Nas trilhas íngremes da luta armada
O engajamento violento é algo coletivo: são raros os casos de indivíduos isolados que se autorradicalizam, e passam à violência armada. O grupo tem papel crucial, assim como a família. Quando os conflitos perduram no tempo, é comum encontrar várias gerações engajadas na lutaLaurent Bonelli
Em berango, 15 km de Bilbao / Espanha, faixa em defesa do ETA afirma: “A luta é o caminho”.
À exceção de alguns especialistas de sociedades muçulmanas, a maioria dos pesquisadores estuda o radicalismo islâmico como um fenômeno em si e para si, isolando-o dos outros campos das ciências sociais. Contudo, a dificuldade de realizar investigações com fontes primárias não explica tudo. O tipo de análise deve ser associado a quem as produz e à posição que ocupa – em geral, um limiar entre o mundo acadêmico, os serviços de informação (aos quais pertenceram ou com os quais estabelecem estreitas relações), especialistas públicos (em comissões nacionais e internacionais, think tanks) e do campo midiático. Trata-se de um esforço mais para auxílio de decisões políticas em face de um perigo particularmente ameaçador, que para compreensão das dinâmicas do conflito.
Compreender a “violência política” implica, em primeiro lugar, questionar a aparente unidade do fenômeno. As relações pontuais que possam existir entre militantes italianos e os da Ação Direta (AD, da França), ou entre a Fração Armada Vermelha alemã (Rote Armee Fraktion (RAF) e os ativistas da Fração Armada Revolucionária Libanesa (Farl), não autorizam a interpretação de que estão conectadas por uma “linha vermelha” (como se dizia na época dos soviéticos) ou perseguem os mesmos objetivos. Da mesma forma, é absurdo pensar que as motivações do Grupo Salafista para a Predicação e Combate (GSPC) são idênticas às da Jamaah Islamiyah indonésia, só porque aceitaram fazer parte da Al Qaeda.
Também é artificial agrupar sob o mesmo rótulo organizações de algumas dezenas ou centenas de indivíduos radicais, e organizações políticas militarizadas consolidadas social e territorialmente, como o Hamas na Palestina, as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc) ou a Partiya Karkerên Kurdistan (PKK) na Turquia. Todas elas, porém, figuram como “terroristas”, sem qualquer nuance, sob os olhos da União Europeia.1
Uma boa alternativa para analisar casos de violência política consiste em reconstruir o contexto no qual eles se desenrolam, o histórico das organizações em questão e a trajetória de seus militantes.2 Desse ponto de vista, os “ciclos de violência” observados na Europa e no Japão entre o final dos anos 1960 e 1980 remetem, antes, ao esvaziamento de poderosos movimentos sociais – processo cujo refluxo impulsionou certo número de militantes para o enfrentamento armado. A emergência de grupos jihadistas nos anos 1990 está ligada à impossibilidade das forças políticas islâmicas de aceder ao poder (principalmente na Argélia, Egito e Arábia Saudita).3
Formas e conteúdos diferentes
Essa radicalização também tem formas e conteúdos diferentes. Na Itália, está relacionada ao mundo operário. No final dos anos 1960, fortes conflitos sociais sacudiram as fábricas (Pirelli e Siemens, sobretudo). A “propaganda armada” apareceria nesse âmbito. As primeiras ações – destruição de veículos de feitores ou prisão de quadros superiores – refletem a composição social dos grupos armados. Entre as 1.337 pessoas condenadas por pertencer às Brigadas Vermelhas (Brigate Rosse– BR), 70% eram operários do setor terciário ou estudantes. Prima Linea, composta principalmente por desempregados e estudantes, também contava com expressiva parcela de operários entre seus 923 membros perseguidos pela justiça.4
Na Alemanha, os militantes da RAF foram recrutados, sobretudo, entre os estudantes e a pequena burguesia intelectual. O sociólogo Norbert Elias mostrou que a emergência de uma posição extraparlamentar no final dos anos 60 se devia a um “conflito social de geração”, marcado pelo antagonismo entre jovens altamente politizados mantidos afastados das decisões e responsabilidades políticas, e os mais velhos que ocupavam esses lugares.5
Se esses dois países viram nascer movimentos radicais mais numerosos, foi também porque, vinte anos depois da Segunda Guerra Mundial, a preocupação deles com a possibilidade de retorno de governos fascistas era maior que a de outros lugares.
De fato, entre 1969 e 1975, os atentados e a violência política foram imputados a grupos de direita (95% das ações de 1969 a 1973, 85% das de 1974, e 78% das ações de 1975).6 A intensificação da atividade de esquerda é posterior a esse período: cerca de 80% dos atentados mortais atribuídos a essas organizações, ou por elas reivindicados, ocorreram entre 1978 e 1982.7
Grande parte da energia reformadora ou revolucionária vinha da ideia que, atrás da fachada de Estado parlamentar multipartidário, um ditador e seus regimentos esperavam a hora de se revelar, e que a polícia da República federal era sua vanguarda.8
A situação era bem diferente na França. A extrema esquerda foi perdendo sua força à medida que as incertezas disseminadas pelos acontecimentos de maio e junho de 1968 se dissiparam e o jogo político se estabilizou. A Liga Comunista, dissolvida em junho de 1973 após ataque a uma reunião de extrema direita, abandonou a confrontação de rua e reorientou suas prioridades para “o trabalho nas fábricas”. Rebatizada de Liga Comunista Revolucionária (LCR), amargou um lento declínio e fez seus militantes mergulhar em angústias e discussões sobre a ação violenta.9
Do seu lado, a Esquerda Proletária, proibida em 1970, dissolveu-se em 1973 após hesitar em se engajar numa via mais radical – notadamente no momento do sequestro de um funcionário da Renault, seguido da morte do militante operário maoista Pierre Overney.
Ao contrário do que ocorreu na Itália ou na Alemanha, poucos militantes franceses se envolveram em ações armadas. Alguns grupos de inspiração maoísta apareceram naquela época: as Brigadas Internacionais (1974-1977) reivindicaram os atentados contra representantes de governos autoritários estrangeiros (Bolívia, Uruguai, Espanha, Irã ou Mauritânia); o grupo Núcleos Armados pela Autonomia Popular (Napap) leva adiante, em 1977, uma série de ações contra instituições públicas ou grandes empresas, das quais a mais significativa foi o assassinato de Jean-Antoine Tramoni, o segurança da Renault que havia assassinado Overney.
Em 1979, a AD surgiu da convergência desse contexto com os Grupos de Ação Revolucionária Internacionalista (Gari), rótulo que reagrupava ativistas dos Pirineus que lutavam contra o franquismo. Próximo de Salvador Puig Antich – executado pela ditadura espanhola em 1974 –, Rouillan relembra em suas memórias: “Perpetuamos três décadas de guerrilha, continuamos a tecer a rede que nos prendia a uma epopeia, a um exército maltrapilho, à esperança de que era possível escrever história com pólvora e chumbo”.10
Organizar uma ação de comando, fabricar documentos falsos, atacar bancos para financiar a luta, são práticas conhecidas. Muitas armas das BR provinham dos estoques da Segunda Guerra, o que foi revelado pelo reconhecimento de uma das metralhadoras utilizadas durante o sequestro de Aldo Moro. Ou, no caso da AD, das armas conservadas pelos republicanos espanhóis exilados na França. No caso dos jihadistas transnacionais, é preciso lembrar a luta contra os soviéticos no Afeganistão, que iniciou toda uma geração de militantes no combate armado e na circulação de certos materiais (armas, explosivos, prata etc.) e em certas “competências”.
Um engajamento coletivo
O engajamento violento é algo coletivo: são extremamente raros os casos de indivíduos isolados que se autorradicalizam, ontem por leituras, hoje em fóruns da internet, e passam à violência armada. O grupo, portanto, tem papel crucial, assim como a família. Quando os conflitos perduram no tempo, não é raro encontrar várias gerações engajadas na luta armada, como é o caso dos militantes nacionalistas bascos ou irlandeses, siquistas, curdos e palestinos.
Claude Halfen, membro da AD, conta sua experiência: “Nasci numa família de resistentes […], meus avós tinham sido desnaturalizados. Foram naturalizados após 1927 e, de repente, em 1941, se viram apátridas, perseguidos, caçados. Então, cresci com a ideia de que a dignidade estava em pegar em armas para combater um poder ilegítimo e sua violência”.11 A memória familiar das lutas encoraja e legitima, de alguma forma, a participação nesse tipo de ação.
As relações de amizade também podem fomentar a participação em organizações armadas. A solidariedade entre os jovens que cresceram no mesmo bairro pode ser o cimento do grupo, como no caso do Khaled Kelkal (implicado nos atentados de 1995 na França), de certos comandos do Euskadi Ta Askatasuna (ETA) na Espanha ou do Exército Republicano Irlandês (IRA) da Irlanda do Norte, que renunciou às armas em 2005. Pequenos círculos formados por pessoas com afinidade política também podem levar à radicalização gradual de seus membros. Os antigos amigos ou os menos convencidos se afastam à medida que o núcleo central se torna mais coeso e alinhado pelas mesmas crenças.12
Não é a propaganda das organizações clandestinas que “atrai” os futuros membros. Como escreve Silke, “os indivíduos não se radicalizam pelos esforços de um recrutador da Al Qaeda, esse processo acontece de maneira quase independente dos jihadistas já estabelecidos”.13 Os autores dos atentados de 7 de julho de 2005, em Londres, tinham uma ligação bastante distante com a religião, e não pediram apoio da Al Qaeda até o momento da realização do projeto.
A opção pela ação violenta por parte de um grupo ideologicamente radicalizado, no entanto, não é sistemática, nem necessária. Outros fatores, em geral indissociáveis, intervêm: a ação das autoridades públicas e a clandestinidade. A violência política jamais é obra de apenas um grupo de atores. Na Irlanda do Norte, a prisão arbitrária, em 1971, de quase 2 mil suspeitos de “terrorismo” impulsionou centenas de jovens trabalhadores nacionalistas a juntar-se ao IRA.14
A clandestinidade é um passo a mais na radicalização armada dessas organizações, em geral para escapar das forças da ordem após delitos menores. Trata-se de um engajamento total, que significa mudar de nome, identidade, romper com conhecidos. “Na clandestinidade, a sobrevivência depende da rapidez com a qual você se desloca, com a qual você muda de vida. No fim das contas, […] do ponto de vista existencial, você se transforma em um fantasma. Não é que você deixa de ser real para si mesmo; os camaradas e a relação com eles também são bem reais, até mesmo intensos em algum casos. Mas não podemos existir para o resto do mundo”,15 explica Moretti. O testemunho de certas esposas, ou de companheiras dos autores do atentado de 11 de março de 2004, em Madri, mostram que esse processo gradual de fechamento do grupo inclui até mesmo os mais próximos.16
A segurança se torna o elemento central da vida clandestina, amplamente codificada. Em 1975, em Pavia, pesquisadores encontraram o manual “Normas de segurança e estilo do trabalho”, que dá uma ideia das regras cotidianas dos membros das BR em relação a comida, vestuário, uso de telefone e até mesmo relações sexuais. Em 2006, a Guarda Civil espanhola achou publicação similar do ETA. Essas normas, contudo, nem sempre eram respeitadas: as prisões após uma escapada amorosa ou o mero contato com a mãe doente eram comuns.
A urgência determina a estratégia
Encontrar armas, novos esconderijos, fabricar documentos falsos, munir-se de dinheiro – sobretudo por meio de assalto a bancos –, planejar ações e, às vezes, recomeçar tudo após uma onda de prisões: a urgência determina a estratégia.
“Não era suficiente reconhecer que estávamos pressionados para saber em que direção ir”, conta Moretti. Por lealdade ou necessidade, era preciso planejar ataques a prisões, por exemplo, como a de Rovigo, na Itália, por militantes da Prima Linea em janeiro de 1982; fazer reféns, como na embaixada da República Federal da Alemanha em Estocolmo, em 1975, ou a explosão de um avião da Lufthansa no mesmo ano por militantes da RAF; sequestrar personalidades (Moro pelas BR; Hans Martin Schleyer, o presidente do patronato alemão, pela RAF). A continuação da luta aparece também como meio de suavizar as condições de detenção dos militantes presos, como é o caso do ETA, na Espanha,
Finalmente, a lógica de funcionamento e proteção desses grupos condena-os a recrutamentos seletivos, o que por sua vez os impede de atingir massa crítica necessária para criar uma relação de força suficiente para empreender negociações políticas.
A ousadia e o endurecimento das ações, quer se trate de represália contra as forças da ordem ou ataques contra altos representantes do Estado, reforçam a demonização dos grupos clandestinos e aumentam a distância entre eles e os movimentos sociais dos quais tinham apoio – o que autoriza, em geral, uma nova onda repressiva em forma de leis de exceção, quase sempre resultantes em fuga, prisão ou morte para os militantes.
Sem dúvida, a luta de pequenos grupos armados conserva a capacidade de atingir o Estado – seus agentes ou símbolos –, mas nunca poderá desestabilizá-lo, mesmo com o aumento da violência letal, como no atentado de 11 de setembro de 2001.
Laurent Bonelli é integrante do grupo de análise política da Universidade Paris 10 – Nanterre. Publicou La France a peur. Une histoire sociale de l’insécurité, Paris, La Découverte, 2008.