Negligenciar responsabilidades comuns, porém diferenciadas como estratégia para enfraquecer a agenda dos direitos humanos para a ação climática
Não inclui apenas fortalecer os compromissos com a igualdade de gênero, mas também ampliar as linguagens e abordagens para grupos marginalizados
Desde o Acordo de Paris, em 2015, observou-se um movimento crescente de países, especialmente os desenvolvidos, em minimizar a importância da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (UNFCCC) como instrumento regulador e normativo. Esse deslocamento tem implicações significativas para a agenda climática global e para a proteção e promoção dos direitos humanos, já que o tratado apresenta critérios mais rigorosos em relação às responsabilidades históricas dos países desenvolvidos. Esse processo de enfraquecimento da Convenção ameaça diretamente os avanços em justiça climática e social, incluindo as perspectivas de gênero e direitos humanos nesse combate.
A UNFCCC estabelece os fundamentos das responsabilidades comuns, porém diferenciadas (RCdD), o que enfatiza a dívida histórica dos países desenvolvidos devido ao seu papel desproporcional na emissão de gases de efeito estufa. O Acordo de Paris, embora derivado da Convenção, representou um marco de flexibilização desses compromissos, principalmente ao permitir que os países desenvolvessem Contribuições Nacionalmente Determinadas (NDCs) de forma voluntária, sem metas uniformemente obrigatórias. Essa mudança reduziu a pressão sobre os países desenvolvidos para assumirem papéis de liderança em mitigação e financiamento climático, deslocando a responsabilidade para um esforço global mais “homogêneo”. Na prática, isso diluiu o peso histórico dos países responsáveis pelas emissões e enfraqueceu os mecanismos de responsabilização, desfavorecendo os países em desenvolvimento e marginalizando as questões de justiça social e climática, incluindo os direitos humanos.
Neste contexto, desde a Conferência de Bonn em 2024, os Estados Unidos têm defendido a inclusão de itens de gênero sob a normativa da CMA (Conferência das Partes que atua como Reunião das Partes no Acordo de Paris). A justificativa é que decisões espelhadas entre a CMA e a COP facilitariam o processo. Contudo, essa abordagem cria uma duplicidade desnecessária, que enfraquece decisões já estabelecidas sob a UNFCCC e torna o processo ainda mais burocrático, o que, mais uma vez, fragiliza os países em desenvolvimento, que muitas vezes têm estrutura insuficiente para a implementação de processos. Além disso, ao promover mais burocracia, essa estratégia desvia o foco de decisões maiores e fundamentais, como o reconhecimento das responsabilidades históricas para o financiamento climático, em um momento em que esses compromissos são mais urgentes do que nunca.
Em resposta a essa proposta, o grupo de países conhecido como G77+China, que congrega 135 países do Sul Global, tem se mantido unido contra sua aprovação, argumentando que ela enfraquece os mecanismos já existentes sob a UNFCCC. Enquanto isso, a União Europeia tem ameaçado não consensuar textos caso estes não façam referência explícita ao Acordo de Paris. Esse impasse revela a polarização entre as partes, dificultando avanços concretos em questões fundamentais, como justiça de gênero e financiamento climático.
O processo de enfraquecimento da UNFCCC compromete diretamente a agenda de direitos humanos na ação climática, pois as próprias diretrizes existentes já não têm sido suficientes para vincular os compromissos climáticos à proteção de populações vulnerabilizadas, de modo a priorizar justiça social, equidade étnico-racial e de gênero, e acesso equitativo aos recursos necessários para adaptação e mitigação. Em contraste, o Acordo de Paris, ao flexibilizar as obrigações, diluiu o vínculo entre compromissos climáticos e a promoção dos direitos humanos. Por exemplo, muitos países desenvolvidos têm evitado discutir o impacto desproporcional das mudanças climáticas sobre comunidades vulnerabilizadas, incluindo mulheres, populações indígenas, comunidades locais e comunidades afrodescendentes. A ausência de uma abordagem vinculante enfraquece os avanços em justiça climática, tornando mais difícil responsabilizar os países desenvolvidos por danos históricos e pela falta de ações robustas.
Portanto, é essencial pressionar para garantir que as decisões respeitem os princípios da Convenção-Quadro. Isso inclui não apenas fortalecer os compromissos com a igualdade de gênero, mas também ampliar as linguagens e abordagens para grupos marginalizados, como afrodescendentes, e reforçar o vínculo entre ação climática e direitos humanos. Promover essas dimensões é fundamental para uma transição climática que seja justa e inclusiva e que não deixe ninguém para trás.
O Programa de Trabalho de Lima sobre Gênero, que deveria ser uma plataforma para promover a inclusão de gênero nas políticas climáticas, tem sido duramente afetado por essa dinâmica de tentativa de enfraquecimento da Convenção-Quadro. A resistência de países desenvolvidos em assumir compromissos vinculantes para integrar a perspectiva de gênero reflete a mesma lógica de minimizar responsabilidades históricas, somadas às dificuldades políticas e culturais, que resultam em frases como a que ouvimos nesta COP 29: ‘direitos humanos não são um consenso para todos os países’. Além disso, ao enfraquecer a UNFCCC e deslocar o foco para o Acordo de Paris, as negociações climáticas têm reduzido o espaço para debates sobre justiça de gênero e direitos humanos, relegando esses temas a compromissos voluntários, frequentemente despriorizados por países desenvolvidos. Essa abordagem perpetua desigualdades estruturais no regime climático global.
O enfraquecimento da UNFCCC ameaça não apenas os avanços em justiça climática, mas também toda a agenda de direitos humanos construída nas últimas décadas. A resistência de países desenvolvidos à Convenção é uma estratégia de desresponsabilização que perpetua desigualdades globais e negligencia a necessidade urgente de ações transformadoras. Portanto, é fundamental que os países em desenvolvimento, a sociedade civil e os movimentos de base reafirmem a centralidade da Convenção e pressionem por mecanismos mais robustos de responsabilização. Isso inclui defender a revisão antecipada de programas como o de Lima, que integrem de forma plena e vinculante a perspectiva de gênero, além de exigir o fortalecimento dos vínculos entre direitos humanos e ação climática no regime global, bem como garantir que todos os outros itens da agenda sejam responsivos ao gênero, em especial financiamento e os objetivos globais de adaptação. Essas ações são cruciais para garantir que a transição climática seja justa e inclusiva, fortalecendo os direitos humanos, promovendo a igualdade de gênero e avançando para novas linguagens e abordagens, como a inclusão de afrodescendentes e outros grupos marginalizados.
Leticia Leobet – Socióloga e Assessora Internacional de Geledés – Instituto da Mulher Negra