Não existe desastre natural
Após as chuvas que assolaram Petrópolis em fevereiro, republicamos artigo clássico do geógrafo Neil Smith, o qual reflete sobre a naturalização da catástrofe social evidenciada por um evento natural de grandes proporções
Quando sugeri aos editores do Le Monde Diplomatique Brasil a publicação da tradução abaixo, a intenção era chamar a atenção para a forma como o autor mobiliza criticamente a análise sobre os “desastres naturais”. Isso aconteceu logo após as recentes chuvas em Petrópolis e sua pertinência para o contexto brasileiro já parecia suficientemente óbvia. O objetivo segue o mesmo, mas perante a imensa coleção desses e de outros desastres, o texto vem ganhando contornos mais amplos e me pareceu interessante contar um pouco mais dos caminhos que ele já percorreu até aqui.
O artigo foi originalmente escrito a partir dos desdobramentos políticos, econômicos, sociais e urbanos que tiveram origem quando o furacão Katrina atingiu a Costa do Golfo em 28 de agosto de 2005, mudando para sempre a história da região sul dos Estados Unidos. Essa data marca o aniversário de morte da antiga cidade de Nova Orleans e determina uma drástica alteração em sua demografia. O título do texto do geógrafo Neil Smith (falecido em 2012), “Não existe desastre natural”, provoca uma reflexão sobre a naturalização da catástrofe social evidenciada por um evento natural de grandes proporções.
Quando ele ganhou sua primeira publicação no Brasil, em agosto de 2020 (no aniversário de quinze anos do evento), no blog do Editorial Igrá Kniga,[1] a ideia era mostrar como o mesmo tipo de análise poderia auxiliar na compreensão da crise descortinada pelo novo coronavírus. Sobretudo porque ambas as crises têm origens, em tese, naturais (um furacão; um vírus); vítimas, em sua maioria, pobres e negras e indígenas (ao menos se pegarmos o caso do Brasil e dos Estados Unidos como exemplos); e uma relação estreita com a forma como funciona o capitalismo, já comprovadamente capaz de produzir eventos climáticos extremos e mais frequentes e, ao mesmo tempo, condições sociais cada vez mais vulneráveis para o recebimento desses mesmos eventos, que reforçam, por sua vez, as disparidades já existentes.
Nesse mesmo semestre de 2020, estávamos todos influenciados pelos debates em torno da pandemia e dos problemas sociais que esse fenômeno fez emergir. A publicação do livro Pandemia & Agronegócio no Brasil, de Rob Wallace, foi um marco naquele ano e a discussão promovida pelo amigo e tradutor da obra, Allan Rodrigo de Campos Silva, chamou a atenção para a existência de um modo de produção capitalista de pandemias. Essa ideia havia surgido da leitura do livro de Wallace, que investiga os circuitos mundiais de capitais como os principais responsáveis pela produção de novas doenças e desloca, assim, o entendimento sobre o epicentro de cada epidemia/pandemia para os grandes centros financeiros do mundo (bolsas de Hong Kong, Londres, Nova York), evidenciando que as condições naturais para o surgimento desses surtos são produzidas pela dinâmica expansionista do capitalismo contemporâneo. Com a publicação de “Não existe desastres naturais” naquele momento, a ideia era justamente ampliar essa problemática da pandemia e pensar num modo de produção capitalista de desastres naturais. Por um lado, o capitalismo vem sendo responsável pelo acirramento de eventos climáticos. Por outro, a naturalização dos desastres que esses eventos causam é produto do próprio capitalismo e ajuda a esconder as condições sociais que os eventos naturais afloram quando atingem determinadas localidades.
Voltamos ao princípio. Veio, então, a forte temporada de chuvas em todo o Brasil e a tragédia de Petrópolis marcou o evento mais violento desse período. A sugestão de publicação do texto por este canal, porém, não contava com os mais recentes acontecimentos. Antes que eu o enviasse para publicação, fomos tomados pela guerra entre a Rússia e a Ucrânia, parecendo quase impossível falar de outra coisa sem passar por esse assunto. E se olharmos de perto, eventos climáticos extremos (quando atingem localidades populosas e pouco protegidas) carregam similaridades com guerras de proporções como a que assistimos agora: destruição de infraestruturas e de casas; migração forçada e repentina; e um apetite feroz de circuitos de capitais interessados nos desdobramentos do evento/conflito e na reconstrução de todo o espaço destruído. O texto de Neil Smith expõe relações interessantes entre os “desastres naturais”, as guerras e os circuitos do capital, além de mostrar como o racismo estrutura todos esses processos no território estadunidense. Com os casos de racismo anti negro ocorrendo na migração forçada na atual guerra na Ucrânia e as declarações de jornalistas europeus sensibilizados apenas com a destruição de um território branco, a presente tradução parece ganhar ainda mais pertinência.
O furacão Katrina, naquele momento, expôs a proximidade existente entre os regimes de exceção impostos pelos Estados Unidos ao restante do mundo e as formas de atuação da política interna. George W. Bush deixou implodir, em território nacional, o mesmo caos que as bombas provocaram na concomitante guerra do Iraque e deixou evidente que o capitalismo por despossessão não é exclusividade das regiões periféricas do planeta, mas fermenta amargamente no centro do capitalismo. Boa parte da Costa do Golfo se tornou território em guerra: o Katrina provocou a maior diáspora da história estadunidense (aproximadamente 1,5 milhão pessoas espalhadas em todos os estados do país) e um apetite feroz das empreiteiras que reconstruíram a cidade após os destroços – cinicamente, as mesmas usadas para a reconstrução do Iraque.
O evento natural teve realmente um forte impacto sobre a região. Mas por trás das águas turvas que embaçam a visão sobre o desastre está a retirada de financiamento dos equipamentos públicos capazes de prevenir tanta destruição. Ao contrário do que se imagina, o maior problema de Nova Orleans não foi o furacão em si, mas o rompimento dos diques e barragens que sustentavam as águas que a cercam. A cidade, assim, sitiada pelo Rio Mississipi, forçou grande parte de sua população a abandoná-la. Aqueles que não tinham dinheiro para financiar sua fuga, foram obrigados a ir para os grandes campos de concentração provisórios destinados pela municipalidade: o estádio Superdome e o Centro de Convenções. Ali, os habitantes foram impedidos de sair e, sob a mira das armas da Guarda Nacional, não puderam nem mesmo mobilizar a organização dos auxílios básicos que recebiam de entidades privadas. Os primeiros reforços oficiais não vieram em forma de água, comida ou remédios, mas como policiamento… e tinham um único objetivo: evitar os saques de estabelecimentos em uma cidade deserta e destruída. Se o primeiro momento é marcado pelo terror do furacão e do alagamento, logo na sequência se impõe a tentativa direta do Estado em fazer morrer ou expulsar da cidade aqueles que tentavam sobreviver.
Bush buscou colocar na conta da natureza os efeitos catastróficos de uma administração social já em crise e, assim, se esquivou do problema enquanto pôde. Entretanto, os impactos devastadores de um evento natural só se tornam um desastre social a depender de sua localização. E Nova Orleans, com sua população majoritariamente negra, já estava abandonada há muito tempo. Os efeitos do desastre, no caso do Katrina, só fizeram aumentar a já enorme acumulação histórica de destroços impostos pelo Estado sobre a população negra e pobre da cidade.
Os efeitos do “Furacão Bush” – o furacão mais racista da história recente estadunidense – representaram uma oportunidade para os financistas urbanos, que viram no embranquecimento da cidade uma possibilidade de acréscimo no preço de mercado das áreas que seriam reconstruídas. A diáspora negra de Nova Orleans foi então vista como um auxílio divino a um processo já há muito tempo desejado de reconfiguração da região mais negra dos Estados Unidos. Confira a seguir o artigo de Neil Smith:
Não existe desastre natural
É geralmente aceito entre os geógrafos ambientais a ideia de que não existe desastre natural. Em todo estágio e aspecto de um desastre – causas, vulnerabilidade, estágio de prevenção, reconstrução, resultados e resposta –, os contornos do desastre e a diferença entre quem vive e quem morre é, em maior ou menor medida, um cálculo social. O furacão Katrina fornece a confirmação mais assustadora desse axioma. Isso não é simplesmente uma questão acadêmica, mas também prática, e tem tudo a ver com a maneira com a qual sociedades absorvem e se preparam para os eventos naturais e como elas podem ou devem reconstruir na sequência. É difícil não ter compaixão estando na esteira de um desastre tão desnecessariamente mortal, mas é importante, no calor do momento, colocar as ciências sociais para trabalharem como um contrapeso às tentativas oficiais de relegar o Katrina à lata de lixo histórica dos inevitáveis desastres “naturais”.
Primeiro, as causas. A negação da naturalidade dos desastres não é, de forma alguma, uma negação do processo natural. Terremotos, tsunamis, nevascas, secas e furacões são, certamente, eventos da natureza que requerem um conhecimento da geologia, da geografia física ou da climatologia para serem compreendidos. Entretanto, se um evento natural é um desastre ou não depende, em última instância, de sua localização. Um grande terremoto no Hindu Kush pode não resultar em desastre algum, enquanto um evento com a mesma intensidade na Califórnia poderia ser um desastre. Mas mesmo nos eventos climáticos, as causas naturais não são inteiramente divorciadas das sociais. O mundo experimentou recentemente um aquecimento dramático que cada vez mais é atribuído pelos cientistas às emissões de carbono no ar e, ao redor do mundo, o Katrina é amplamente visto como evidência de uma mudança climática socialmente induzida. Um único furacão como este, mesmo quando seguido pelo igualmente intenso furacão Rita, ou ainda quando incorporado à uma temporada recorde de furacões no Atlântico em 2005, não é, por si só, evidência conclusiva do aquecimento global induzido por seres humanos. No entanto, seria irresponsável ignorar esses sinais. A administração George W. Bush fez exatamente isso e está feliz em atribuir o registro sombrio de mortes e destruição na Costa do Golfo – talvez 1.200 vidas nas últimas contagens – a um ato da natureza. Provou-se não apenas omissa, mas ideologicamente oposta à crescente evidência científica do aquecimento global e ao fato de que o aumento do nível do mar torna cidades como Nova Orleans, Veneza ou Daca imediatamente vulneráveis a futuras calamidades. Qualquer que seja a interferência política na ciência, a suposta “naturalidade” dos desastres se torna aqui uma camuflagem ideológica para as dimensões sociais (e, portanto, evitáveis) de tais desastres, servindo a interesses sociais bastante específicos.
A vulnerabilidade, por sua vez, é altamente diferenciada; algumas pessoas são bem mais vulneráveis que outras. Dito de outra maneira, em muitos climas as pessoas ricas tendem a se apropriar das terras altas, deixando aos pobres e à classe trabalhadora as áreas mais vulneráveis à inundação e à pestilência ambiental. Isso é uma tendência, não uma generalização rígida: a propriedade à beira-mar marca uma grande exceção em muitos lugares, e La Paz, na Bolívia, onde os ricos vivem no vale mais quente próximo aos 4.000 metros de altitude, é outra dessas exceções. Em Nova Orleans, entretanto, os gradientes topográficos se intensificaram como gradientes de raça e de classe, e como a evacuação do Katrina demonstrou tão tragicamente, os mais bem afortunados tinham carros para escapar, cartões de crédito e contas bancárias para suprimentos e hotéis de emergência; seus parentes mais próximos provavelmente tinham recursos para financiar a evacuação, e os ainda mais ricos tinham também apólices de seguro para reconstrução. Não apenas o mercado, mas as sucessivas administrações (desde a escala federal à municipal), tornaram a população mais pobre de Nova Orleans mais vulnerável. Desde 2001, sabendo que um furacão catastrófico era provável e possivelmente devastaria Nova Orleans, o governo Bush, entretanto, abriu centenas de quilômetros quadrados de área úmida ao desenvolvimento urbano (à maneira como o mercado melhor faz) e, nesse processo, erodiu a proteção natural de Nova Orleans. Além disso, o governo cortou o orçamento do Corpo de Engenheiros do Exército dos Estados Unidos em Nova Orleans em 80%, evitando, assim, melhorias no bombeamento e nas barragens. Ao mesmo tempo, ele reduziu os impostos para os ricos e canalizou recurso para uma guerra fracassada no Iraque.[2] Dada a espantosa surpresa com que as pessoas ao redor do mundo receberam as imagens de uma população afro-americana abandonada na lagoa de esgoto mortal da Nova Orleans pós-Katrina, é difícil não concordar com o senador de Illinois, Barack Obama: “o povo de Nova Orleans não foi abandonado apenas durante o furacão”, mas “há muito tempo”.[3]
Depois das causas e da vulnerabilidade, vem a prevenção. A incompetência dos preparativos para o Katrina, especialmente no nível federal, é bastante conhecida. Assim que o furacão atingiu a Flórida, quase três dias antes de chegar à Nova Orleans, ficou evidente que essa tempestade era bem mais perigosa do que as velocidades e a intensidade do vento sugeriam. Os meteorologistas sabiam que o furacão atingiria uma região abrangendo vários estados, mas a Agência Nacional de Gerenciamento de Emergências (Fema), supervisionada por um político nomeado para o cargo – sem experiência relevante e recentemente subordinado ao Departamento de Segurança Interna –, assumiu a obrigação, como de costume. Eles enviaram para a região apenas um quarto das equipes disponíveis de busca e salvamento. No entanto, a cidade de Nova Orleans só recebeu essa primeira equipe após o fim da tempestade.[4] Mais de um dia antes de atingir a região, o Katrina foi descrito pelo Serviço Nacional de Meteorologia como um “furacão de força sem precedentes”, provável de tornar a área atingida “inabitada por semanas, talvez mais”.[5] Dias depois, enquanto o presidente pulava de uma sessão de fotos para outra, a Casa Branca, que não se preocupou em ouvir seus cientistas, parecia ainda não entender a previsão daquele aviso ou a dimensão do desastre.
Os resultados do Katrina, e as respostas a ele, estão ainda frescos em nossa memória enquanto se escreve, mas é importante registrar alguns detalhes para que a brutalidade do que aconteceu por lá não seja sutilmente apagada ao se reescrever a história. Os resultados podem ser avaliados a partir das milhares de vidas perdidas desnecessariamente, bilhões de dólares em propriedades destruídas, economias locais devastadas etc. Mas essa é apenas metade da história. As imagens que ricochetearam ao redor do mundo de um Estados Unidos inválido, indiferente e incapaz de proteger a própria população, recebendo ofertas de ajuda de mais de cem países, apenas reafirmaram para muitos a percepção de uma superpotência decadente, percepção já cristalizada com a derrocada do Iraque. O nível da raiva amplamente televisionada pelos sobreviventes, com os corpos flutuando ao fundo, chocou o mundo. Os repórteres não estavam “inseridos” nesse momento, e assim as imagens eram reais, sem censura e cruas. À medida em que o verdadeiro horror se desenrolava, a mídia trabalhava sem roteiro, e levou quase uma semana antes que as narrativas tradicionais dos noticiários tomassem as rédeas novamente. Mas aí já era tarde. Refugiados em desespero,[6] em sua maioria afro-americanos, concluíram que estavam sendo esquecidos no Superdome e no Centro de Convenções para morrer; imploravam por ajuda – qualquer ajuda –, ao mesmo tempo em que exigiam saber, com raiva, por que os repórteres podiam entrar e sair e eles não.[7]
Quando a Guarda Nacional chegou, rapidamente ficou claro que eles estavam trabalhando sob ordens de controlar a cidade militarmente e de proteger a propriedade privada, ao invés de levar ajuda aos desesperados. Cidadãos raivosos, que perambulavam pela cidade fétida em busca dos ônibus prometidos que nunca vieram, foram impedidos de sair sob a mira das armas. “Não estamos transformando o West Bank [um subúrbio de Nova Orleans] num outro Superdome”, argumentou um oficial responsável pelo subúrbio. Grupos de refugiados que tentaram organizar coletivamente água, comida e abrigo também foram desmembrados sob a mira das armas da Guarda Nacional. Várias vítimas relataram ter sido sitiadas e a Guarda Nacional recebeu ordens de não distribuir a água a elas destinada.[8] Durante os primeiros quatro dias após o furacão ter atingido Nova Orleans, com a ajuda do governo ainda amplamente ausente, o presidente Bush aconselhava os refugiados a confiarem nas instituições de caridade privadas, tais como o Exército da Salvação.[9] Quando o primeiro auxílio federal chegou, aqueles que receberam e abriram as caixas, se perguntaram, atônitos, por que estavam recebendo a vacina contra o antraz. “Essas são as caixas que o Departamento de Segurança Interna nos mandou enviar”, veio a resposta.
Infelizmente, por mais chocante que tenha sido, a tragédia de Nova Orleans não é a única nem tampouco é inesperada, exceto talvez por sua escala. As dimensões de raça e de classe de quem escapou e de quem foi vitimado por esse desastre decididamente não natural poderiam não somente ter sido previstas (e foram), mas seguem uma longa história de experiências semelhantes. Em 1976, um terremoto devastador matou cerca de 23 mil pessoas na Guatemala e deixou 1,5 milhão de pessoas em situação de rua. Eu digo “cerca”, porque a vasta maioria das mortes não resultou diretamente do evento físico em si, mas aconteceu nos dias e semanas que se seguiram. Uma assistência internacional massiva inundou a Guatemala, não sendo, entretanto, canalizada aos camponeses mais afetados e necessitados, que acabaram chamando o desastre de “terremoto de classe”.[10] Nas comunidades que margeiam o Oceano Índico, devastadas pelo tsunami de dezembro de 2004, as fissuras étnicas e de classe das antigas sociedades foram reforçadas ainda mais profundamente pelos padrões de resposta e reconstrução após o desastre. Lá, a “reconstrução” impede, forçosamente, os pescadores locais de restabelecer seus meios de subsistência, mas planeja, em vez disso, uma orla segura para os turistas ricos. Os habitantes locais chamam o esforço de reconstrução de “segundo tsunami”. Em Nova Orleans, já existem rumores do Katrina como “Furacão Bush”. Não é apenas no chamado Terceiro Mundo, como podemos ver, que as chances de sobreviver a um desastre são, mais do que qualquer outra coisa, dependentes da raça, etnia e classe social.
Em todas as fases, desde o início até o momento da reconstrução, os desastres não apenas achatam as paisagens, lavando-as suavemente. Eles também aprofundam e erodem os sulcos das diferenças sociais que encontram. Em questão de dias, com corpos ainda não coletados e antes até de se conhecer a contagem dos mortos, as discussões na imprensa se voltaram para a oportunidade representada pelo desnudamento de Nova Orleans. Com a estimativa de meio milhão de pessoas excluídas da cidade, a Fema começou a organizar espaços de residências móveis para acomodar até 130 mil famílias de refugiados em parques estaduais distantes, campos de escoteiros, ou seja, qualquer área possível de terrenos baldios longe da cidade. Diante da situação, essa parece ser uma estratégia razoável, exceto pelo fato de que se deve ter muita fé para imaginar que o primeiro item de negócios em Nova Orleans, financiado com recursos federais vindos da administração Bush, firmemente pró-mercado, será para reconstruir habitação social para que os mais necessitados possam retornar. Já no interlúdio entre o Katrina e as novas inundações provocadas pelo Furacão Rita, empresas e proprietários de imóveis foram os privilegiados que receberam autorização para voltar para a cidade com proteção militar. É muito mais provável, portanto, que a classe trabalhadora e os cidadãos afro-americanos de Nova Orleans sejam mantidos nos arredores, por meses ou anos, sob a alegação de que eles não têm casa para onde voltar, e na esperança ou expectativa de que eles simplesmente dispersarão por estarem frustrados.
De fato, muitos dos que foram evacuados dos furacões Charley e Ivan em 2004 permaneceram em estacionamentos de trailers na Flórida. E o editor neoconservador do New York Times, David Brooks, não perdeu tempo em argumentar que “pessoas sem habilidades de classe média” não deveriam ser autorizadas a reabitar a cidade: “se simplesmente levantarmos novas construções e permitirmos que as mesmas pessoas voltem para seus antigos bairros, então a área urbana de Nova Orleans se tornará tão degradada quanto antes”.[11] Se é certo que o caráter dos bairros dependesse principalmente de quem se mudou para eles, deve haver alguma verdade nessa afirmação. Mas se, como vários enfoques da teoria urbana afirmam agora, o destino de um bairro estiver mais ligado a como o capital (público ou privado) investe em um bairro (e como ele também desinveste), então o foco deve ser menos em culpabilizar as vítimas desse desastre mortal do que nos motivos dos investidores de capital. O representante no Congresso de Baton Rouge, Richard Baker, oferece um pouco de consolo a esse respeito. “Nós finalmente limpamos as habitações sociais em Nova Orleans”, riu discretamente um Baker com a guarda baixa. “Nós não podíamos fazer isso, mas Deus fez.”[12]
A lição final da geografia ambiental naquilo que se refere aos desastres é que, longe de achatar as diferenças sociais, a reconstrução de desastres invariavelmente aprofunda as marcas da opressão e exploração sociais. E assim, enquanto abolia a competição empresarial, oferecendo contratos sem licitação a algumas companhias que operam no Iraque – Bechtel, Fluor Corp., Haliburton –, o governo Bush determinou uma competição mortal entre os trabalhadores desesperados ao suspender a lei federal que exigia aos empregadores pagar pelo menos o salário local vigente. Ao mesmo tempo, mesmo com muitos dos mortos ainda desaparecidos, as construtoras baixaram sobre Nova Orleans com carteiras cheias de dinheiro e com a boca salivando. Antecipando que a cidade seria reconstruída com diques melhores e mais altos, e com bem menos pessoas da classe trabalhadora e afro-americanos, duas semanas depois do Katrina, Nova Orleans já se assemelhava a uma corrida do ouro das construtoras.[13] Essas pessoas, essas construtoras, essas corporações, dizem muitos dos cidadãos de Nova Orleans, são os “verdadeiros saqueadores”. Em contraste, aqueles desalojados e que não possuem propriedade privada para recuperar, enfrentam baixos salários, custos crescentes por moradias escassas e, à medida que a simpatia inicial se esvai, o aumento da estigmatização.
Quando o presidente Bush insiste que “Nova Orleans voltará a ser aquela grande cidade novamente”, é difícil acreditar que o governo tenha em mente uma habitação social acessível, segura e de boa qualidade. Uma gentrificação a atacado, em uma escala nunca vista nos Estados Unidos, é o resultado mais provável.[14] Depois do furacão Bush, as pessoas pobres, afro-americanas e da classe trabalhadora, que foram evacuadas, não serão bem-vindas de volta à Nova Orleans. A cidade provavelmente será reconstruída para atrair um turismo que busca uma “Big Easy” disneyficada,[15] esbanjando uma autenticidade manufaturada ainda maior que o Bairro Francês nas proximidades.
É possível olhar para trás e identificar um grande número de decisões individuais que foram tomadas, e outras que não foram, que fizeram desse furacão um desastre social. Mas o todo não é a simples soma das partes. Não é uma conclusão radical dizer que as dimensões do desastre do Katrina se devam, em grande medida, não apenas às ações desta ou daquela administração local ou federal, mas ao funcionamento do mercado capitalista de forma mais ampla, especialmente em suas roupagens neoliberais. A recusa em enfrentar o aquecimento global está enraizada no poder global das corporações de petróleo e energia que temem por seus lucros e que, não coincidentemente, representam as bases de classe do poder no governo Bush; a população de Nova Orleans estava vulnerável não por conta da geografia, mas por causa do abandono de longo prazo de classe e raça, exacerbada pelo desmantelamento do Estado de bem-estar social promovido tanto pelos governos republicanos como democratas; a incompetência dos preparativos da Fema expressou camaradagem, favoritismo e privilégio da classe dominante, em vez de qualquer preocupação com os pobres e a classe trabalhadora; e a reconstrução parece destinada a capitalizar sobre essas desigualdades e aprofundá-las ainda mais. Em nenhum momento das próximas décadas os afro-americanos irão contabilizar novamente dois terços da população de Nova Orleans.
Há alternativas. O protocolo de Kyoto (o qual os Estados Unidos nem sequer assinaram) estava longe de ser perfeito, mas representava um denominador comum no combate ao aquecimento global. No que se refere aos preparativos, tanto a Oxfam America quanto as Nações Unidas, apontaram Cuba como um modelo plausível. Quando o furacão Ivan invadiu o Caribe em setembro de 2004, 27 pessoas morreram na Flórida e quase 100 em Granada, enquanto ninguém morreu em Cuba, apesar de também ter sido diretamente atingida no extremo oeste. Os cubanos não foram sempre bem sucedidos, mas a ONU e a Oxfam creditam seus méritos a diversos fatores. Em primeiro lugar, eles aprendem desde novos sobre o perigo dos furacões e como se preparar e responder ao fenômeno. Segundo, antes da chegada do furacão, as comunidades locais organizam uma limpeza para se protegerem de detritos potencialmente perigosos. Terceiro, preparação e evacuação são organizadas e coordenadas entre o governo central e as comunidades locais, e o transporte para longe do perigo é organizado como um projeto comunitário, em vez de ficar a cargo do mercado, a exemplo do que aconteceu em Nova Orleans e em Houston. Para prevenir incêndios, o fornecimento de gás e eletricidade é interrompido antes da chegada do furacão. Durante o furacão, equipes de emergência pré-organizadas e financiadas pelo Estado garantem água, comida e tratamento médico – no caso do furacão Ivan, foram organizadas 2 mil dessas equipes. O governo também destina recursos para as comunidades se reconstruírem.[16]
Por outro lado, a reconstrução do pós-Katrina nos Estados Unidos será dominada por contratos governamentais com grandes corporações, feitos de cima para baixo, acordados em dezenas (senão centenas) de bilhões de dólares, e mais outros bilhões em pagamentos de seguros a proprietários para que possam reconstruir nas mesmas áreas vulneráveis que foram destruídas. Essa solução pode ser boa se medida pelo critério do lucro capitalista – uma nova farra de compras do Golfo eleva o preço dos iates e, incrivelmente, as ações das seguradoras tendem a subir logo na sequência dos grandes desastres –, mas a mesma lógica de mercado que causou tamanha destruição social leva também o desastre social e ambiental para aqueles que não estão alinhados com os contratos governamentais e os pagamentos de seguros de propriedades.
Mas há uma alternativa. “Nós não descansaremos enquanto esse desastre estiver sendo usado como uma oportunidade para substituir nossas casas por mansões e condomínios recém construídos em uma Nova Orleans gentrificada,” diz uma declaração de uma grande coalizão de grupos de baixa renda de Nova Orleans, a Unidade Comunitária de Trabalho.[17] Eles seguiram insistindo que a reconstrução da cidade não seja dominada pela necessidade das empresas, feita de cima para baixo, mas que aqueles que foram evacuados de Nova Orleans tenham o poder sobre a forma como a reconstrução deve proceder. Os bilhões de dólares já anunciados pelo Congresso e os fundos arrecadados pelas caridades pertencem, por direito, às vítimas. Alguns dirão que a reconstrução é muito complicada, e de fato é, mas o histórico de empresas como Becthel e Haliburton no Iraque dificilmente serve como evidência para a defesa em Nova Orleans do modelo impositivo usado naquele país.
No fim das contas, a questão da reconstrução é apenas secundariamente técnica. Ela é, em primeiro lugar, política, e dificilmente se pode esperar que o mesmo abandono corporativo e governamental que promoveu um desastre tão amplo se transforme no sentido de empoderar uma população enfraquecida. Dada a resposta visceral às centenas de mortes desnecessárias resultantes do Katrina, qualquer tentativa de impor uma solução de cima para baixo, a partir da força, é provável de incitar uma resposta igualmente visceral vinda de baixo. Se o instinto primeiro da administração Bush foi evitar o governo e confiar em instituições privadas de caridade para ajudar as vítimas do Katrina, o governo deve seguir o mesmo instinto em relação aos refugiados de Nova Orleans e em seu processo de reconstrução. Não existe desastre natural. E a suposta naturalidade do mercado é o último lugar no qual se deve procurar uma solução para esse massacre desastroso.
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Publicado originalmente em 11/06/2006: https://items.ssrc.org/understanding-katrina/theres-no-such-thing-as-a-natural-disaster/
Primeira publicação da tradução em português: https://www.igrakniga.com/post/katrina-i-não-existe-desastre-natural-neil-smith
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Tradução de Bruno Xavier Martins
Bruno Xavier Martins é mestre em Geografia Humana pela USP, graduou-se em Geografia pela USP e Economia pela PUC-SP. É tradutor do livro Capitalismo carcerário, de Jackie Wang. Email: [email protected].
Neil Smith (1954-2021) foi distinguished professor de Antropologia no CUNY Graduate Center, onde também dirigiu o Center for Place, Culture and Politics. É autor, entre outros, dos livros His American Empire: Roosevelt’s Geographer and the Prelude to Globalization (University of California Press, 2004) e The Endgame of Globalization (Routledge, 2005).
Referências
[1] A primeira publicação do texto em português brasileiro saiu aqui: https://www.igrakniga.com/post/katrina-i-não-existe-desastre-natural-neil-smith.
[2] Sidney Blumenthal, “Katrina Comes Home to Roost”, The Guardian, 02/09/2005.
[3] Citado em Jerry Large, “Katrina: Race and Class Separte Yet Connected”, 18/09/2005.
[4] Eric Lipton, Christopher Drew, Scott Shane e David Rhode, “Breakdowns Marked Path from Hurricane to Anarchy. New York Times, 11/09/2005.
[5] “Urgent Warning Proved Prescient”, New Tork Times, 07/09/2005.
[6] George Bush declarou que “essas pessoas não são refugiadas, elas são americanas”. O esforço de tal distinção é duplamente cínico. Ele procura anular a experiência das aproximadamente 400 mil pessoas deslocadas, evacuadas e despejadas de Nova Orleans, dando-lhes algum tipo de superioridade e respeito normalmente não fornecidos aos “refugiados”. Mas isso também expõe o que Bush pensa sobre o resto do mundo, humilhando os milhões que permanecem como meros “refugiados”, uma categoria social assumidamente menor que a de “americanos”. Que Jesse Jackson tenha usado argumento semelhante, embora na tentativa de estabelecer respeito pelo afro-americanos em território nacional, é decepcionante.
[7] N.T.: A cidade de Nova Orleans tinha apenas dois grandes espaços de uso público que puderam ser usados como abrigo para os refugiados: o Centro de Convenções e o Superdome (estádio de futebol americano da cidade). Em Nova Orleans, os refugiados eram, em sua grande maioria, moradores negros e pertencentes aos bairros que ocupavam as curvas de nível mais baixas, atingidos diretamente pela invasão das águas do Rio Mississipi após a quebra dos diques de proteção da cidade. Mas isso não é tudo. Muitos habitantes, mesmo os daqueles bairros mais altos e abastados, pegaram seus carros e deixaram a cidade para não presenciar o horror já anunciado. O fato do Superdome e do Centro de Convenções terem ficado abarrotados de gente se deve à grande quantidade de pobres na cidade sem acesso a transporte particular e sem dinheiro para pagar por uma fuga terceirizada. O governo não financiou nenhuma forma de retirar as pessoas da cidade, mesmo que o desastre fosse bastante claro. Ao contrário, os relatos que vieram dos sobreviventes do Superdome indicam que ele foi usado como um campo de detenção provisória, onde os refugiados eram impedidos de sair, não tinham acesso à água ou comida, além de sofrerem coerção armada por parte das forças oficiais de segurança.
[8] Larry Bradshaw and Lorrie Beth Slonsky, “Hurricane Katrina — Our Experiences”, 05/09/2005; Mike Whitney, “The Siege of New Orleans”, informationclearinghouse.org, 08/09/2005.
[9] Allen Breed, “Try the Salvation Army Bush Tells Refugees”. Glasgow Daily Herald, 02/09/2005.
[10] Phil O’keefe, Ken Westgate, and Ben Wisner, “Taking the Naturalness out of Natural Disasters”, Natura 260 (April, 1976): 566-567.
[11] David Brooks, “Katrina’s Silver Lining”, New York Times, 08/09/2005.
[12] Quoted in Maureen Dowd”, Neigh to Cronies, New York Time, 10/09/2005.
[13] David Streitfeld, “Speculators Rushing in as the Water Recedes”, Los Angeles Times, 15/09/2005; Garry Rivlin, “For Hotelier, Crisis is Another Word for Opportunity”, New York Times, 22/09/2005.
[14] N.E.: ver Olivier Cyran, “Como matar uma cidade”, Le Monde Diplomatique Brasil, jan. 2019.
[15] N.T.: “Big Easy” é o apelido como a cidade de Nova Orleans é conhecida. Derivado do termo original “Disneyfication”, “Disneyfied”, como adjetivo à “Big Easy”, significa o processo de transformação de locais históricos em locais de entretenimento cenarizados para turistas. O termo conversa com o conceito amplamente difundido de “gentrificação”, do próprio Neil Smith, posto que como resultado de ambos ocorre a expulsão das pessoas mais pobres de um local e a incorporação de novas características ao bairro afetado.
[16] Connor Gorry, “UN Lauds Cuba as Model of Hurricane Preparedness” in In the Eye of the Storm: Disaster Management Lessons from Cuba (MEDICC Review, 2005), 9-10.
[17] Naomi Klein, “Let the people rebuilt New Orleans”, The Nation, 08/09/2005.