Nas montanhas do sul, justiça e a polícia dos de baixo
Em resposta à violência e à corrupção, indígenas de Guerrero implementam outra forma de coibir crimes e julgá-los, para além do Estado. Com a Polícia Comunitária, a delinquência teria diminuído, mas teria ficado ainda mais claro o comprometimento da Justiça com a corrupção e com os donos do poder.Júlio Delmanto
Centenas de homens armados caminham pelas montanhas do Estado mexicano de Guerrero. Eles não pertencem ao Exército nem a grupos paramilitares, tampouco são guerrilheiros ou narcotraficantes. Sem receber salário, vigiam uma zona de dez municípios e obedecem não ao Estado, mas sim às assembleias de suas comunidades. Representam um grito de reação à violência e à ineficácia da polícia e da Justiça mexicanas, além de um exemplo de auto-organização dos povos indígenas. Este texto busca apresentar origens, potencialidades e limitações da Polícia Comunitária de Guerrero, instrumento que é um convite à reflexão sobre outros métodos de aplicação de justiça para além do Estado.
Terra de caciques e pobreza extrema
Apesar de “interrompida”, como definiu o importante ensaio de Adolfo Gilly1, a Revolução Mexicana representou diversas conquistas, sendo a mais importante delas a distribuição de terras consolidada no governo de Lázaro Cárdenas (1934-1940). O montanhoso Estado de Guerrero, localizado no sul do país, se beneficiou desta Reforma Agrária que distribuiu mais de 18 milhões de hectares a comunidades e ejidos: em 2005, 75% das terras cultiváveis do Estado estavam sob estas formas2.
No entanto, isso não impediu que a região ficasse marcada por uma história de violência nos conflitos agrários e pela consolidação dos chamados “caciques”, proprietários de terras que comandam também a política local, recorrendo invariavelmente à violência. Essa situação se agrava a partir de 1992, quando uma reforma constitucional permitiu a privatização das terras comunais e dos ejidos, acirrando os conflitos e o desalojamento das comunidades indígenas.
Além dos conflitos agrários, Guerrero convive historicamente com questões presentes no restante do país: um Estado e uma Justiça débeis, uma classe política altamente corrupta e desacreditada e o crescente poder de organizações comerciantes de drogas ilícitas.
No último dia 1º de março, o Exército divulgou ter encontrado uma “narcofossa” na cidade de San Miguel Tolopan, onde haveria ao menos 120 cadáveres, pouco mais que o dobro de corpos encontrados, em maio de 2010, na mina La Concha.
Em novembro passado, 18 corpos foram encontrados numa vala clandestina em Acapulco, comprovando a existência de uma crescente rotina de violência: a taxa de homicídios em Guerrero é de 45 para cada cem mil habitantes, a terceira mais alta do país. O informe de 2006 do Centro de Direitos Humanos Tlachinollan indica que da montanha de Guerrero provêm 63% de toda a produção de papoula do país.
Como aponta Giovanna Gasparello3, a cultura política do Estado “se caracteriza principalmente pelo centralismo e pelo caciquismo”, tradição herdada de décadas de governo do PRI (Partido Revolucionário Institucional), o “partido de Estado” que controlou sozinho a política nacional do período pós-revolucionário à eleição de Vicente Fox (do PAN) no ano 2000. Segundo Gasparello, a estrutura arraigada de caciques locais impede o desenvolvimento de uma sociedade civil forte e sustenta o centralismo, de modo que “o Estado controla todas as vias de acesso ao poder econômico e político, ainda que não tenha nenhum controle sobre os territórios rurais ‘governados’ pelos caciques”.
Com cerca de 3,5 milhões de habitantes, sendo 17,2% de indígenas4, Guerrero está entre as três piores entidades do país em relação à saúde, educação e renda. A taxa de mortalidade em 2010 era de 5,6 por cada mil habitantes. Um terço destes habitantes vive em estado de “pobreza extrema”5, entre 80% e 100% das moradias não cumprem com as condições mínimas, e 56% das comunidades não contam com água encanada. O índice de analfabetismo é de 22%, sendo que nas comunidades indígenas chega a cerca de 50%6.
O nascimento de outra polícia
Consequência direta desta história de violência política, miséria e conflitos agrários que caracterizam o México como um todo, Guerrero viu nos anos 1960 e 1970 um crescimento de organizações guerrilheiras de esquerda. A repressão estatal foi feroz e desmantelou grande parte delas7, deixando a violência ainda mais consolidada no imaginário da população. A partir de 1994, ano do levante do Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN), o Exército intensificou sua presença na região, que hoje é ainda maior sob o pretexto de combate ao narcotráfico.
O agravamento da sensação de insegurança nos anos 1980 e no princípio da década de 1990 levou a Paróquia de Santa Cruz del Rincón, no município de Malinaltepec, a convocar autoridades indígenas e religiosas para debater as condições e necessidades da região. A partir de 1993 juntaram-se ao processo organizações cafeteiras e produtoras de café e de milho, já que o escoamento de sua produção era prejudicado pelos constantes assaltos. A eles se somou o Conselho Guerrerense 500 anos de Resistência Indígena, Negra e Popular, organização surgida para coordenar manifestações contrárias à celebração dos 500 anos da conquista espanhola.
A indignação era tanto com a polícia corrupta e negligente quanto com a Justiça, que segundo a página da Polícia Comunitária na internet “resistia a investigar e, com o pagamento de `mordidas´ [suborno], rapidamente deixava livres os delinquentes”.
A revolta chegou ao limite quando, no dia 28 de junho de 1995, a Polícia Motorizada do Estado assassinou 17 camponeses e feriu outros 21, da Organización Campesina de la Sierra del Sur, em Aguas Blancas, no município de Coyuca de Benitez. A ação, que contou com mais de 400 policiais, teria sido empreendida a mando do então governador Rubén Figueroa Alcocer e visava impedir a realização de uma manifestação em uma cidade vizinha.
Em 1995 foram realizadas três assembleias, sendo que as autoridades estatais não compareceram a nenhuma delas, mesmo tendo sido convidadas. Isso mostra, por um lado, que a Polícia Comunitária nasce com uma postura aberta ao diálogo com as instituições estatais – postura até hoje mantida; por outro lado, demonstra o desinteresse destas nesta colaboração. Na última assembleia, realizada em Santa Cruz del Rincón, deliberou-se pela criação da “Polícia Comunitária”, definindo-se que tal instrumento seria composto por voluntários das comunidades que trabalhariam sem salário, organizados em grupos de 8 a 12 homens armados, que poderiam deter supostos delinquentes e colocá-los à disposição da Justiça estatal. Trinta e seis comunidades faziam parte desta organização, fundada oficialmente no dia 12 de outubro.
Segundo os membros das comunidades, a delinquência teria diminuído a partir de então, mas teria ficado ainda mais claro o comprometimento da Justiça com a corrupção e com os donos do poder, o que levou à criação da Coordenadora Regional das Autoridades Comunitárias (CRAC) em 1998. A partir de então, a Polícia Comunitária estaria sujeita às assembleias comunitárias, que exerceriam o papel de um sistema judicial a partir de seus usos e costumes e primariam pela “reeducação”: trabalhos físicos (“faxinas”) executados nas comunidades em tempos definidos a partir da gravidade do delito, da possibilidade de reparação deste e de acordo entre as partes envolvidas. A prefeitura municipal de San Luís Acatlán cedeu para a CRAC um terreno de 970 m2, no qual existem três celas.
Giovanna Gasparello lembra que a criação da Polícia Comunitária é também “uma resposta ao racismo profundo expressado pelas instituições em relação à população indígena, que muitas vezes não se reconhece nestas instituições pelo simples motivo de que elas tampouco reconhecem seus direitos cidadãos”. Um exemplo mencionado pelos membros da comunidade é o desleixo dos policiais quando uma denúncia provinha de um indígena: na maioria das vezes recusava-se o recurso a um tradutor, inviabilizando o acesso à justiça daqueles que não falam espanhol.
“Como me vez puedes te ver”
A CRAC atua hoje nas regiões conhecidas como “Montaña” e “Costa Chica”, numa área que abarca dez municípios. São 65 comunidades participantes, com cerca de cem mil pessoas beneficiadas de forma direta. O efetivo da polícia é hoje composto por cerca de 600 homens – não há ainda policiais mulheres, mesmo que elas já exerçam funções dentro da estrutura de justiça e reeducação e lutem por ampliar seu espaço.
A assembleia regional da CRAC realizada num ensolarado e abafado domingo, no dia 23 de janeiro de 2011, em Colochitlán, foi um exemplo interessante do estágio atual da Polícia Comunitária. Com presença de representações de 18 comunidades, a assembleia contou com a impressionante participação de cerca de 500 pessoas e durou todo o dia. Convidados estiveram presentes representantes da Polícia Estatal e da Secretaria de Segurança Pública de Guerrero. A pauta continha 12 pontos, que iam desde a apresentação dos “reeducandos” para a comunidade até queima de maconha apreendida, passando por relatos de grupos setoriais (como de mulheres, saúde, desenvolvimento) e discussão sobre a presença predatória de empresas mineiras na região.
O primeiro ponto da pauta foi a apresentação das pessoas acusadas ou condenadas por infringirem as leis da comunidade e que hoje passam por processo de “reeducação” – cumprem penas de privação de liberdade e de trabalhos comunitários, por períodos definidos caso a caso. Segundo Pablo Guzman, um dos coordenadores da CRAC, essas pessoas foram expostas ali por conta da “quantidade de rumores” que estariam apontando o mau funcionamento da justiça comunitária: “Se estão sendo apresentados não é com finalidade de humilhá-los, são nossa gente, todos podemos cometer erros”, discursou Guzman antes da entrada (certamente humilhante) dos cerca de 30 detentos algemados e com camisetas que diziam “Estamos em reeducação” e “Como me vez puedes te ver” – frase dúbia que poderia tanto ser uma ameaça como um pedido de compreensão e tratamento digno. Havia apenas uma mulher.
Foram lidos os nomes das pessoas, sua comunidade de origem e seu idioma, além das acusações pelas quais estavam detidas na Casa de Justiça de San Luís de Acatlán. Os crimes iam desde homicídio e estupro até plantio e venda de maconha, e as penas variavam de um a 20 anos. Foi ressaltado que muitas daquelas pessoas ainda eram suspeitas, não haviam sido condenadas, e um senhor discursou pedindo que eles “reconhecessem seus erros” e trabalhassem no sentido de reconquistar a confiança da comunidade. Guzman ressaltou que o projeto da polícia, que vai além da prevenção e repressão ao crime, é de “desenvolvimento integral da região”. Neste sentido, começam a ser gestados grupos de trabalho em outras frentes, que discutem e propõem ações em setores como saúde, educação, economia, rádio e desigualdade de gênero.
Destruir a Justiça ou operá-la de baixo?
Nota-se neste exemplo da assembleia e no próprio histórico da Polícia Comunitária e da CRAC tanto as inovações quanto as limitações presentes neste projeto. Diferentemente do exemplo da justiça em comunidades zapatistas, na qual o sistema jurídico alternativo se constitui a partir de um projeto político definido e em execução, a Polícia Comunitária nasce de um anseio de justiça frente a uma crescente sensação de criminalidade e um sentimento de impunidade e ineficiência da Justiça estatal. Nunca se colocaram contra o Estado, como os zapatistas que declararam guerra a ele em 1994. Portanto, não questionam a priori seus preceitos – nascem com a intenção de aplicá-los melhor.
Pautam-se pela busca de uma Justiça construída “por baixo”, a partir dos “usos e costumes” das comunidades indígenas e colocada em prática por seus atores e buscam mecanismos de conciliação e reparação dos danos que não sejam necessariamente a violência vingativa da privação de liberdade. No entanto nota-se, pelos delitos coibidos,e crimes pelos quais as pessoas são presas e apresentadas na assembleia, uma clara simetria entre o sistema penal estatal e o comunitário, não só com a individualização do delito – cada um é responsável por seus atos, não sendo o crime encarado como uma questão social – como na quantificação das penas em anos e na concepção da pena como método pedagógico. As punições notadamente seguem um padrão e são medidas em meses e anos, decalque de uma justiça capitalista que se baseia no tempo de trabalho como medição de valor, por conta do trabalho assalariado, como demonstra Michel Foucault em Vigiar e punir.
“A individualização e a demonização do criminoso são características inerentes à reação punitiva”, aponta a juíza aposentada Maria Lúcia Karam8. Demonstra como a reação punitiva contra um autor de condutas socialmente negativas, “gerando a satisfação e o alívio experimentados com a punição e consequente identificação do inimigo, do mau, do perigoso”, desvia as atenções dos problemas de fundo e “afasta a busca de outras soluções mais eficazes, dispensando a investigação das razões ensejadoras daquelas situações negativas, ao provocar a superficial sensação de que, com a punição, o problema já estaria satisfatoriamente resolvido”.
Na análise e julgamento dos casos denunciados à Justiça Comunitária não existem advogados. O próprio acusado se defende, muitas vezes em diálogo aberto com a vítima, o que representa grande avanço no sentido de desfazer o “sequestro” da voz de vítimas e acusados empreendido pelo direito penal tradicional, no qual dialogam advogado e procurador, mediados por um juiz supostamente neutro.
No entanto, segue existindo a figura do procurador de justiça (designado pela CRAC), e outro elemento neutro que decide sobre a gravidade do crime e punição – neste caso as assembleias, a coordenação da CRAC e os conselhos de autoridades comunitárias. O crime continua sendo encarado como agressão à comunidade, não deixando, portanto, de subtrair-se a voz da vítima, principal interessada e necessitada de alguma forma de reparação.
Apesar de ressaltar alguns limites e dificuldades desta experiência, Giovanna Gasparello acredita que a Polícia Comunitária em Guerrero “representa um processo que aponta para a reconstituição de um tecido social fragmentado pela violência e pela distribuição desigual do poder e dos recursos, favorecendo a organização coletiva para enfrentar as necessidades da população, reinventando as estruturas e o sentimento comunitário”. Resta saber se um sistema de comunidade, de fato alternativo ao imposto pelo capitalismo e sua ferramenta Estado, pode conviver com um sistema penal ancorado nas bases de uma justiça estatal, remodelada e operada por outros atores, mas ainda assim não desestruturada.
Foucault9 aponta que uma transformação revolucionária “não pode deixar de passar pela eliminação radical do aparelho de justiça”. Na complexidade de sua história e caminhada, o processo da Polícia Comunitária, mesmo não mostrando perspectivas de tamanha ruptura, levanta a interessante reflexão de como os de baixo estão se conscientizando cada vez mais, em diversas partes do planeta, de que não precisam de uma ferramenta criada e implementada pelos de cima para reagir e regulamentar seu cotidiano e suas vidas.
Júlio Delmanto é jornalista, doutorando em História Social na USP – Universidade de São Paulo.