“Não posso parar de trabalhar”: a exposição ao vírus e o avanço da fome
A fala de um vendedor ambulante de 65 anos que continuava vendendo suas mercadorias pela cidade de São Paulo sintetizou o dilema que rapidamente ganhou o noticiário nacional e internacional: “O que você quer que eu faça? Se não morrer desse vírus, morro de fome. Não posso parar de trabalhar”
Entre o final de fevereiro e o início de março, uma sequência de fatos evidenciou que o novo coronavírus (Covid-19) não apenas chegaria ao Brasil, como também exigiria que nossa sociedade praticasse o distanciamento social. Em 11 de março, a Organização Mundial da Saúde passou a descrever a situação como uma pandemia e, com a confirmação do primeiro caso e da primeira morte em território nacional, diferentes governos estaduais e municipais passaram a decretar o início do período de quarentena.
Desde então, a palavra “fome” tomou o noticiário. Em 18 de março, antes mesmo de a quarentena ter sido decretada no estado de São Paulo, Gilson Rodrigues, líder comunitário e presidente da União de Moradores e Comerciantes de Paraisópolis, já anunciava que os moradores de favela, em especial os desempregados e as crianças que dependiam da alimentação escolar, iriam passar fome caso não houvesse um plano específico para minimizar os efeitos da crise social que se anunciava.1
Poucos dias depois, a fala de um vendedor ambulante de 65 anos que continuava vendendo suas mercadorias pela cidade de São Paulo sintetizou o dilema que rapidamente ganhou o noticiário nacional e internacional: “O que você quer que eu faça? Se não morrer desse vírus, morro de fome. Não posso parar de trabalhar”.2
O avanço da fome
A fome não chegou ao Brasil com o coronavírus. Se as gestões do PT no governo federal promoveram melhorias na situação alimentar dos brasileiros, em 2013 aproximadamente 52 milhões de pessoas (25,8 % da população) ainda conviviam com a preocupação de que os alimentos acabassem antes de poderem comprar mais comida ou se viam sem dinheiro para ter uma alimentação saudável e variada. Destas, aproximadamente 17,5 milhões (8,7% da população) também lidavam com a restrição quantitativa de alimentos em seus domicílios, ou seja, comiam menos do que achavam que deviam, pulavam refeições ou sentiam fome e não comiam por falta de dinheiro.3
Tudo indica que no momento em que a pandemia chegou ao Brasil essa situação era ainda mais grave. De acordo com o IBGE, entre 2013 e 2018, a taxa de desocupação passou de 7,2% para 12%; a subutilização da força de trabalho, de 17,1% para 24,6%; a proporção de pessoas ocupadas em trabalhos informais, de 40,3% para 41,5%; e a quantidade de pessoas vivendo na pobreza, de 24,9% para 25,3%.4 Dados como esses evidenciam por que para milhões de brasileiros a necessidade de isolamento social soou como um anúncio da fome.
É imprescindível reconhecer que a fome é vivida como um processo e não pode ser tomada apenas por suas consequências mais graves, como a desnutrição severa e a perda de peso. Muito antes dessas situações extremas, as pessoas já sofrem com inaceitáveis sensações físicas e psíquicas provocadas pela privação de alimentos. Precedida por preocupação, ansiedade e medo, causados pela perspectiva de que os alimentos (ou os meios para adquiri-los) não serão suficientes, a fome se inicia com a restrição da dieta a um grupo reduzido de alimentos, o que compromete a qualidade da alimentação. Nos casos em que a privação persiste ou se intensifica, a quantidade dos alimentos também é comprometida, o tamanho das refeições é reduzido e estas deixam de ser realizadas com a mesma frequência. Nos estágios mais graves, as pessoas passam por longos períodos sem alimentação, até se aproximarem da inanição.5
Desde o fim de março, matérias e reportagens jornalísticas apresentaram inúmeros relatos sobre a fome. Em apenas um dos jornais de grande circulação no país, foram noticiadas as histórias da auxiliar de limpeza que, após ser dispensada pelo patrão, relatou dificuldades para arcar com as refeições dos três filhos que antes comiam na escola; da diarista demitida pelo WhatsApp que afirmou depender da cesta básica entregue pela igreja; do casal de desempregados que declarou contar apenas com um pacote de arroz, dois de feijão, um litro de óleo e sal para alimentar a si próprios e aos dois filhos de 1 e 2 anos; do morador de rua que contou que bebia água para enganar o estômago nos dias em que não conseguia se alimentar; do pedreiro sem emprego que agradece quando tem feijão para acompanhar o arroz e que afirmou que prepara seus alimentos num fogão a carvão, pois não tem dinheiro para o gás; da mãe que relatou que ela e seus filhos passaram a acordar mais tarde para pular o café da manhã e ir direto para o almoço; do ajudante de pedreiro que ficou sem renda e contou que vai com o filho de 2 anos aos mercados de Parelheiros (São Paulo) pedir doações; e da mulher, beneficiária do Bolsa Família, que mesmo antes da quarentena já vasculhava caçambas de lixo de supermercados na Brasilândia (São Paulo) e pontuou que agora nem lá encontra algo para alimentar a família.6
Outras crises econômicas já demonstraram que suas consequências sobre a alimentação tendem a se estender por anos. Foi o que ocorreu durante a crise mundial de 2007-2008 e o período de recessão que a sucedeu. Apenas em 2009, de acordo com a Agência das Nações Unidas para a Agricultura e a Alimentação (FAO), a quantidade de pessoas cronicamente desnutridas no mundo aumentou em aproximadamente 100 milhões de pessoas, ultrapassando a marca de 1 bilhão de desnutridos.7 Mesmo em países desenvolvidos, essa crise produziu uma deterioração significativa da situação alimentar. Nos Estados Unidos, a insegurança alimentar cresceu aproximadamente 30% em 2008, tendo retornado ao patamar anterior à crise somente dez anos depois.8
Sendo assim, por mais grave que seja a situação atual, é preciso reconhecer que estamos vivendo a fase inicial de um longo processo de expansão e intensificação da fome.
Morrer de vírus ou morrer de fome?
O dilema entre “morrer de vírus ou morrer de fome” já se tornou um senso comum habilmente explorado pelos interessados na retomada das atividades econômicas, independentemente dos riscos que isso representa para a população. Se por um lado esse dilema tem se materializado na vida de milhões de brasileiros, por outro ele encobre ao menos dois fatos. Primeiro, dissimula que as pessoas mais pobres já são aquelas que estão sendo simultaneamente expostas ao vírus e à fome. Segundo, mascara que a pandemia simplesmente exacerbou um dilema anterior, que já pesava sobre grande parte da população: continuamente expropriada das condições necessárias para garantir seu sustento, ela é obrigada a aceitar as condições de trabalho impostas ou sofrer com a fome.
A exposição ao vírus não deixa de ser, portanto, o mais novo risco a que muitos devem se submeter em troca de um emprego. É o que explicita a fala de uma diarista que vive em Barra do Ceará (Fortaleza) com o marido e dois filhos e continua caminhando por uma hora até o trabalho para economizar na condução: “A gente tem medo de pegar coronavírus, mas tem que buscar o alimento”.9
Deixar morrer
Desde o início da pandemia o governo federal deixou claro que não se importaria em sacrificar uma parte da população para manter-se fiel aos interesses das classes dominantes, dos grandes proprietários de terra à aristocracia financeira. A principal medida para assistir aqueles que não têm renda para adquirir os alimentos de que necessitam foi o pagamento, para trabalhadores sem carteira assinada, desempregados e microempreendedores individuais com renda per capita de até meio salário mínimo, de um auxílio emergencial de R$ 600, por três meses. Não é preciso muito esforço para constatar que o valor desse auxílio é insuficiente para garantir que as famílias que dele dependem não passem fome. Basta considerar a pesquisa realizada pelo Dieese em dezessete capitais que identifica que, em abril deste ano, o custo da cesta básica de alimentos para um adulto variava entre R$ 401,37 (Aracaju) e R$ 556,35 (São Paulo).10
O Estado, em seus três níveis de governo, possui outros meios para assegurar que ninguém passe fome durante a pandemia. O fortalecimento e a articulação de políticas já existentes poderiam contribuir para que não faltasse alimentos para a população durante e após a pandemia. O uso do Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae) para garantir que todas as crianças da rede pública de ensino recebessem auxílio alimentar, ou ainda do Programa de Aquisição de Alimentos da Agricultura Familiar (PAA), tanto para escoar produtos de pequenos produtores (que em muitos casos já encontram dificuldades) como para destiná-los a equipamentos públicos de segurança alimentar e nutricional (bancos de alimentos, restaurantes populares etc.), seriam formas de assegurar que os alimentos chegassem a quem mais precisa.
É grande a lista de medidas factíveis, e os exemplos explicitam a existência de conhecimento e meios técnicos para enfrentar a fome. Tampouco faltam os recursos econômicos, seja porque o Estado demonstra possuí-los quando se trata, por exemplo, de destinar a maior parte do orçamento federal para os gastos com a dívida pública (atendendo aos interesses do setor financeiro),11 seja porque o Poder Legislativo tem as prerrogativas necessárias para obtê-los por meios variados, como a tributação de grandes fortunas.
Contudo, sem o poder político necessário para que as medidas para enfrentar a fome sejam aprovadas pelo Legislativo e colocadas em prática pelo Executivo, podemos imaginar, mas não realizar, as mudanças necessárias no orçamento e funcionamento do Estado.
A solidariedade dos trabalhadores
O atual cenário impôs aos próprios trabalhadores e trabalhadoras a constituição por si mesmos (e contra todas as adversidades) de formas de ação organizada para enfrentar a fome. Utilizando recursos próprios ou advindos de doações, desde o início da crise multiplicaram-se iniciativas autogestionadas no campo e na cidade para a doação de alimentos. As redes de solidariedade que se formaram possuem enorme capilaridade e têm demonstrado que, especialmente nos momentos de crise, os trabalhadores só podem contar consigo mesmos.
Algumas dessas iniciativas, por conta de sua capacidade de mobilização adquirida historicamente na luta, possuem maior visibilidade. É o caso das ações promovidas pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), que até o início de junho já havia doado mais de 1.200 toneladas de alimentos e 50 mil marmitas solidárias.12 Cabe destacar que as ações desse movimento têm explicitado que a doação é fruto da mobilização dos trabalhadores e um ato de solidariedade, retirando o estigma que pesa sobre aqueles que delas dependem.
Ações como essas diferem daquelas promovidas pela filantropia corporativa, realizada por empresas que defendem implícita ou explicitamente o fim dos direitos trabalhistas e previdenciários e o desmonte dos serviços públicos gratuitos e universais. Muitas dessas empresas, inclusive, mantêm formas de apoio ao governo Bolsonaro em troca de uma agenda econômica neoliberal. Para quem, até ontem, repetia insistentemente que “não existe almoço grátis”, as doações funcionam como marketing social necessário para a manutenção de relações econômicas que produzem a fome.
Contudo, a magnitude da crise não permite que ela seja enfrentada apenas com doações de alimentos e, mesmo que seja ressaltada a importância e magnitude dos esforços autogestionados, desde o início do período de quarentena a situação alimentar já se deteriorou significativamente.
O agravamento da fome e da exploração
Nos anos 1980, Amrita Rangasami destacou que as crises de fome não podem ser compreendidas considerando-se apenas as vítimas desse processo. De acordo com a autora indiana, essas crises devem ser interpretadas como um processo que também produz ganhos para uma parte da sociedade. Afinal, assolada pela fome, a população empobrecida fica ainda mais exposta ao endividamento ou a vender tudo o que possui para sobreviver, e se vê obrigada a aceitar remunerações mais baixas e condições de trabalho ainda mais precárias. Assim, as crises de fome também são caracterizadas pelo aumento da expropriação e exploração dos trabalhadores e, por isso, representam novas e ampliadas oportunidades para a acumulação. Há, portanto, quem ganhe com a fome.
Os próximos meses e anos, assim como aconteceu após a crise mundial de 2007-2008, tendem a ser marcados por revoltas alimentares (food riots) com potencial de politizar a fome e ameaçar a estabilidade política, econômica e social. Se não é possível prever a intensidade e o sentido político dessas revoltas, é certo que a mobilização e a organização da população serão essenciais para se contrapor à fome que já se agrava.
Por conta da pandemia e de suas consequências, muitos de nós estão vivendo um momento de radical desilusão. Caracterizada pela tristeza, frustração e decepção, a desilusão também pode ser lida como o momento em que, porque nossas ilusões caem por terra, nos vemos obrigados a enfrentar a realidade (enfrentar a fome) sem falsas esperanças.
José Raimundo Sousa Ribeiro Junior é doutor em Geografia Humana pela USP, professor visitante do Instituto de Saúde e Sociedade da Unifesp e representante da Associação dos Geógrafos Brasileiros (AGB-SP) no Conselho Municipal de Segurança Alimentar (Comusan).
1 “Favelas serão as grandes vítimas do coronavírus no Brasil, diz líder de Paraisópolis”, BBC News Brasil, 18 mar. 2020.
2 “Se não morrer desse vírus, morro de fome”, diz ambulante de 65 anos, UOL Notícias, 22 mar. 2020.
3 Pnad: Segurança Alimentar – 2013, Rio de Janeiro, IBGE, 2014.
4 Síntese de indicadores sociais, Rio de Janeiro, IBGE, 2019.
5 Kathy L. Radimer et al., “Understanding hunger and developing indicators to assess it in women and children” [Entendendo a fome e indicadores de desenvolvimento para acessá-lo em mulheres e crianças], Journal of Nutrition Education, v.24, n.1, 1992.
6 Relatos extraídos de reportagens publicadas pela Folha de S.Paulo entre 27 de março e 10 de abril.
7 FAO, “The state of food insecurity in the world” [O estado da insegurança alimentar no mundo], Roma, 2009.
8 Ver Economic Research Service, USDA, “Food Security in the U.S., Key Statistics & Graphics”.
9 “Desigualdade eleva letalidade da Covid na favela, diz estudo”, Deutsche Welle, 28 maio 2020.
10 Pesquisa Nacional da Cesta Básica de Alimentos, Dieese, 11 maio 2020.
11 Auditoria Cidadã da Dívida.
12 Catarina Barbosa, “Campanha nacional do MST já doou 1.200 toneladas de alimentos durante pandemia”, Brasil de Fato, 3 jun. 2020.