“Não Sou uma Bruxa” e o surrealismo como ferramenta para encarar realidades assustadoras
Para além das imagens retratadas em desenhos animados, livros de história, clipes góticos ou em manifestações de feministas em atos na rua ou nas redes sociais, o que seria hoje em dia uma bruxa?
Não Sou uma Bruxa de 2017, é o longa metragem de estreia da diretora zambiense galesa, Rungano Nyoni, que esse ano ganhou o prêmio de melhor direção da mostra “Um Certo Olhar” de Cannes por seu On Becoming a Guinea Fowl, ainda sem tradução para o português.

Créditos: MUBI
A diretora parte da cruel realidade de mulheres de áreas rurais da África subsaariana que, ao serem denunciadas por bruxaria, acabam em campos isolados e perdem todos os seus direitos de cidadania, para evidenciar as cruéis engrenagens que mantém a dominação estatal masculina sobre os corpos feminilizados. Com uma atmosfera visualmente forte que pende entre o real e o surreal sem nunca se desequilibrar, o filme consegue transformar uma situação extrema de ataque às mulheres em uma obra altamente poética.
Mas a poesia não precisa ser romântica e nem idealizada, inclusive um dos elementos que Nyoni parece dominar melhor é a ironia. Com um assunto pesado em mãos, que passa pelo isolamento, pela desapropriação e pelo controle dos corpos e das vidas de mulheres, Rungano cria uma obra delicada que evidencia a violência através da beleza de um imaginário mágico e aterrorizante.
O filme abre com a chegada de um ônibus de turistas a um cenário bastante conhecido das populações do sul global: um safári humano. Nesse caso a atração principal são mulheres acusadas de bruxaria. Elas se sentam na terra com as caras pintadas de branco, de modo a estereotipar pinturas ritualísticas, e tem que ficar para trás de uma grade que as separa dos turistas como se fossem feras da savana.
Em seguida conhecemos a protagonista, a quem as outras condenadas chamarão de Shula, uma garota de nove anos que é, nesse momento, acusada de ter praticado bruxaria. Na delegacia local uma guarda sentada atrás de sua escrivaninha ouve as acusações dos moradores do pequeno vilarejo. A primeira a acusar é uma mulher que expressa sua certeza de que a garota é uma bruxa alegando sua falta de família e amigos, além de associar estranhos eventos à chegada da garota a comunidade.
A acusadora chama Shula de uma “pessoa perdida” mostrando como a falta de uma instituição que a proteja, como a família por exemplo, faz dela uma pessoa indesejável, que causa medo e preocupação àqueles que já tem seu papel firmado na comunidade. As bruxas são então essencialmente pessoas descartáveis ou incômodas.
Aquelas que são consideradas bruxas são amarradas em fitas brancas para supostamente não poderem voar e nem cometer os assassinatos que o imaginário do senso comum imputa a elas. As fitas são também um dos elementos visuais e surrealistas mais importantes do filme, mostrando de maneira poética e didática as limitações impostas a essas mulheres. É relevante também que as fitas se enrolem em uma espécie de carretel, que parece remeter à linhas de costura e traz mais uma camada simbólica sobre a domesticação desses corpos feminilizados.
Além do visual poético, o filme também impressiona pela capacidade de mostrar os embates de poder entre a lógica do Estado e os ambientes rurais; entre a comunidade e o Outro; entre mulheres e homens e até entre mulheres da cidade e do campo. Nenhuma nuance da guerra entre pequenos e grandes poderes que leva Shula a perder o direito à sua vida parece escapar ao olhar da diretora.
As “bruxas” são mandadas para campos afastados de tudo para trabalhar o dia todo, além disso, à noite cantam sobre como aguentam firme a dureza do trabalho sem se cansar e batem continência. Nada é acidental, Nyoni claramente quer evidenciar a vontade do Estado controlar essas mulheres e dominá-las através do trabalho forçado e da disciplina militar. Através do disciplinamento de seus corpos.
A natureza ao redor de Shula é absolutamente árida durante todo o filme, ali parece que a vida realmente não tem vez. Além disso, o constante conflito entre tecnologia e tradição e o clássico embate de classes africano que se dá através da língua, europeia para os poderosos e regional para os pobres, mostra a força que é feita para dominar Shula, bem como as mulheres ao seu redor. Mostra a força de alienação e violência que tem o pensamento burocrático contra sociedades indígenas.
Supostamente ao menos uma oportunidade é dada para alguém poder se salvar da pecha de bruxa: se casar com um homem. A esposa do governador é a prova disso, uma mulher que apesar das acusações, saiu do campo e se tornou loira e rica. Shula parece gostar dela e da chance de sair dos campos que ela parece oferecer, mas na cena do estacionamento, em que homens atacam a esposa e a chamam de bruxa, mesmo depois de casada, faz Shula perceber que não há saída para ela. Nada pode apagar seu status de bruxa.
Para quem se interessar em assistir, o filme se encontra na plataforma de streaming Mubi Brasil.
Juli Candido é cineasta e crítica de cinema.