Negar o sexual na infância diz o que sobre nós?
Não reconhecer a criança como um ser sexual ou até impedir que o assunto da sua sexualidade seja debatido contribui para que o tema se torne um grande tabu. Perdemos com isso a possibilidade de pensar em propostas educacionais que considerem esse aspecto tão fundamental para a constituição da subjetividade da criança. Ademais, isso me parece imprescindível em um país que registrou, em 2020, 14.000 acusações de abuso sexual infantil e que contabiliza cerca de 100 estupros de crianças e adolescentes por dia
Por muito tempo, acreditou-se que a infância era uma etapa de um processo linear, claro e ordenado em direção à fase adulta. Essa ideia, alinhada a teorias de cunho desenvolvimentista e a teóricos como Piaget, é pautada no argumento de que a criança atinge marcos cognitivos a cada faixa etária. Philippe Ariès, em seu notório livro A história social da criança e da família, publicado em 1960, foi o primeiro historiador a chamar atenção para a possibilidade de a infância ser social e historicamente construída e não um estágio “natural” do desenvolvimento. Embora o trabalho de Ariès tenha recebido críticas bem-fundamentadas, foi enorme seu impacto no campo do estudo da infância. Autores mais contemporâneos, como Lucia Rabello de Castro, argumentam que a infância como “instituição” apresenta características diversas que variam de acordo com o tempo e o contexto histórico e que, portanto, não dispõe de uma essência, mas remete a uma construção que muda de acordo com grupos sociais e épocas.
Mesmo diante das abordagens que se distanciam de uma visão evolutiva e cronológica, o entendimento de criança e adulto como noções antagônicas ainda prevalece. Enquanto os adultos são considerados seres sexuados e capazes, as crianças são majoritariamente percebidas como assexuadas, inocentes, incapazes, ou seja, como seres incompletos (aqueles que se tornarão adultos um dia). Esse tipo de análise reforça a ideia de que a sexualidade começa apenas na puberdade/adolescência e que por isso não seria concebível, nem aceitável, que variadas formas de expressão do sexual fossem encontradas na vida infantil. Quando são observadas, não à toa, são objetos de uma patologização intensa e passam a ser classificadas como comportamentos inadequados. A sexualidade é assim reconhecida legítima apenas na fase adulta.
Tal tendência a desconhecer a sexualidade infantil é, em larga medida, influenciada por valores morais e religiosos dominantes. Ademais, como nos lembra Jacqueline Rose, em The Case of Peter Pan, or The Impossibility of Children’s Fiction (publicado em 1984), a maneira como concebemos a infância diz respeito mais a nós adultos do que às crianças. De acordo com a autora, tratar a criança como inocente é acima de tudo assegurar que não haja qualquer questionamento em relação a nossa própria sexualidade. Tomando como exemplo a literatura infantil, Rose demonstra como esta não pode ser dissociada da relação criança-adulto, incluindo os impulsos e desejos deste último. Isso ocorre porque aquele(a) que escreve o livro está sempre implicado(a) nas cenas infantis que narra.
Tais discussões, ainda que contemporâneas, estão presentes desde importantes textos da psicanálise. A teoria fundamental de Freud insistia na sexualidade infantil e via a criança como um sujeito cujo corpo é erogeneizado desde o início – ou seja, um corpo que será habitado pelo desejo. Segundo o psicanalista, em Os três ensaios sobre a teoria da sexualidade, a criança nasce com impulsos sexuais – expressados, por exemplo, pelo prazer na sucção ou na masturbação – que vão ser desenvolvidos, reprimidos, e se tornam inconscientes, voltando à consciência sob forma de sintomas.
Neste ponto vale nos questionarmos sobre os danos para a criança – incluindo os sintomas que apresentará futuramente – quando tratamos o sexual apenas sob o viés reprodutivo. Como quem trabalha nas escolas tantas vezes já testemunhou, a questão sexual é ignorada, ou melhor, evitada na educação infantil, se reduzindo apenas ao ensinamento, geralmente pelo professor de ciência, dos órgãos reprodutores e das doenças sexualmente transmissíveis nos anos finais da educação fundamental. Essa abordagem nega a força que o sexual – que não está ligado ao ato sexual em si, mas aos impulsos sexuais nas suas mais variadas formas – tem na constituição do sujeito e dos seus desejos. Em outras palavras, ela deixa de fora algo que é determinante para vida e os enigmas que a cercam.
Não reconhecer a criança como um ser sexual ou até impedir que o assunto da sua sexualidade seja debatido contribui para que o tema se torne um grande tabu, reforçando a noção de que é errado falar sobre ele – ou que se falarmos, introduziremos o sexual em um lugar a que ele supostamente não pertence. Perdemos com isso a possibilidade de pensar em propostas educacionais que considerem esse aspecto tão fundamental para a constituição da subjetividade da criança. Não tenho como objetivo aqui delimitar como esse trabalho deveria ser feito, apenas reforçar que o primeiro passo é aceitar que a sexualidade faz parte do mundo infantil. Ademais, isso me parece imprescindível em um país que registrou, em 2020, 14.000 acusações de abuso sexual infantil e que contabiliza cerca de 100 estupros de crianças e adolescentes por dia. Afinal, como tratar de um assunto tão drástico e urgente com essas milhares de crianças, se o sexual supostamente não faz parte do seu mundo?
Negar o sexual das crianças não o faz desaparecer, mas revela nosso incômodo em lidar com ele. No fim, essa atitude diz mais sobre nós do que sobre elas.
Caio Lo Bianco é idealizador e diretor do LIV – Laboratório Inteligência de Vida, programa que desenvolve competências socioemocionais nas escolas. Formado em Economia pela FGV e Arte-Educação pelo Arte Ação Brasil, Caio também é professor, mestre em Educação pela Universidade de Columbia, em Nova York, e pós-graduado em processos educacionais de Reggio Emilia.