Nas fronteiras do real
De Balzac a Dan Brown, de James Bond a Matrix, entre intrigas políticas e aventuras metafísicas através das turbulências globais, o que seria da ficção sem a busca por uma verdade escondida?Evelyne Pieiller
“Há duas histórias: a oficial, mentirosa, e a secreta, na qual estão as verdadeiras causas dos eventos.” Honoré de Balzac, que em Ilusões perdidas (1837-1843) criou essa frase que se tornaria célebre, acreditava mesmo nisso. Ele chegou a fundar uma associação, com o nome de Cavalo Vermelho, destinada a organizar nas sombras a ascensão de seus amigos e a sua própria para as posições mais importantes do mundo literário. E o demonstra em seus romances, não apenas aqueles que giram explicitamente em torno de conspirações (Um caso tenebroso, História dos treze), mas também os que descrevem com precisão o funcionamento de um meio social.
O admirável Ilusões perdidas mostra o fracasso de um jovem homem de letras ambicioso, pronto a qualquer abnegação para tornar-se rico e famoso. Ou seja, tratava-se, como dizia Balzac, de “uma história cheia de verdade”. O belo Lucien é salvo in extremis por um misterioso abade, que lhe promete, como Mefistófeles, a realização de seus desejos. Carlos Herrera, mais conhecido como Vautrin, é um ex-condenado, detentor de tantos segredos e conhecidos que é capaz de manipular os mecanismos das finanças, da imprensa, em suma, do poder. Ele acabará sendo também chefe de segurança. Essa trajetória remete à fabulosa história de Eugène-François Vidocq (1775-1857), um condenado que se tornou o pai da polícia judiciária. Longe de ser apenas uma incrível anedota, há aí toda uma simbologia, pois quase todo o século é levado a questionar as origens da obtenção do poder e a suspeitar do envolvimento de recursos ocultos.
Tudo começa com o estarrecimento provocado pela Revolução Francesa, que esmaga a ordem do mundo e abre possibilidades até então pouco imaginadas. Mas o que vem a seguir é igualmente perturbador: o legado da revolução liquidado, as esperanças dos Três Gloriosos (1830) e da República de 1848 traídas. Ao longo do século, a vontade do povo, ou das classes médias que pensam mais ou menos representá-lo, é sistematicamente confiscada. Então, quem faz a história e a política? O imaginário coletivo transcreveu essa inquietação por meio de uma forma até então bastante subutilizada, o romance,1 investindo especialmente em sua vertente popular – aquela que se destina a um público amplo, não recorre aos códigos da literatura “nobre” e é frequentemente publicada pela imprensa em folhetins. E deu sua explicação: o que muda de maneira tão espantosa o curso dos acontecimentos são os conspiradores que atuam nas sombras. Como os maçons, que têm a reputação de estar ligados à Revolução.
Um dos “teóricos da conspiração” mais contagiantes é Alexandre Dumas. Com, entre outras obras, a série Memórias de um médico(1846-1852), ele centra-se na figura de Cagliostro, chefe da sociedade dos Invisíveis, dotado de poderes quase sobre-humanos, que se dedica a derrubar a monarquia: “Assim como Deus, serei paciente. Carrego meu destino, o seu, o do mundo todo na palma desta mão”. George Sand (A Condessa de Rudolstadt, 1843), Eugène Sue (O judeu errante, 1844-1845), que desenvolve uma “conspiração jesuíta”, Paul Féval ou ainda Ponson du Terrail mostrarão a mesma inclinação. Pouco importa a tendência política dos autores – monarquistas ou republicanos –; a compreensão da história recente passa por agentes clandestinos, muitas vezes homens excepcionais à frente de seitas – o que, aliás, também se encontra “de verdade” no projeto saint-simoniano de reorganização da sociedade sob a liderança de uma elite industrial e religiosa. Isso porque, na realidade, as conspirações e associações secretas existem, como, na década de 1820, a Carbonária, dedicada a libertar e unificar a Itália, e sua prima francesa, a Charbonnerie, voltada a derrubar a Restauração – o que foi lembrado pelo inesgotável Dumas em Os moicanos de Paris(1854-1855). Mas na cristalização desse imaginário coletivo também está envolvido o espectro da “república”, que daria voz ao povo, à massa, à multidão, em nome da igualdade: os detentores mascarados do poder efetivo permitem imaginar uma nova aristocracia.
Histórias de espiões, infiltrados e subversivos
Essa concepção ambígua, que muitas vezes flerta com certo fascínio com a figura do sobre-humano, reativa-se a cada grande período de desordem coletiva, especialmente quando a ordem dominante é ameaçada ou… ameaçadora. Assim, no entreguerras, tendo como pano de fundo a volatilização dos velhos impérios (Otomano, Austro-Húngaro), o surgimento da impressionante Revolução de Outubro e a ascensão do fascismo e do nazismo, a efervescência e o sucesso das histórias de espiões, infiltrados, subversivos solitários ou reunidos em organizações, manipuladores e manipulados, tanto na literatura popular como no jovem cinema, revelam a forte suspeita de que haveria um inverso da democracia, sua verdade oculta.
Tal verdade mudaria de acordo com a tendência do autor, mais reacionária ou à esquerda. No Reino Unido, muitos romances de Agatha Christie revelam um inabalável desprezo pelo povo. Os quatro grandes(1927), por exemplo, fala de uma coalizão de quatro superinteligências cujo objetivo é dominar o mundo: “A revolta universal, os protestos de trabalhadores […], há pessoas […] que dizem que por trás de tudo isso há uma força em busca de nada menos que a desintegração da civilização”. Os quatro são derrotados por outra superinteligência, a de Hercule Poirot, e não pelas forças do governo.
Com diversas adaptações para o cinema, inúmeros romances de Graham Greene (This Gun for Sale, 1936), e mais ainda do maravilhoso desordeiro Eric Ambler (The Dark Frontier, 1936; Epitaph for a Spy, 1938),2 trataram de conspirações erigidas pelos próprios representantes da ordem – uma ordem corrupta, submetida a interesses completamente diversos daqueles que alegam defender, preferindo a extrema direita à ameaça vermelha. O herói é agora um homem comum, que se vê envolvido em uma manipulação da verdade e obrigado a entender o que está acontecendo. A conspiração aparece então como reveladora das verdadeiras escolhas de democracias fundamentalmente pervertidas. Admirável mundo novo, de Aldous Huxley (1932), é uma versão particularmente deprimente dessa história…
O romance de espionagem afirma o fim da inocência. A democracia se assenta em uma ilusão: acreditar nela é bom para os ingênuos, que não enxergam que os verdadeiros jogadores estão acima da massa ou estão convencidos de que os valores que ela reivindica são efetivos, neutralizando a tensão entre emancipação (política) e dominação (social). O pós-Hiroshima, a Guerra Fria, o macarthismo e as guerras de independência estenderam essa visão, acentuando o cinismo e o elitismo: OSS 117 (1949), James Bond (1953) e SAS (1965), todos muito bem-nascidos e dotados de habilidades incomuns, são profissionais, assim como a verdadeira política também é assunto de profissionais, sendo movida pela traição, pelo jogo duplo, pelo assassinato.3 Nunca é bom dizer às almas simples a verdade dos acontecimentos: o mundo livre e o outro (seja ele qual for) recorrem às mesmas maquinações e assassinatos. Os ideais são bem desbotados.
É preciso dizer que a época é bastante confusa: jovens elegantes “espiões de Cambridge” que trabalham para a União Soviética atuam no serviço secreto britânico no escândalo de Watergate, passando pelo misterioso caso Kennedy, isso para não falar dos processos de Stalin – torna-se francamente complicado permanecer em um mundo binário, Bem/Mal, Democracia/Totalitarismo etc. É isso que conta John Le Carré, com seu espião cinzento e melancólico, pouco inclinado às certezas (O morto ao telefone, 1961), quando muito antes, em 1948, George Orwell, com seu 1984, já havia feito da conspiração de Estado a própria forma do futuro.
Energia nuclear, exploração do espaço, substâncias psicodélicas, ciência questionando a percepção da realidade comum… As décadas de 1950-1970 começaram a consagrar a ficção científica como a forma apta a representar as potencialidades da conspiração contidas na modernidade. Não se trata apenas de revelar, em uma perspectiva mais ou menos crítica, a despossessão do político sofrida pelos cidadãos, mas questionar a própria possibilidade de acreditar que existe uma verdade. Na televisão, após os inúmeros filmes mostrando invasões alienígenas,4 a série norte-americana Os invasores(1967-1968) colocou em cena uma conspiração alienígena para colonizar a Terra. O único humano que entende a situação passa por louco. Na britânica e insuperável The Prisoner, da mesma época, um ex-espião, mantido contra a vontade em uma charmosa vila, luta contra múltiplos ataques, inclusive tecnoquímicos, à sua memória e identidade. Defender sua própria humanidade contra quem deseja desumanizar: nesses tempos em que a contracultura e a revolta estavam prestes a explodir, a conspiração se revestia de questões filosóficas, não mais políticas.
Vinte anos depois, todos esses cenários são exibidos com virulência e têm uma popularidade impressionante, mas dois deles, a julgar por seu sucesso, estão particularmente em sintonia com as preocupações da época: o esquema filosófico e a hipótese da seita dos senhores do mundo. É o momento de nos confrontarmos com “a dificuldade de fazer coincidir a experiência concreta com uma apreensão racional do capital globalizado”,5 apreendido no fluxo dos dados, na circulação desmaterializada de dinheiro, em uma rede global de informações ativas que parece dotada de autonomia.
A realidade não é mais confiável
É o triunfo do escritor de ficção científica Philip K. Dick, que já escrevia, em O homem mais importante do mundo (1959): “O mundo que experimentamos não é o mundo real, mas uma outra coisa, uma semirrealidade, um engodo”. A realidade exterior não é mais digna de confiança, mas, além disso, há dúvidas sobre a realidade interior. Dick está em todas as mídias, adaptado ou reivindicado como influência: Blade Runner (1982), O vingador do futuro (1990), Minority Report (2002), O pagamento (2003) etc. Mas, ao lado de eXistenZ, de David Cronenberg (1999), no qual as pessoas vivem sem saber dentro de um videogame, talvez seja o filme Matrix (1999), dos irmãos Wachowski, que melhor representa sua visão “conspiracionista”: a maioria dos humanos ignora que ocupa um universo virtual, e apenas alguns rebeldes sabem a verdade – o mundo “real” foi devastado, e as “máquinas” tomaram o controle. Nada garante, porém, que quem oferece essa “verdade” não seja um programa. Talvez só existam ilusões. Como diz Alain Badiou, eis um filme para se preparar para Platão…
Paralelamente a essa dúvida metafísica, floresce novamente, para dar sentido ao que se percebe como impotência do Estado, a leitura que postula a clandestinidade do verdadeiro poder, oculto ao cidadão e concentrado nas mãos de alguns escolhidos, os Illuminati. Estranhamente, encontramos aí os Iluminados caros ao romance do século XIX: uma organização esotérica que controla o mundo na sombra. Mas os Iluminados trabalhavam, em geral, pelo progresso da humanidade, enquanto os Illuminati, maléficos, querem apenas a dominação total, a New World Order, e só para eles. Como resumem alguns rappers, eles estão por trás de tudo que representa o poder: “Obama é um fantoche da Nova Ordem Mundial” (Professor Griff, do grupo Public Enemy); “Todos estão envolvidos com essas sociedades secretas, John Kerry, George Bush, Tony Blair, Elizabeth” (Rockin’Squat); “Imagine que estão mentindo para nós, há séculos e séculos/ Que algumas comunidades do alto escalão conhecem as receitas/ Os segredos da vida, não daquela que nos deixam ver” (Keny Arkana).
A loucura Illuminati, paralela à ascensão da fantasia, prosperou na esteira do êxito alcançado pelas conspirações de Dan Brown – O código Da Vinci (2003) e, especialmente, Anjos e demônios (2000). Embora apareça em músicas ou videogames (Grand Theft Auto), seu verdadeiro campo de expressão são as redes sociais, nas quais se denunciam “iniciados”, que podem ser reconhecidos por sinais como a presença de uma figura triangular, dedos em “chifre”… Puro delírio de interpretação, que mistura o dólar, as celebridades, Bilderberg (ver artigo nas págs. 14 e 15) etc., muitas vezes flertando com o antissemitismo.
Que a busca “Illuminati” na página francesa do Google dê 491 mil resultados (a título de comparação, “dívida grega” dá apenas 281 mil), que o volume de venda de livros de esoterismo tenha aumentado 50% (dados do Sindicato Nacional de Editores da França para 2013), que os magros romances de Dan Brown sejam vendidos à altura de 200 milhões de cópias, talvez nada disso seja muito animador. Mas não é impossível detectar, nesse frenesi de decifração – não importa quão pobre ele seja –, a necessidade de encontrar uma verdade que explique a loucura de nosso mundo, de reencontrar uma grande narrativa que dê sentido aos acontecimentos. Necessidade que pode levar à descoberta de um bode expiatório ou à resistência da captura da riqueza coletiva por alguns poucos…
Evelyne Pieiller é jornalista.