Negar a ciência: uma forma de expandir de si mesmo
Os conflitos dos terraplanistas com o conhecimento científico secular sobre a Terra e com a NASA, em específico, também podem dizer bastante sobre o nosso tempo – em que tanto a ciência quanto os aparatos estatais passaram a ser vistos, para grupos significativos das populações mundiais, como instituições ambíguas, cujas práticas são duvidosas e relações são interessadas, diante das quais as posturas possíveis vão desde uma desconfiança inicial até a recusa radical.
“Não precisa de fórmulas complicadas de matemática para saber onde se vive”. É assim que a jornalista estadunidense Patricia Steere, criadora do podcast “Flat Earth and Other Hot Potatoes” (“Terra Plana e Outras Batatas Quentes”) justifica seu argumento de que o planeta não é redondo, ignorando o que diz a ciência desde pelo menos Galileu Galilei (século XVI). Para ela, o planeta é uma espécie de disco bordeado pelo mar que gira debaixo do Sol e da Lua.
“Mas os grandes poderes nos disseram isso. ‘Confiem em nós, acreditem’. E nós acreditamos. Eu acreditei!”, continua ela, indignada, na sequência do documentário “A Terra É Plana” (“Behind The Curve”, 2018), disponível no Netflix. Steere é um dos nomes mais conhecidos mundialmente dentre os chamados terraplanistas: pessoas que defendem que a Terra é plana ou então que duvidam da afirmação de que ela seja um globo. Segundo uma pesquisa feita pelo Instituto Datafolha, no ano passado, 7% dos brasileiros adultos dizem o mesmo – o que representa um universo de cerca de 11 milhões de pessoas.
Além da percepção, a maioria delas compartilha também o inimigo a ser combatido, a saber, a National Aeronautics and Space Administration (NASA), agência estadunidense responsável por grande parte das expedições humanas ao espaço a partir da metade do século XX e que, desde então, produz – além de dados e investigações científicas – relatos e imagens da Terra tal como ela é: uma esfera. Na esteira da Guerra Fria, em que a NASA esteve no centro da corrida espacial entre Estados Unidos e União Soviética, os países alinhados aos estadunidenses, como o Brasil, ajudaram a legitimar a produção científica da agência estatal. A entidade mantém uma transmissão ao vivo da Terra feita por uma câmera instalada na Estação Espacial Internacional (ISS, em inglês).
Nosso tempo
Os conflitos dos terraplanistas com o conhecimento científico secular sobre a Terra e com a NASA, em específico, também podem dizer bastante sobre o nosso tempo – em que tanto a ciência quanto os aparatos estatais passaram a ser vistos, para grupos significativos das populações mundiais, como instituições ambíguas, cujas práticas são duvidosas e relações são interessadas, diante das quais as posturas possíveis vão desde uma desconfiança inicial até a recusa radical. Por outro lado, é um tempo em que a individualidade (no sentido de soberania de si mesmo) almeja se alargar em uma velocidade maior do que as estruturas que, segundo os sociólogos e filósofos do século XX (como Pierre Bourdieu), delimitavam os limites da ação do sujeito, complexificando ainda mais essa dicotomia clássica.
Em algum sentido, pode-se até sugerir que um fenômeno desaguou no outro, ou seja, que um sujeito cada vez mais soberano, um “super sujeito”, foi ganhando condições de duvidar, precisando apenas de suas próprias convicções, de convenções que estavam até então coletivamente amparadas, como a conclusão de que a Terra é redonda ou de que o clima no mundo está ficando mais quente como consequência da ação humana.
Esse “sujeito” fica visível em outra cena do documentário: caminhando por uma das praias da Baía de Elliot, que ilha Seattle entre dois parques nacionais do estado de Washington, outro terraplanista famoso, Mark Sargent, é estimulado pelo entrevistador a explicar sua versão da teoria. Então, ele aponta para a margem oposta da baía, onde se pode enxergar uma parte da cidade. “Aqueles prédios lá longe, aquilo é Seattle. A gente não deveria vê-los. Deveria haver uma curvatura de metros entre nós e eles. Mal deveríamos ver o topo dos edifícios”, diz. Depois, desenhando uma pequena curvatura na areia da praia com dois pontos em cada extremidade, ele prossegue: “Se houver um objeto longe o bastante, não poderá vê-lo aqui, porque a curvatura colocará esse objeto do outro lado da colina. Logo, é plano”. E, então, Sargent sacramenta: “a ciência não está conseguindo combater o que estamos fazendo”.
As “crises” da razão e dos governos
Apesar de algum espanto aqui e ali, a razão e um dos seus principais instrumentos, a ciência, já foram diagnosticados em crise pela filosofia há muito tempo – como mostra o cientista social Bruno Mäder em artigo publicado no Le Monde Diplomatique em paralelo a esse*. Friedrich Nietzsche escreveu no século XVIII que a razão enquanto guia da civilização sempre foi a maior farsa vendida pela modernidade. Theodor Adorno, mais tarde, mostrou que a racionalidade moderna convive com elementos ditos irracionais, como a astrologia – e que mitologias como essa provavelmente falassem mais sobre a ciência do que o contrário. Michel Foucault, na segunda metade do século XX, radicalizou as proposições de Adorno ao explicar a própria razão e a ciência a partir da história da loucura.
Uma das justificativas mais comuns para explicar a desconfiança atual em relação a ciência – expressa no fenômeno dos terraplanistas, mas também dos movimentos antivacina ou dos que negam o aquecimento global, por exemplo – é que ela está em “crise”. Algumas análises, estruturadas a partir dos pressupostos dos autores da Escola de Frankfurt, apontam que esse distanciamento se deu como reação ao que a ciência se tornou: um instrumento de dominação, e não de emancipação humana.
Mas há outras explicações: no contexto brasileiro, o historiador Luiz Marques, da Unicamp, defende que, por detrás dessas posturas, há uma espécie de nacionalismo que é novamente erigido para contrapor supostos “desígnios imperialistas”, como aconteceu no episódio dos incêndios na Amazônia, na metade de 2019. À época, os negacionistas brasileiros apontaram as ONGs ambientais como responsáveis, afirmando que elas começaram o fogo por serem ligadas aos interesses das potências mundiais em dominar a floresta.
Marques também argumenta que a ciência entrou em descrédito porque, se passou os últimos séculos produzindo significativos avanços para as sucessivas sociedades (mais energia, mais segurança, mais mobilidade, etc.), agora é ela quem ocupa a ponta de um novo discurso: o de que, para que a humanidade continue se reproduzindo, são necessários freios – no consumo, no caso do aquecimento global, por exemplo.
A filósofa, matemática e historiadora Tatiana Roque, da UFRJ, argumenta não apenas que a mudança de hábitos endossada pela ciência é um álibi para sua negação – no caso do aquecimento global –, mas também que isso é parte do fenômeno da pós-verdade. “Ela não designa apenas o uso oportuno da mentira (embora ele seja frequente. O termo sinaliza, acima de tudo, um ceticismo quanto aos benefícios das verdades que costumavam compor um cenário comum, o que explica certo desprezo por evidências factuais usadas na argumentação científica”, escreveu ela na edição de fevereiro da revista “Piauí”
“Evidências e consensos científicos têm sido facilmente contestados com base em convicções pessoais ou experiências vividas”, completa ela. E isso acontece – seguindo o argumento que tem sido utilizado – porque, em um tecido social fragilizado e desconfiado, teorias conspiratórias e ceticismo são férteis.
Mas talvez haja um ponto paralelo a esse.
O “super sujeito”
Há um conflito próprio deste tempo entre um indivíduo cada vez mais soberano, que faz julgamentos baseados apenas na cognição, no “olhar para o topo dos prédios de Seattle e definir que a Terra é plana”, e aquelas instituições que, outrora pilares da modernidade, como os governos democráticos, o conhecimento científico e seu consequente desencantamento do mundo, hoje são símbolos de sua derrocada. E o que parece estar se colocando no seu lugar é um mundo caótico, ainda sem um “ismo”, formado por indivíduos se expandindo constantemente, sempre às custas das expansões dos outros, todos “super sujeitos” prontos para questionar qualquer coletividade às custas de mais expansão de suas individualidades – em qualquer sentido delas.
O resultado disso é o que argumenta o sociólogo Renan William dos Santos: a realidade perdeu seu aspecto impositivo, a força de ser um fato. O sujeito contemporâneo, avançando em seu pensamento, sente-se capaz de construir uma realidade para si mesmo – um abrigo onde pode viver às custas de suas próprias convicções sem ser perturbado. O que é cognitivo, o que tem algum acesso possível, o fenômeno dos idealistas alemães, não é mais o que eles apontavam ser no século XVIII: trata-se da possibilidade do ser humano refugiar-se em suas próprias inclinações sem medo de ser perturbado pela inevitabilidade das coisas em si.
Porém, não se trata apenas de uma crise da razão moderna nem da negação de um desencantamento do mundo, mas também de uma nova postura diante dos governos – principalmente os democráticos –, que prometeram liberdade, igualdade de oportunidades e respeito aos diferentes direitos da pessoa humana, mas que entregaram rígidas estruturas sociais, acumulação de capital e violações aos mesmos direitos.
Os negacionismos, muito além de “estupidezes”, como tacham alguns, são consequências de uma desconfiança gradual que, neste exato momento do mundo, encontrou-se com um sujeito suficientemente capaz de não apenas desconfiar, mas de se organizar para desconfiar, e não apenas aspirar a agir, mas agir, de fato.
*Ambos os artigos foram produzidos em conjunto.
Vinícius Mendes é jornalista, cientista social, mestrando do departamento de Sociologia da USP e professor do curso de Jornalismo da Universidade Paulista (UNIP)