“Não somos uma colônia dos Estados Unidos”
As proposições injuriosas do presidente Donald Trump em relação ao México aceleraram a campanha presidencial no país latino-americano. As eleições serão apenas em julho de 2018, mas um candidato já se destaca: Andrés Manuel López Obrador, que encarna as esperanças da esquerda
Há cerca de dois anos, o atual presidente norte-americano, Donald Trump, e seus conselheiros começaram a estudar de maneira sistemática o estado de espírito de seus compatriotas. Entre os sentimentos que mais se destacaram: decepção, irritação, cólera, tristeza e desespero. Na política, o método nada tem de extraordinário, sobretudo para aqueles que dispõem do dinheiro necessário para esses estudos qualitativos.1 Os trabalhos desembocaram num diagnóstico feito sob medida para servir à ambição eleitoral de Trump. Só restava aproveitar esse humor geral, tornar-se seu porta-voz e construir uma interpretação para ele, na esperança de impregnar a sociedade. Com um argumento de peso: os mexicanos e os muçulmanos se tornaram indesejados nos Estados Unidos.
Bem antes do candidato republicano tomar posse, era evidente que sua campanha antimexicana não buscava raízes em uma análise econômica qualquer, mas respondia (e ainda responde) a interesses políticos: tirar proveito do sentimento nacionalista norte-americano.
O conteúdo de sua mensagem, suas técnicas de comunicação e sua propaganda se inspiram na teoria do espaço vital (Lebensraum), formulada no século XIX pelo geógrafo alemão Friedrich Ratzel: de acordo com essa doutrina, o expansionismo e o imperialismo se justificam desde que permitam ao Estado assegurar o bem-estar de sua população.
Tal como existia uma forte preocupação popular com o tema da inflação na Alemanha nos anos 1930, os Estados Unidos são confrontados com os problemas do desemprego, do subemprego, da dívida e de salários muito baixos. Mas tentar imputar a responsabilidade disso a certos grupos sociais ou culturais – quer sejam eles nacionais ou estrangeiros – não passa de manobra política.
A partir de 20 de janeiro de 2017,2 esses líderes políticos – hábeis, mas irresponsáveis – ameaçaram construir um muro na fronteira com o México para transformar os Estados Unidos em um imenso gueto. Melhor: caberia ao México pagar pelo muro, cuja construção foi agora decidida e deverá começar em abril. Como se isso não fosse suficiente, a Casa Branca ameaçou anular o Tratado Norte-Americano de Livre Comércio (Nafta), em vigor desde 1994. Ela solicitou às empresas norte-americanas que repatriassem os investimentos realizados no vizinho ao sul, prometendo que 3 milhões de mexicanos seriam forçados a efetuar a viagem no sentido contrário. Ao anunciar sua candidatura, em 16 de junho de 2015, Trump havia declarado: “Quando o México nos envia pessoas, não são as melhores. Não são gente como eu e você. Eles nos mandam indivíduos com problemas, problemas que trazem consigo. Eles nos trazem a droga, a delinquência. São estupradores” (Excelsior, 17 jun. 2015).
O México não “envia” ninguém aos Estados Unidos. Centenas de milhares de pessoas deixam o país para tentar ganhar a vida. O mais comum é fugirem da violência e de uma situação econômica catastrófica.
Desde a vitória de Trump, em 8 de novembro de 2016, esperamos a situação entre México e Estados Unidos se complicar. No mesmo dia, proclamamos nossa solidariedade com todos os migrantes. O México não é uma colônia nem um protetorado de uma potência estrangeira. Em quaisquer circunstâncias, vamos afirmar nosso direito à soberania em relação à Casa Branca, qualquer que seja seu locatário.
A primeira atitude do Movimento de Regeneração Nacional (Morena)3 foi pedir ao presidente Enrique Peña Nieto que adote uma atitude firme. Ele não o fez, e não o fará. A segunda consistiu em colocar as bases de nossa organização nos Estados Unidos à disposição de nossos compatriotas para lhes fornecer ajuda jurídica. A terceira: convidar os mexicanos a se unir para responder à ameaça que lhes é lançada.
Fixamos duas tarefas prioritárias: de um lado, convencer os norte-americanos de que eles são vítimas de um discurso demagógico pseudopatriótico que quer fazê-los esquecer o tamanho da crise econômica; de outro, explicar aos mexicanos a importância do trabalho que eles desempenham do outro lado da fronteira, assim como o impacto sobre sua vida das dificuldades que nosso país enfrenta há cerca de trinta anos.
Aos primeiros, devemos dizer que os mexicanos (ou os estrangeiros em geral) não são responsáveis por sua situação. Os problemas econômicos enfrentados pelos trabalhadores, agricultores ou empresários resultam de escolhas políticas infelizes, de privilégios detidos por alguns e de uma desigual repartição da riqueza – tanto entre eles como entre nós. Em Los Angeles, em El Paso, em Phoenix, em Chicago, em Nova York, nós lhes repetimos esta mensagem: se não têm trabalho, se recebem salários miseráveis ou se suas condições de vida são ruins, eles devem isso a seu próprio governo.
Após a crise de 2008, por exemplo, Washington orquestrou a salvação dos organismos financeiros em falência ao destinar a eles US$ 16 trilhões entre 2008 e 2013, em detrimento da população. Alguns anos depois, o governo buscou reduzir o fardo da dívida cortando os serviços públicos em US$ 85 bilhões (El País, 26 fev. 2013). Estima-se que a dívida norte-americana atinja hoje US$ 17 trilhões, enquanto, entre 2005 e 2012, 14.287.687 pessoas foram expulsas de suas residências.
Outra prova da manipulação à qual se entrega a Casa Branca: ela deixa de informar que a contribuição dos mexicanos que vivem em solo norte-americano (aí incluídas a segunda e a terceira gerações) equivale a 8% do PIB, segundo a Fundação Bancomer (2012). Entre esses trabalhadores, há agricultores e operários de fábricas, mas também professores, médicos e empreendedores. Trata-se de cidadãos que pagam seus impostos e, coletivamente, enviam a cada ano US$ 24 bilhões para o México para ajudar seus parentes.
A emigração se explica de maneira direta pela orientação neoliberal dos governos mexicanos sucessivos, orientação cujo fracasso obrigou uma parte da população a fugir. Nenhuma nação pode resistir a uma quase estagnação da produção da riqueza em trinta anos. A isso, é preciso acrescentar a violência, assim como a corrupção, de que o México é um dos campeões internacionais. Em seu último relatório, a organização Transparência Internacional coloca o país no 123º lugar entre 176.
Em sua posse, Trump não procurou atenuar seu discurso antimexicano. Infelizmente, o México não julgou necessário reagir. Cabia então ao presidente Peña Nieto denunciar os projetos norte-americanos às Nações Unidas. Nós nos encarregamos, em 15 de março, de prestar queixa diante do Escritório do Alto Comissariado de Direitos Humanos, criado justamente para promover o diálogo e o respeito entre as nações.
As ameaças de Trump visam avivar a xenofobia e o racismo? Respondemos apresentando um programa de desenvolvimento suscetível de relançar o crescimento, criar empregos e melhorar as condições de vida dos mexicanos. O objetivo: atacar com um mesmo esforço as causas da emigração, da insegurança e da violência. Não se resolvem os problemas sociais pela força ou erguendo muros, e sim melhorando as condições de vida das pessoas.
A maneira mais humana – e mais eficaz – de conter o fluxo de migrantes mexicanos seria retomar a atividade agrícola, apoiar os setores produtivos, criar empregos e melhorar os salários. E o mais rápido possível. Ninguém sabe qual será a capacidade de Washington de atacar o problema da corrupção norte-americana; do nosso lado, pretendemos erradicá-la. Fazendo isso, vamos gerar recursos significativos para melhorar as condições de vida e de trabalho em nosso país.
O governo que desejamos dirigir se mostrará sempre respeitoso em relação a Washington. Ainda assim, não renunciará a fazer valer sua soberania. Defenderemos de forma incondicional o direito de nossos concidadãos a ganhar a vida trabalhando honestamente onde quer que desejem fazê-lo. E não vamos desistir: a melhor relação bilateral que podemos oferecer aos Estados Unidos é aquela que vai repousar na cooperação tendo em vista o desenvolvimento.
Quem sabe? Quem sabe chegaremos a convencer Trump de que sua política externa é equivocada. Porque essa batalha, nós vamos travá-la no terreno das ideias. Trata-se de um combate contra aqueles que atiçam o egoísmo e contra essa atitude que consiste em rejeitar aqueles que não pertencem à nossa classe social, não provêm de nosso país ou não partilham nossas crenças religiosas. Incitar o ódio aos imigrantes significa atingir a humanidade em seu conjunto. As migrações são fundamentais para todas as nações – os Estados Unidos são o melhor exemplo disso. A riqueza de uma cultura reside na soma das influências que ela sofreu: as línguas, os sabores etc. E, se conseguirmos convencer seu líder, apostamos que o próprio povo norte-americano, por sua vez, não tolerará o muro nem essa demagogia travestida de patriotismo.
*Andrés Manuel López Obrador é presidente do Comitê Executivo Nacional do Movimento de Regeneração Nacional (Morena) e candidato à eleição presidencial mexicana de 2018.
{Le Monde Diplomatique Brasil – edição 117 – abril de 2017}