como essa lei será aplicada, considerar aspectos econômicos, políticos, sociais etc. Você tem que fazer uma lei de acordo com a realidade social de onde ela vai ser aplicada.
Diplomatique – Nós temos a maior desigualdade social do mundo. Nós viemos procurá-lo por sua especialização com relação à CLT. Existe a possibilidade de traçar um paralelo entr
e essa consolidação e uma eventual futura consolidação das leis sociais?
Renato Rua– É possível. O que é a consolidação? Não é um código, é um meio caminho entre leis esparsas, sem nenhuma sistematização, e o código, que é o ponto mais aperfeiçoado da unificação das leis. Veja o código civil, que coisa bonita: tem direito de família, direito das obrigações, direito das coisas, é uma coisa mais bem estruturada, este é um código. A consolidação é uma fase intermediária entre a dispersão de leis e o código. Você consolida as leis todas existentes, dá certa sistematização a elas, sem ser aquela sistematização do código, é mais o menos isso. Então, o que o Getúlio Vargas fez? Ele consolidou todas as leis que eram trabalhistas, que estavam dispersas, e trouxe tudo isso num diploma único, que é a Consolidação das Leis do Trabalho, que é o Decreto Lei de 1º de Maio de 1943.
Diplomatique – E isto trouxe vantagens?
Renato Rua– Sim, as vantagens são em primeiro lugar de ordem técnica, você encontra mais facilmente os direitos em uma peça única. Depois da CLT, várias leis surgiram, como por exemplo o 13º salário. Se o trabalhador for buscar a lei do 13º salário na CLT, ele não encontra, pois é uma lei posterior que não foi consolidada, é a Lei nº 4090 de 1962. O 13º não está na consolidação, o fundo de garantia não está na consolidação, hoje está se falando na necessidade de um novo código do trabalho para reunir esses novos direitos posteriores. Então, a ideia é boa no sentido de uma consolidação, é uma questão até de cidadania, passa a existir uma consolidação com toda a legislação sobre políticas públicas.
Diplomatique – Nós estamos falando na criação de novas leis, ou na consolidação das leis que já temos hoje no âmbito social?
Renato Rua– Pode ser as duas coisas, porque na consolidação da CLT em 1943, não só foram consolidadas as leis esparsas, como também se aproveitou a oportunidade e foram introduzidas outras leis, outras normas, acho que você pode fazer as duas coisas.
*Silvio Caccia Bava é diretor e editor-chefe do Le Monde Diplomatique Brasil.