Não se trata de “Lugar de Cale-se”
No período escravocrata, não tão distante, afinal, até pouco tempo atrás vivíamos nele, a imposição de mordaça servia como forma de calar os rebeldes e controlar a sua liberdade alimentar. A ditadura militar foi outro momento da história brasileira que também deixou marcas na construção de uma memória
Em 2001, Kelly Key lançou sua música Cachorrinho com quatro comandos que ficariam marcados na história da música pop: ‘Sit, junto, sentado, calado’. Comandos esses que não apenas aparecem na música da cantora, mas também se refletem na prática política cotidiana do Brasil, um país marcado por um histórico de golpes, ditaduras e escravização.
O silêncio como comando sempre foi o principal instrumento das elites brasileiras para a gestão de um povo que, como aponta o economista Mario Theodoro (2022), faz parte de uma sociedade desigual, cujas estruturas são formadas pelo racismo. Esse silêncio, em muitos episódios da história, não foi fruto de escolhas, mas da necessidade de sobrevivência.
No período escravocrata, não tão distante, afinal até pouco tempo atrás vivíamos nele, a colocação de mordaça em pessoas escravizadas servia como forma de calar os rebeldes e gerir a sua liberdade alimentar. Como Grada Kilomba (2019) já apontou, a instalação de máscaras nos corpos negros escravizados não repercutia apenas em nível material, mas simbolicamente servia como exemplo para que outros não mais abrissem a boca.

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A ditadura militar também deixou marcas na construção de uma memória, usando o silêncio dos seus porões para impedir os revoltosos de exercerem repertórios para a garantia da democracia. O filme Ainda estou aqui, com a atuação da brilhante Fernanda Torres, expressa o silêncio desses porões e das famílias. Silêncio esse que até a morte silenciou.
Não apenas na dramaturgia, mas também na música, Chico Buarque e Milton Nascimento interpretam Cálice (Cale-se), denunciando o tratamento violento dado aos cidadãos durante o período ditatorial. O silêncio, materializado por ações de perseguições já denunciadas pela Comissão Nacional da Verdade, era parte do cenário do suplício nesse período. Ou seja, o instrumento da violência.
Traço rapidamente capítulos da história brasileira, mas não só aqui como no mundo, o uso do silêncio é um instrumento forte de hierarquização do poder. O antropólogo indiano, Arjun Appadurai, escreveu sobre como o medo ao pequeno número e as vozes dissidentes podem gerar retaliações desproporcionais por aqueles que possuem poder material ou simbólico.
Ao discorrer sobre o 11 de setembro, Arjun Appadurai (2019) aponta como a lógica de medo e terror foi construída em torno dos imigrantes nos Estados Unidos, criando um ideário de marginalização do imigrante e da imigração. O medo construído em torno desse pequeno número deu margem para discursos e ações contra pessoas já violentadas pelo próprio Estado.
O medo e o silêncio andam juntos na tática de violação ao pequeno número. O medo se torna a origem do sentimento de revolta que colabora para a eleição de inimigos que sofrerão com o silêncio das mais diversas formas. Para uma lógica de Estado necropolítica, como nos ensina o camaronês Joseph-Achille Mbembe (2018) , esse é um caminho econômico para a manutenção do poder nas mãos daqueles que já detêm o poder.
O jogo é matemático, elege-se o inimigo, não resolve problemas estruturais, aponta esses problemas e pugna o silêncio (simbólico ou material) dos mesmos. Depois de construída essa mobilização, é equipado o braço armado estatal e deixa o modus operandi funcionando como desenhado. Nessa lógica, comunidades são dizimadas, periferias são invadidas. Na queda de braço, o elo mais fraco (quem aperta o gatilho) é punido, enquanto o Estado segue firme.
O silêncio como instrumento para essa lógica de poder se torna o exercício do silenciamento. Não pode denunciar, não pode falar, nega-se a história, nega-se a realidade e constrói uma narrativa palatável simplificando problemas complexos e criando responsáveis para problemas antigos.
Resguardadas as proporcionalidades, é o que está ocorrendo atualmente, nos levantamentos contra o que se chama de “cultura woke” (termo importado que os movimentos sociais brasileiros nunca utilizaram) e o que chamaram de “identitarismo”, ambos os termos que estão sendo utilizados para desqualificar as reivindicações dos movimentos sociais não voltados apenas à perspectiva de classe.
Vociferam os acríticos que a culpa para a situação política do Brasil são os “identitários” ou os militantes da “cultura woke”. Longe de desempenharem alguma diferença material prática comparado aos movimentos sociais no Brasil, essa parcela se esconde por detrás da acrisia ao não pensar a história do seu próprio país, acreditando ser possível resolver os problemas de um país construído a partir de uma formação racista (Theodoro, 2022), apenas enfrentando as desigualdades de classe.
Esses mesmos acríticos esquecem que, como nos aponta Dora Lucia De Lima Bertúlio (1989), os quase 400 anos de escravização no Brasil ocorreram no processo de crescimento da hegemonia do modo de produção capitalista, sendo as relações raciais um ponto central de inflexão do capitalismo brasileiro. E, consequentemente a essa realidade, não houve reparação das marcas deixadas nas famílias negras.
A discussão não é sobre “lugar de cale-se”, afinal, todas as pessoas possuem “lugar de fala” ( Djamila Ribeiro, 2017). Entretanto, é preciso assumir que há marcas raciais que construíram séculos de possibilidade de fala para algumas pessoas e que agora é chegada a hora de outras também falarem. Não é preciso ter medo do que será dito, basta apenas construir “lugares de escuta” para aqueles que quase nunca na história foram escutados.
Ícaro Jorge da Silva Santana é doutorando em Direitos Humanos e Cidadania pela UnB, pesquisador do GEPPHERG/UnB.
Referência:
ACHILLE MBEMBE. Necropolítica. 3. ed. São Paulo: n-1 edições, 2018.
ARJUN APPADURAI. O medo ao pequeno número: ensaio sobre a geografia da raiva. São Paulo,: Iluminuras/Itaú Cultural, 2019.
DJAMILA RIBEIRO. O que é lugar de fala? Belo Horizonte: Letramento, 2017.
DORA LUCIA DE LIMA BERTÚLIO. Direito e relações raciais: uma introdução critica ao racismo. Dissertação (mestrado) – Universidade Federal de Santa Catarina, Centro de Ciencias Juridicas—Florianópolis: Universidade Federal de Santa Catarina, 1989.
KILOMBA, G. Memórias da Plantação: episódios de racismo cotidiano. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019.
THEODORO, MÁRIO. Sociedade desigual: racismo e branquitude na formação do Brasil. 1a ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2022.