Não sou indígena, mas choro por Aritana - Le Monde Diplomatique

GENOCÍDIO INDÍGENA

Não sou indígena, mas choro por Aritana

por Max Alvim
7 de agosto de 2020
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Por esse homem imprescindível chorei hoje. Mas também chorei indignado com sua morte. Aritana se soma aos outros 632 índios já mortos pela Covid-19 e aos 22.325 infectados, até agora

É possível chorar copiosamente a morte de alguém que não se conheceu? Hoje chorei a morte de Aritana Yawalapiti, grande líder dos nove povos indígenas que compõem o chamado Alto Xingu. Por que chorar sua morte? Primeiro, nas palavras de alguns que o conheceram, porque ele era um pacificador. Um homem de poucas palavras, mas de palavras boas. Um homem-inspiração. Algo tão caro nos dias de hoje. Mas também por outros motivos ainda mais importantes. Para entendê-los é preciso saber melhor quem era o Cacique Aritana e para isso achei necessário conversar com quem o conheceu e estudou a história do seu povo: o antropólogo da UFRJ-HCTE, Adelino Mendez.

Crédito: Divulgação/Funai

Mendez revelou um Aritana muito mais profundo e imprescindível do que aquele que eu conhecia. Sua história começa bem antes de nascer. Era neto do primeiro Cacique Aritana e filho de outra emblemática liderança do Xingu, o Cacique Kanato. É atribuído a Kanato, juntamente com seu irmão Sariruá, o protagonismo do processo que conduziu a reunião do povo Yawalapiti e de seus valores culturais, que haviam se perdido ao longo das décadas anteriores em meio a uma série de acontecimentos históricos que culminaram com o desaparecimento de suas aldeias. Para se ter uma ideia, a estimativa é de que, por volta de 1948, os Yawalapiti totalizavam apenas 28 pessoas. Eles quase chegaram à extinção. Kanato era apenas um jovem adulto na época. Essa história é complexa, mas vale a pena aqui contar uma breve passagem que irá marcar a vida do futuro Cacique Kanato e do seu filho Aritana, muitos anos depois.

Segundo Mendez, o jovem Kanato na ocasião da expedição Roncador-Xingu, em 1946, conheceu os irmãos Villas-Bôas e passou a fazer parte do grupo “indicando caminhos, participando de explorações de afluentes e contando a história do seu povo”. Ao longo da expedição que percorreu muitos territórios indígenas, a relação com os Villas-Bôas cresceu, especialmente com o irmão mais velho, Orlando. Isso teria favorecido que o jovem índio iniciasse um plano para reunir seu povo, o que de fato aconteceu alguns anos depois, e traçasse maior integração especialmente entre os povos do Alto Xingu. Quero destacar aqui é que será esse ambiente, de afirmação de uma cultura indígena xinguana, que um dia marcará a formação de Aritana. Afinal, quando ele nasce já se vive a experiência do retorno dos Yawalapiti e de uma maior unidade das sociedades indígenas de origem linguística aruak-maipure, que seu pai também deu início. Assim, de um lado Kanato, pai de Aritana, prepara o filho para o desafio da liderança dos Yawalapiti tendo como marca seu compromisso com a união e a interdependência entre os vários povos do Xingu. Kanato não era só um líder indígena, ele encarna até hoje uma espécie de “identidade” xinguana, ele é um exemplo de índio para os povos do Xingu. Foi dessa fonte que Aritana bebeu para construir a seriedade que marcava seu compromisso com a causa indígena. Não é à toa que se tornou um líder de muitos povos do Xingu. De outro lado, Orlando Villas-Bôas e seus irmãos oferecem à Aritana uma influência não indígena que, segundo Mendez, deixava claro ao jovem que “a cidade um dia chegaria às portas das aldeias e entrariam sem pedir licença”. Nas minhas palavras, os Villas-Bôas, ao trazerem a inevitabilidade da relação entre não índios e índios, amplificaram em Aritana sua capacidade de negociação e de mediação de conflitos. Visto pela nossa cultura, Aritana seria considerado um dos maiores diplomatas do seu tempo, favorecendo caminhos pacíficos para a existência da diversidade entre os homens, fossem eles índios ou não.

Dessa linhagem de seres humanos comprometidos com a paz e a diversidade, nasceu o Parque Indígena do Xingu, por exemplo, a primeira terra indígena do Brasil, homologada em 1961 por Jânio Quadros. Depois dela, outras tantas terras indígenas puderam ser reconhecidas, embora o atual governo pareça imbuído em atacar tais conquistas.

Esse líder que protagonizou um dos momentos históricos do nosso país, fazendo justiça por meio da garantia do direito à terra após séculos de extermínio e perseguição, era também um poliglota, fluente em todas as línguas dos povos do Alto Xingu e também no português. Compreendia plenamente seu papel de guardião das tradições do seu povo, ao mesmo tempo que fortalecia a capacidade política da sua civilização e a sua participação no universo não indígena. Em outras palavras, ampliou significativamente o legado do seu pai. Não por acaso, Orlando Villas-Bôas, de quem Aritana permaneceu amigo até sua morte, o chamava de “príncipe”. Foi um homem de extrema delicadeza e tolerância com os tolos, como me disseram os que lhe eram próximos. Ignorava tolices com o seu silêncio e insistia sempre na palavra pacificadora. Lutou a vida toda pela causa da terra, em suas diversas latitudes: a terra, direito do seu povo e dos demais povos indígenas; a terra, nosso planeta em contínua depredação; e a terra, bem imaterial, mãe de todas as culturas, mesmo que não reconhecida por tantos de nós.

Por esse homem imprescindível chorei hoje. Mas também chorei indignado com sua morte. Aritana se soma aos outros 632 índios já mortos pela Covid-19 e aos 22.325 infectados, até agora (dados de 5 de agosto de 2020 – SESAI e Comitê Nacional de Vida e Memória Indígena). Pode parecer pouco comparado ao número absoluto de infectados no Brasil, mas representa o dobro percentual quando comparadas as populações de não índios e de índios. Imaginem se hoje tivéssemos o dobro de infectados no Brasil, com provavelmente o dobro de mortes. Essa é a catástrofe que os indígenas estão sofrendo.

Não sei ao certo se Aritana contraiu a doença na sua aldeia, mas sei que lá permaneceu até o agravamento do seu quadro clínico. Quando finalmente foi retirado, o relato é de grave descaso e irresponsabilidade. Primeiro pelo fato do estado do Mato Grosso não ter garantido a possibilidade de tratamento para a gravidade do seu quadro. Foi necessária a transferência rodoviária de Canarana (MT) até Goiânia (GO). De acordo com relatos que colhi, foram 709 quilômetros de esforço, com falta até de oxigênio no traslado, algo essencial para quem padece de insuficiência respiratória. Segundo e mais grave, não houve política pública de prevenção para evitar a morte de Aritana. Como me falou a Promotora de Justiça do Estado de Mato Grosso, Solange Linhares, “a saúde indígena se dá no respeito às especificidades culturais de cada etnia, de acordo com artigo 231 da Constituição. Neste sentido, o Estado falhou quando não se antecipou para evitar a entrada do vírus nas aldeias entendendo tais especificidades”. Terá sido mais uma incapacidade de gestão do atual governo? Mesmo sabendo da chegada do vírus não era possível pensar uma política de prevenção customizada para os indígenas? Segundo ela, respeitar as especificidades culturais incluiria políticas públicas concretas de forma a garantir o isolamento coletivo dos povos indígenas (não se faz isolamento individual numa aldeia), o atendimento de saúde respeitoso à diversidade cultural e efetivo no eventual tratamento da doença, e, não menos importante, uma orientação científica sobre a doença nas línguas maternas de cada etnia. Os relatos de entidades de representação e defesa dos povos indígenas são de que nada disso foi feito pelo governo federal, principal ator na construção de políticas nacionais e na responsabilidade para com a proteção da população brasileira. Hoje, em todo o planeta, antropólogos, sanitaristas, ambientalistas, especialistas de diversos campos, além dos próprios indígenas denunciam um genocídio em andamento. A palavra é forte, mas necessária para chamarmos a atenção de autoridades e da sociedade civil para debatermos a situação indígena e atuarmos urgentemente para evitar o pior, o genocídio. Nossa geração não pode pactuar ou ser omissa com mais um bárbaro ataque aos povos indígenas.

No dia 5 de agosto, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu por unanimidade confirmar a decisão do ministro Luís Roberto Barroso obrigando o governo Jair Bolsonaro a adotar medidas para conter o avanço da Covid-19 entre as populações indígenas, o que inclui as desejadas barreiras sanitárias para aldeias em isolamento e, também, plano de retirada de ocupantes ilegais das áreas protegidas. É a resposta definitiva ao pedido de liminar da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) e dos partidos PSB, Psol, PC do B, PT, Rede e PDT. Sem dúvida um avanço, mas ainda algo que levará bastante tempo para conter o número de infectados e de mortos pela Covid-19. É preciso lembrar que cada ancião indígena que morre leva consigo uma biblioteca de saber. Aritana, por exemplo, era um dos últimos Yawalapiti que dominava plenamente sua língua e também um senhor dos segredos do seu povo. Não é pouco o que morre com ele.

Hoje o Alto Xingu está consternado. Não há palavras para descrever a dor, especialmente na aldeia de Aritana, segundo o que apurei. Diferentemente de nós não índios, a morte é uma experiência mítica e ritual coletiva entre os indígenas. Para um não índio ignorante seria uma visão de histeria coletiva. Para um ser humano minimamente empático ao sofrimento alheio, é uma visão da dor tremenda, sem limites. Hoje o povo de Aritana só pensa sobre os efeitos do feitiço e do mal que matou seu líder e põe em risco toda a sua civilização. Os Yawalapiti se sentem sob ataque e se perguntam quem é o feiticeiro com tanta maldade para lhes matar. Eu arriscaria um nome para lhes dizer, mas prefiro que o leitor conclua sozinho. Termino com uma frase síntese que o antropólogo Mendez me disse: “Aritana morreu uma morte estrangeira, uma morte do não índio, assim como morreram seus ancestrais, uma morte que não merecia”. Eu vou chorar mais um pouco.

 

Max Alvim é cineasta documentarista.



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