Nas estradas da Rússia com os caminhoneiros indignados
A crise social pode ofuscar o sucesso diplomático da Rússia? Neste outono, as manifestações de caminhoneiros contra um novo imposto trouxeram a questão à tona. O governo logo apagou o incêndio e tratou o movimento de pequenos empreendedores oriundos da economia informal de um modo que ele se recusa a tratar outras cateHélène Richard
Khimki, periferia nordeste de Moscou, 7 de março. “Assaltam os motoristas de caminhão, extorquem os aposentados.” Uma dúzia de caminhões estaciona em frente a um shopping center. “Aumento de preços: o imposto sobre os caminhoneiros afeta todos nós” – todos os caminhoneiros colaram esse cartaz no para-brisa de seus veículos. Subindo uma pilha de paletes, chegamos a um reboque que serve de quartel-general para os motoristas em greve. O veículo oferece algumas comodidades: uma grande mesa, um fogareiro com linguiças sendo grelhadas, uma impressora e um ventilador que de repente faz tremer toda a armação de ferro. A conversa cessa. São 19 horas, dois policiais à paisana entediam-se a poucos metros dali. O “acampamento” de Khimki e o de São Petersburgo reúnem os caminhoneiros que se recusam a se render. Eles são a cauda do cometa de um movimento social que abalou dezenas de regiões russas durante o inverno. “Desde 1998 não se registravam conflitos trabalhistas tão grandes, em termos de número de participantes e regiões afetadas”, comenta em seu site o Centro de Direitos Sociais e Salariais, que faz um monitoramento bimestral dos conflitos sociais na Rússia.
Há cerca de 1,8 milhão de caminhões fazendo o transporte rodoviário de mercadorias no país, e o número de caminhoneiros aproxima-se de 2 milhões.1 No início, o movimento foi acompanhado por uma parte significativa da categoria. Só no Daguestão – uma república autônoma do Cáucaso do Norte, cujos caminhoneiros abastecem a Rússia com produtos vindos do Irã, Azerbaijão e Turquia – as operações tartaruga e outras ações reuniram quase 17 mil pessoas no último outono.2 Em outras regiões, centenas de manifestações foram realizadas entre novembro e fevereiro. Mas naquela noite, em Khimki, apenas nove grevistas mantinham o acampamento…
Obrigados a instalar GPS de controle
Os protestos romperam o consenso aparente em torno do apoio que o governo russo gozava junto à opinião pública, apesar da forte recessão econômica (–3,7% em 2015) causada pelas sanções ocidentais após a anexação da Crimeia à Rússia e pela queda dos preços do petróleo no decorrer de 2015.3 A capacidade de resistência da população à queda de seus rendimentos reais (–4%) teria limites? Os caminhoneiros estão na linha de frente da crise. Sua atividade está intimamente ligada ao consumo das famílias, que caiu 7,5% em 2015. A criação, em novembro de 2015, de um novo imposto chamado “Taxa Platão”, dedicado a “reparar os danos causados por veículos com mais de 12 toneladas em rodovias federais”, acendeu o barril de pólvora. Os caminhoneiros sentiram-se duplamente castigados. Os lendários buracos das estradas russas destroem seus amortecedores e rins – e eles ainda vão ter de pagar a conta… A medida também os coloca sob estreita vigilância. Agora eles são obrigados a instalar nos veículos equipamentos de GPS que calculam a distância percorrida e a comunicar pela internet o roteiro de cada entrega. Após o primeiro dia de ação, em 11 de novembro, as operações tartaruga foram intensificadas, antes de uma parte do movimento ameaçar ir para Moscou e bloquear a perimetral. A falta de coordenação e as operações de filtragem da polícia derrotaram a iniciativa: no início de dezembro, a maioria dos veículos foi bloqueada antes de chegar às portas da capital.
“O transporte de mercadorias diminuiu de 10% a 15%”, estima Valeri Voitko, presidente da associação Dalnoboichtchik (“Caminhoneiro”), que defende os interesses das pequenas e médias empresas de transporte rodoviário. “Mas a baixa rentabilidade do setor, que caiu 30%, ameaça ainda mais nossas empresas.” A Taxa Platão soma-se a outros custos em ascensão. As peças de reposição, na maioria importadas, ficaram mais caras por causa da queda do rublo, que em fevereiro atingiu seu nível mais baixo desde a desvalorização de 1998 (1 dólar vale 80 rublos). Apesar da queda do barril, o preço do combustível na bomba aumentou 10% em dois anos, à medida que o governo procurava novas receitas fiscais para compensar a perda com o petróleo. Em abril, o imposto sobre o diesel subiu 20%. Outra causa de descontentamento: a gestão de todo o sistema – dos equipamentos de GPS à frota de veículos de patrulha encarregada de denunciar infratores – foi confiada à empresa RT Invest Transportnye Sistemy, que tem metade de sua propriedade nas mãos de Arkady Rotenberg, filho de Igor Rotenberg, um oligarca próximo a Vladimir Putin. Para os caminhoneiros enraivecidos, a função do “imposto Rotenberg” é permitir que, à sua custa, o presidente deixe seu “amigo” rico. Seria melhor falar em troca de favores: Rotenberg concordou em construir a ponte que vai ligar a Crimeia ao território russo pela Península de Kerch, depois que outro oligarca, Gennady Timchenko, abandonou o projeto, dizendo que era “uma história muito arriscada”. Ao concordar em comprometer fundos para essa obra, cujo custo final permanece incerto (hoje avaliado em 3 bilhões de euros), Rotenberg permite a construção de uma via vital de acesso à Crimeia, hoje asfixiada pelo bloqueio de Kiev em resposta à anexação.
Toda a categoria, ou quase, é contra o sistema. “As grandes e médias empresas de transporte e logística são quase todas a favor da Taxa Platão, porque apostam na reestruturação do setor em seu favor. Os sindicatos patronais, que representam seus interesses, não se aproximam dos manifestantes por essa razão”, afirma Boris Kravchenko, presidente da Conferência do Trabalho da Rússia, segundo maior sindicato de trabalhadores do país, que conta com 2 milhões de membros.4 Já os caminhoneiros que protestam pertencem, ao contrário, à massa de pequenos empreendedores individuais, que possuem entre um e cinco caminhões e são responsáveis por quase 70% das empresas de transporte rodoviário. “Em 2001, o governo cancelou o sistema de licenças. Essa desregulamentação abriu o mercado para muitos motoristas sem qualificação. Embora isso possa surpreender, a liberalização de nossa economia sob o governo atual é muito maior que a da França ou Alemanha. E isso prejudica o desenvolvimento do setor”, analisa Voitko. Para além dos humores antifiscais, trata-se da ira de um grupo social que é apegado à sua independência e teme que ela desapareça. “Eles querem nos expulsar do mercado e acabar nos obrigando a ser funcionários das grandes transportadoras”, brada Andrei Bajoutine, proprietário de dois caminhões e coordenador do acampamento de Khimki.
A 1.500 quilômetros dali, em Chelyabinsk (sudeste dos Urais), uma dúzia desses pequenos caminhoneiros se encontra na stoinka, área onde estacionam seus veículos e realizam reparos entre uma entrega e outra. É hora de folga. Entre os caminhões, a neve só deverá derreter em abril, mas, sob os veículos que aguardam em vão uma carga, o chão continua seco. “Os caminhões não saem mais. Eles dizem que a crise acabou, mas ela está apenas começando para nós”, preocupa-se Anatoli Stakheev, empresário que possui um caminhão basculante e se diz cheio de dívidas. Entre as silhuetas quadradas de seus colegas, Anton Krylov parece frágil. “Ele acaba de fazer uma cirurgia. A vida no volante custou-lhe metade do estômago”, comenta Alexander Tatarintsev, dono da stoinka e de uma pequena empresa de transporte. “Sufocados pelos prazos de entrega curtos, muitos caminhoneiros acostumaram-se a mastigar sopas de macarrão instantâneo chinês na estrada e beber água morna para que inchem diretamente no estômago”, diz seriamente Nikolai Matveev, presidente de um sindicato de pequenos empresários do transporte sediado em Miass, uma cidade próxima.
No sopé dos Montes Urais, Chelyabinsk é um ponto de passagem para a Sibéria oriental. Os caminhoneiros que se aventuram pelo extremo oriente da Rússia são chamados zimniki (“motoristas do inverno”). Nessas regiões, as viagens são feitas em comboio, para que se possa contar com apoio em caso de pane. “Em Iacútia, eu dirigi sobre o gelo do Rio Lena por mais de mil quilômetros”, recorda-se um caminhoneiro que entra na conversa. No inverno, os rios congelados servem de eixos de comunicação, em uma região onde a rede rodoviária continua magra e impraticável. À noite, é preciso deixar o motor ligado para evitar que o combustível congele, a –40 °C… “Nós devíamos mesmo virar funcionários”, conclui Stakheev. “Muitos colegas têm vendido o caminhão. Eles trabalham para redes de supermercados: um dia de trabalho, dois de folga, por 40 mil rublos ao mês [cerca de R$ 2.100]”, salário não muito distante dos ganhos que um motorista independente tira da operação de um caminhão: entre 40 mil e 70 mil rublos, segundo a associação Dalnoboichtchik.
A arte de atolar
Contudo, ainda mais que os assalariados, os caminhoneiros independentes movem-se nos meandros da economia informal. “É impossível seguir a lei”, justifica-se Tatarintsev, dando como exemplo a regulamentação sobre a tonelagem. Embora os caminhoneiros lutem para franquear uma floresta de regulamentação nem sempre coerente, eles continuam apegados às “flexibilidades” oferecidas pela possibilidade de negociar uma multa, subdeclarar um carregamento, pagar os condutores em dinheiro. “Entre 70% e 75% do volume de negócios de transporte rodoviário está na economia informal: mercado paralelo de combustíveis, trabalho clandestino, tráfico de certificações, sem contar as relações com a polícia”, explica Kravchenko. “Esse novo imposto diminui a rentabilidade, porque eles não poderão mais usar rotas alternativas e evitar as estações de controle de tonelagem: o sistema Platão define um itinerário e, em caso de desvio, pode haver multa. Parte dos manifestantes diz que não há necessidade de controlar esse mercado. Mas deixar as coisas como estão significa tolerar que os motoristas trabalhem dezoito horas seguidas. Nesse sentido, nossos objetivos divergem em parte dos interesses dos caminhoneiros que estão protestando.”
Dois jipes ultrapassam a placa de Miass. Situada nos contrafortes dos Urais, hoje em declínio, a cidade prosperou na era soviética graças à fábrica de caminhões UralAz. É domingo e, como a caça está fechada, Matveev e seus amigos de estrada entregam-se a um lazer sazonal: bouksavat, ou a arte de se atolar. Fora das estradas demarcadas, homens afundam na neve até os joelhos – uma dádiva. Os veículos ficam longas horas atolados, tentando avançar de todo modo: o de maior cilindrada puxa o mais leve do atoleiro, enquanto um guincho ligado a um pinheiro, seguido de uma boa acelerada, pode facilitar a progressão. O interesse do passatempo é dissertar sobre a melhor técnica. Oleg Sukhov encarrega-se de servir copos de vodca, uma função propícia às comemorações: “Nasci numa aldeia a 300 quilômetros daqui”, conta diante do churrasco que assa ao lado da pista. “Para sobreviver, valia qualquer coisa: tanto trabalhar como roubar. Éramos bandidos. Aos 20 anos, vim para a cidade ganhar a vida. Comecei a resgatar títulos de privatização,5 em sociedade com outro cara. Ele se encarregava de investir. Eu não entendia a diferença na época, mas hoje, obviamente, é ele quem está rico. Ele controla o maior hotel em Chelyabinsk e tem cadeira na assembleia municipal.” Sem ter feito fortuna, essa geração de pequenos empreendedores que já passa dos 40 acumulou um primeiro capital na década de 1990, período em que a economia entrou em colapso, tendendo para a violência mafiosa. Nessa época, Tatarintsev trabalhava na recuperação de dívidas, mercado sustentado mais por caras grandes que por oficiais de justiça. Criar uma empresa nesse contexto implica certas disposições ao acordo: “Pelo menos, nos anos 1990, quando os bandidos faziam a lei, havia uma forma de justiça, sempre se podia negociar”, lamenta Sukhov.
O poder russo mostra-se indulgente para com os caminhoneiros em protesto. É verdade que o alcance da lei sobre as manifestações,6 bastante punitiva, foi ampliado nas operações tartaruga. Mas, com exceção de uma condenação penal (ver boxe), até agora nenhum caminhoneiro foi preso. Muito diferente da repressão que se abateu sobre o último protesto contra a eleição de Putin para um terceiro mandato presidencial. Os manifestantes pagaram caro pela reunião de 6 de maio de 2012 na Praça Bolotnaia, em Moscou, apesar de ser uma manifestação autorizada. Acusados de participarem de uma operação subversiva financiada por Washington, cerca de trinta manifestantes foram denunciados por “participação, organização ou incitação de motins em massa”. Entre os que foram condenados a penas em regime fechado, que chegam a cinco anos de prisão, dez foram anistiados por ocasião do aniversário de vinte anos da Constituição de dezembro de 1993, após muitos meses de prisão domiciliar ou detenção.
Kremlin conciliador
Como mostraram em 2005 os protestos contra a mudança dos benefícios sociais em espécie, que tinham nos aposentados seu maior contingente,7 o poder russo mostra-se mais conciliador para com os movimentos vindos do interior (e não de Moscou), que fazem reivindicações sociais (e não políticas), e sustentados por categorias socioprofissionais consideradas leais ao poder. Em sua grande coletiva de imprensa anual, o chefe de Estado dirigiu frases quase ternas aos motoristas de caminhão: “Também venho de uma família de trabalhadores. […] [Ella] Panfilova [presidente do Conselho do Presidente para a Promoção da Sociedade Civil e dos Direitos Humanos] veio até mim e disse: ‘Você sabe, eles são viciados em trabalho’. Sou simpático a eles, mas eles precisam sair da economia informal, e é preciso ajudá-los a fazer isso”.
Os caminhoneiros logo conseguiram algumas concessões: no anúncio do primeiro dia de ação, 11 de novembro, o governo propôs um desconto provisório da taxa, até 29 de fevereiro.8 No dia 4 de dezembro, a Duma – câmara baixa do Parlamento russo – aprovou uma lei que reduziu de 450 mil rublos para 5 mil rublos a multa pelo não pagamento de pedágio. Em sua grande coletiva de imprensa, o presidente prometeu aos caminhoneiros uma isenção do imposto sobre os transportes,9 reconhecendo que ela duplicava a Taxa Platão.
O movimento dos caminhoneiros choca-se menos com a repressão que com suas próprias divisões internas. “Eu não chamaria isso de movimento. É, antes, uma onda de protestos. Vimos que a coordenação era muito fraca: cada região tinha sua palavra de ordem, seu calendário”, analisa Kravchenko. Pouco estruturado, o protesto atraiu forças políticas de oposição em busca de uma base social. Elas viram na cólera dos caminhoneiros uma possibilidade de criticar um governo que sacrifica a saúde econômica do país para voltar à cena internacional. E acabaram, aliás, obrigando o movimento a se posicionar – e se desgastar – sobre a oportunidade de politizar suas reivindicações setoriais. Homem de negócios, Dmitry Potapenko colocou sua oratória, e certamente também algum dinheiro, a serviço da causa dos caminhoneiros. No Fórum Econômico de Moscou, em 8 de dezembro, ele declarou que a administração tinha dado “golpes fatais” na economia: o “embargo criminoso” sobre algumas importações ocidentais, que causou aumento nos preços, e o “imposto Rotenberg”. Os caminhoneiros dos acampamentos de Khimki e São Petersburgo identificaram-se com esse modelo de sucesso, bem distante dos políticos que abominam. No entanto, Potapenko acaba de aderir ao Partido do Crescimento, uma formação que representa os interesses do patronato – com exceção do setor de petróleo e gás. De acordo com o jornal econômico Vedomosti, o novo partido é um “bebê de proveta […] batizado na água benta do Kremlin por Vyacheslav Volodin”, próximo de Putin. Seu objetivo: com a aproximação das eleições parlamentares de setembro de 2016, captar e canalizar o eleitorado das pequenas e médias empresas e manter em sua marginalidade os partidos de oposição liberais e social-democratas mais críticos ao Kremlin, como o Iabloko (que obteve 1,6% nas últimas eleições legislativas, menos que o limiar de 5% exigido para a representação na Duma) ou o Parnas (ao qual pertencia Boris Nemtsov, membro da oposição assassinado no dia 28 de fevereiro de 2015, em Moscou).10
Em 3 de abril, os amigos de Bajoutine, líder do acampamento de Moscou, boicotaram uma nova manifestação “anti-Platão”, organizada na capital. Bandeiras de pelo menos três partidos de oposição extraparlamentar flutuavam acima de um público esparso: Iabloko, Parnas e o Partido do Progresso, presidido por Alexei Navalny, blogueiro anticorrupção de passado nacionalista que se tornou uma das figuras marcantes das manifestações do inverno de 2011-2012. “Putin, renuncie!”, entoa na tribuna. Entre a centena de pessoas presentes, está Matveev. Como um caminhoneiro tão patriota pode estar sob as bandeiras da oposição liberal, regularmente acusada de tramar a derrubada do regime? Nesse dia, um movimento em declínio e uma oposição desprovida de base social juntaram suas parcas forças.
O papel da “revolução” ucraniana
Nem todos os manifestantes do outono estão prontos a generalizar sua insatisfação com uma crítica ao sistema político. A “revolução” da Praça da Independência, em fevereiro de 2014, que levou à derrubada do presidente ucraniano Viktor Yanukovich, apresentada pela mídia como uma manobra do Departamento de Estado dos Estados Unidos, serve como base de comparação para a maioria dos cidadãos russos. “Nossas duas primeiras ações foram espontâneas, depois houve o acidente [em uma ação no dia 19 de novembro, um motorista não grevista perdeu o controle do veículo, matando um manifestante e ferindo três]”, explica Pavel Smolnyi, um jovem empresário de 30 anos, dono de apenas um caminhão. “Então decidimos organizar uma manifestação autorizada no centro da cidade. Apresentar o pedido à administração virou meu trabalho: durou uma semana inteira! Eles pediram uma montanha de explicações, mas recebemos a autorização. Para mim, é normal. Veja o que aconteceu na Ucrânia!”
A Rússia poderia enfrentar uma explosão social? “De jeito nenhum”, responde sem ambiguidade Kravchenko. “Os russos suportaram crises muito piores.” O movimento dos caminhoneiros, que teve atenção sustentada da imprensa escrita e da internet – mas nenhuma da TV –, caiu. No fim, a tentativa de politizar o movimento coincidiu com seu enfraquecimento em termos numéricos. Difícil determinar se os últimos manifestantes uniram-se às fileiras de uma oposição marginalizada para se sentirem menos sozinhos ou se foi a própria politização que afugentou parte das tropas.
BOX
Erro judicial ou processo político? O caso Zakharov
Miass, 14 de março. Nikolai Matveev está diante de um centro de recrutamento do Exército e espera a chegada de suas tropas. O presidente da seção local de um sindicato de caminhoneiros, a União Inter-Regional dos Motoristas Profissionais (MPVP), que diz ter 10 mil membros em toda a Rússia, é acompanhado por cinco pessoas, incluindo um jornalista local. O ônibus, fretado pelo sindicato, leva o pequeno grupo. No fim do ano passado, a MPVP organizou duas operações tartaruga reunindo mais de cinquenta veículos, em uma cidade de 150 mil habitantes. Mas, neste dia, o chamado das tropas não funcionou: a hora é de desmobilização.
O ônibus segue para o Palácio de Justiça de Chelyabinsk, onde tramita o processo de apelação de Alexander Zakharov, membro da MPVP que, em janeiro passado, foi condenado em primeira instância a nove anos de prisão e cerca de 500 mil rublos de multa (aproximadamente R$ 26.600). O caso começou na primavera de 2015, bem antes das manifestações do outono. No dia 28 de maio de 2015, o acusado brigou com um certo Denis Zapirov quando este, bêbado, tentava pegar o volante do caminhão e ameaçava a filha. O homem morreu cinco dias após o incidente. A instrução concluiu que ele sucumbira em razão dos ferimentos causados durante a briga com Zakharov. Enquanto estava sob a proibição de sair da cidade, este participou da operação tartaruga não autorizada organizada pelo sindicato no dia 25 de novembro. Seus camaradas o fizeram abandonar a manifestação para não expô-lo a outros aborrecimentos legais. Para sua defesa, a MPVP pagou os serviços de um advogado e de uma contraperícia. Esta estabeleceu que as lesões de Zapirov o teriam levado à morte entre seis a doze horas após os fatos, e não cinco dias.
“Ninguém me ouve, nem a mim nem ao meu advogado. Eles se recusam a examinar as provas!” Na tela de videoconferência, o rosto de Zakharov aparece por trás das barras de sua cela na prisão de Zlataoust, a 150 quilômetros dali. O acusado afasta bruscamente sua cadeira. A administração penitenciária escolheu um papel de parede com flores azuis para suavizar a imagem: o juiz afirma que o Tribunal de Apelação nunca recebeu a contraperícia da defesa e, após uma breve deliberação, rejeita o documento antes de tomar sua decisão. “A Corte de Apelação decidiu modificar o julgamento do Tribunal de Miass (região de Chelyabinsk) de 18 de janeiro de 2016, relativo a Alexander Petrovich Zakharov…” E, no momento em que o público espera que o julgamento anterior seja anulado, o magistrado limita-se a enumerar erros de ortografia a serem corrigidos e confirma o veredicto da primeira instância. Nos corredores, vinte guardas móveis supervisionam a dispersão do público. Na escadaria do tribunal, uma policial aproxima-se da cunhada do acusado. “Não há justiça na Rússia”, lança esta última para a funcionária pública que pergunta sobre o julgamento, aparentemente compassiva. “Eu sei, mas, por favor, não organizem uma manifestação agora. Neste momento vocês precisam ir embora”, responde com voz suave.
Os juízes russos são suspeitos de confirmar sistematicamente o ponto de vista da acusação. A polícia, incentivada a aumentar a taxa de elucidação de crimes, muitas vezes realiza instruções contra o arguido. Quando vão a julgamento, apenas 0,5% dos réus é absolvido em primeira instância, uma taxa que mal chega a 1,5% na apelação. Inversamente, quando os acusados passam por júri popular, eles conseguem 20% de absolvições.
O caso Zakharov seria um mero erro judicial? Seus colegas acreditam que o caso começou como uma instrução contra o arguido, que depois tomou um rumo político. Ao contrário de outros cidadãos apanhados pela justiça russa, Zakharov dispunha de uma defesa sólida e podia legitimamente esperar uma redução da sentença. A recusa em colocar a contraperícia no processo e a severidade da condenação provam, a seu ver, que o veredicto serve para intimidar o sindicato dos caminhoneiros. Assim, este sairá da sala de audiência duplamente derrotado: sua estratégia jurídica descartada, suas fileiras reduzidas. (H.R.)