Nem direita nem esquerda… nem centro
Em 2011, Gilberto Kassab lançava seu novo partido, o PSD: “Não será de direita, não será de esquerda nem de centro. É um partido que terá um programa a favor do Brasil”. Nas eleições legislativas de 4 de março último, a Itália viu a ascensão ao poder do Movimento 5 Estrelas, uma agremiação de mote parecido, mas com uma pretensão praticamente oposta: ser “antissistema”
O resultado do Movimento 5 Estrelas (Movimento Cinque Stelle, M5S) nas últimas eleições legislativas na Itália deu origem a uma avalanche de reações de ceticismo. Ele é, no entanto, fruto previsível de uma crise política e econômica que se materializa. Direcionado à classe política, aos jornalistas e às instituições europeias, o dedo do meio, símbolo desse partido, serviu de válvula de escape para a raiva de milhões de eleitores. Os italianos parecem apreciar sua dimensão catártica.
Em um estudo publicado em 2016, os economistas Guglielmo Barone e Sauro Mocetti demonstraram que as famílias mais ricas de Florença na atualidade possuem o mesmo sobrenome ou pertencem às mesmas linhagens daquelas que já ostentavam imensas fortunas no século XV.1 A imobilidade dos detentores do poder econômico talvez explique, em parte, por que 11 milhões de italianos optaram pelo M5S. Os grandes grupos que governam a Itália há vinte anos são responsáveis por um crescimento pífio, um desemprego elevado (sobretudo entre os jovens) e uma dívida pública incontrolável.2 Combinado com escândalos de corrupção seguidos ligados à onipresença da máfia, esse balanço calamitoso reduziu a migalhas a confiança da população em seus dirigentes. O M5S foi então percebido por muitos como uma saída, uma promessa de revanche contra um aparelho político visto como uma “casta” unicamente preocupada com seus privilégios.
Deliberação on-line
Giuseppe (“Beppe”) Grillo, fundador do movimento, antecipou em 2014 em seu blog que o M5S combateria três categorias de adversários: “Os jornalistas que acobertam uns aos outros para proteger a ‘casta’ (e seus próprios ganhos); os industriais do regime, sempre dispostos a retribuir favores aos políticos (ou a enviar-lhes pacotes de cédulas eleitorais) em troca de um direito de acesso aos mercados públicos ou às concessões do Estado; e, por fim, os políticos, que valem menos que as prostitutas”. Luigi Di Maio, de 31 anos, candidato do M5S ao posto de primeiro-ministro, saudou o resultado de 4 de março ao prever a chegada de uma “Terceira República de Cidadãos”, que será sobreposta à atual Segunda República. Esta foi, por sua vez, construída das cinzas deixadas pelos escândalos de corrupção que ditaram a história política da Itália desde a fundação, em 1994, dos grandes partidos políticos oriundos do pós-guerra, com a chegada de Silvio Berlusconi. Quando o M5S se apresentou pela primeira vez nas eleições nacionais, em 2013, prometeu abrir o Parlamento “como uma lata de sardinha” – para divulgar os segredos, as manobras, os arranjos. Hoje, Di Maio alega que seu time está pronto para governar e que os outros grupos deverão negociar com ele. Fundado em 2005, o movimento cibernético de Grillo cresceu em grande velocidade. Hoje é o partido número um do país.
Esse fenômeno se explica, em primeiro lugar, pelo sistema de ferramentas informáticas elaborado pelo partido a fim de facilitar a participação de seus simpatizantes e de instaurar uma democracia direta, com a possibilidade de escolher seus candidatos e representantes, determinar as posições do partido sobre tal ou tal tema ou convocar referendos. O M5S promove um conceito de democracia baseado no princípio da deliberação on-line, que confere maior legitimidade a suas decisões. Sua utopia digital – organizar a consulta aos cidadãos por meio de fóruns da internet – já mudou a vida política. Cada italiano pode a partir de agora expressar sua opinião ou seu descontentamento com apenas um clique, sem a intermediação, obviamente considerada detestável, de um partido, um sindicato ou um jornal.
Outro elemento a levar em conta: o M5S é, ao menos por enquanto, o único partido da Itália que pode se gabar de possuir uma ficha judicial (quase) limpa. Os casos político-financeiros atualmente são tão comuns no país que um persegue o outro, produzindo apenas o efeito de arruinar um pouco mais a credibilidade dos partidos. O atrativo do M5S provém em parte do seguinte postulado elementar: um cidadão sem experiência política será sempre mais honesto que qualquer “profissional” do antigo regime. Não há reunião “5 Estrelas” sem que no momento propício os militantes gritem seu refrão favorito, “Onestà, onestà!” (“Honestidade, honestidade!”), que se tornou o emblema sonoro do movimento.
Também podemos relacionar a ascensão do M5S à sua promessa de instaurar uma renda mínima universal. Mesmo que seja relativamente modesta, tanto pela quantia (780 euros) como pela duração do benefício, a performance eleitoral do movimento está relacionada de modo estrito ao número de desempregados. No sul do país, onde o índice de desemprego dos jovens é o maior da União Europeia, o partido obteve mais de 40% dos votos. Em âmbito nacional, ficou no topo entre os desempregados, os trabalhadores braçais, os assalariados, as donas de casa e os estudantes. Além disso, dispõe de um programa social generoso – mais dinheiro para escolas e hospitais, aumento das aposentadorias etc. –, combinado com a promessa de reduzir a carga tributária. Mas isso não é suficiente para distingui-lo de seus concorrentes: nas eleições de março, todos os grandes partidos propuseram aumentar as despesas públicas e diminuir os impostos…
A abordagem pós-ideológica do partido também pode ter jogado a seu favor. Como não se prende a uma linha preestabelecida ou a um sistema de crenças, o M5S goza de uma flexibilidade programática infinita e pode seguir a direção dos ventos. Isso lhe permite reunir sob seu manto eleitores com pontos de vista opostos no espectro. A estratégia de comunicação do partido acomoda essa tendência. Enquanto Beppe Grillo e seu colega Alessandro Di Battista seduzem os eleitores mais radicais, o sério e conciliador Luigi Di Maio garante o apoio dos moderados. O cientista político Ilvo Diamanti compara o M5S a um ônibus que, na primeira parada, recebe passageiros de esquerda e que, no ponto seguinte, encosta para acolher os passageiros de direita e de extrema direita, tornando-se assim o veículo de coleta dos protestos antipolíticos.3
“O M5S não é nem de direita nem de esquerda: ele está do lado dos cidadãos”, afirmou Grillo em seu blog em 2013. “Ferozmente populista. Se uma lei é boa, nós a aprovamos; se é ruim, não a aprovamos.” Nessa visão de mundo, fascismo e comunismo são condenados de modo semelhante pela história, da mesma forma, aliás, que os partidos tradicionais, considerados relíquias. Muitos italianos enxergam as coisas dessa maneira, de modo que o próprio termo “ideologia” passou a ser considerado um palavrão no país. A ideia de que é preciso tentar outra coisa, “superando os obstáculos”, não para de ganhar força.
No tocante a assuntos sensíveis, como os direitos dos homossexuais ou a imigração, o M5S evita ao máximo tomar posições claras. Em uma pesquisa conduzida com Michi Amsler, tentamos medir a elasticidade do discurso do M5S com base em escritos publicados on-line durante dez anos no blog de Grillo, que deu lugar ao canal de comunicação oficial.4 Sua produção pletórica – um texto por dia – aborda uma variedade impressionante de assuntos. É mais um metadiscurso sobre uma concepção de democracia direta do que um posicionamento sobre cada uma das questões levantadas. Quase sempre, trata-se de vociferar uma visão de mundo maniqueísta que opõe um povo puro a elites corruptas.
Mesmo as “cinco estrelas”, que visavam simbolizar as prioridades do movimento – serviço público de água, transporte público, desenvolvimento sustentável, acesso à internet gratuito para todos e proteção do meio ambiente –, pouco a pouco perderam seu significado. Colocadas no centro do discurso de 2005 a 2006, elas voltaram à tona em 2011 e 2012, antes de desaparecerem de novo.
É sobretudo quanto à questão europeia que o M5S prova sua capacidade de adaptação. Tido como negligenciado entre 2005 e 2013, esse tema ressurgiu como item importante às vésperas das eleições europeias de 2014, quando o partido se lançou na batalha para conclamar que a Itália saísse da zona do euro – reivindicação esquecida no dia seguinte ao pleito. O próprio Grillo explicou o assunto na época: como o M5S não possui “nem doutrina nem apoio ideológico”, seu posicionamento é “muito claro e adaptável: nós podemos tanto manter o euro como romper com ele, de acordo com os interesses da nação”.
Competências duvidosas
Embora sejam eleitoralmente rentáveis a curto prazo, as constantes mudanças de direção, justificadas pelas consultas on-line, não parecem, no entanto, sustentáveis a longo prazo. Se o M5S receber a missão de comandar um governo, será preciso estabelecer uma posição nos assuntos que dividem a opinião, sob o risco de descontentar uma parte de seu eleitorado. Além disso, o princípio que consiste em selecionar os candidatos mais em função de sua honestidade do que de sua competência ou experiência não possui apenas vantagens. Alessia D’Alessandro, “economista” escolhida por Di Maio para juntar-se à sua equipe de especialistas, talvez precise um dia se explicar sobre o fato de na realidade não possuir nenhum título ou diploma de Economia, somente um vago interesse pelo assunto (“Em minha vida privada, eu leio The Economist”, disse ela). A sequência de erros e escândalos nos quais se envolveu Virginia Raggi desde que foi eleita prefeita de Roma, em junho de 2016, confirma também que alguns cliques na internet não bastam para escolher os melhores candidatos nem para garantir uma perfeita transparência.
Além disso, os eleitores do M5S têm razões para se sentirem traídos ou desencantados diante da situação do país. Tal ressentimento não é, no entanto, uma especificidade italiana. As formações “pós-ideológicas” ganham influência em outros países da Europa. Em diversos lugares, os partidos social-democratas perdem força, ao passo que os conservadores veem uma parte de sua base dirigir-se à extrema direita. Nessa fase histórica, renunciar a qualquer ideologia pode parecer a fórmula mágica para obter um grande consenso eleitoral.
Está cada vez mais difícil classificar os partidos segundo uma lógica direita-esquerda. Um grupo pode se mostrar de direita no campo das identidades ou da cultura, fazendo campanha contra a imigração ou o casamento homossexual, e ao mesmo tempo adotar medidas progressistas no campo econômico e social. Por enquanto, o Movimento 5 Estrelas permanece um caso inédito na Europa. Nenhum outro partido possui em sua quintessência um grau tão alto de pós-ideologia. O Podemos, na Espanha, também nasceu de um movimento participativo contra a desigualdade e a corrupção (os “indignados”) e divide com o M5S um entusiasmo pela democracia direta. Todavia, situa-se claramente à esquerda. Por outro lado, a Frente Nacional de Marine Le Pen, na França, e o Partido para a Independência do Reino Unido (Ukip), de Nigel Farage, repetem que não são nem de direita nem de esquerda, embora seu discurso nacionalista nos ajude a classificá-los sem hesitação na extrema direita.
No fim das contas, o M5S deve ser comparado mais aos partidos piratas, que prosperaram por algum tempo na Suécia, Alemanha, República Tcheca e Islândia. Também faziam elogios à democracia direta, à transparência, à liberdade de informação e à luta contra a corrupção, antes de, para alguns analistas, desabarem por falta de uma direção forte e coerente, bem como de uma base social suficientemente ampla e popular. Tendo sido a Itália sempre um laboratório para o resto da Europa (fascismo nos anos 1920, instabilidade política nos anos 1960, governo de especialistas nos anos 1990…), outros devem inspirar-se, para o bem ou para o mal, na estratégia do M5S.
*Luca Manucci é pesquisador em Ciências Políticas na Universidade de Zurique.