Nenhum ser humano é ilegal
O agravamento da situação dos refugiados volta a chamar a atenção para um tema bastante caro aos estudiosos dos direitos humanos: a separação entre o homem e o cidadão – distinção de que, sob a perspectiva da filosofia política, ocupam-se Hannah Arendt e Giorgio Agamben
Em sua autobiografia, o escritor austríaco Stefan Zweig conta que não precisou de um passaporte para, antes de 1914, visitar a Índia e os Estados Unidos. Nenhuma autoridade exigiu dele qualquer coisa, nem o preenchimento de um único formulário.
Foi só a partir da Primeira Guerra Mundial, afirma Zweig, que, em razão da desconfiança patológica de todos contra todos e do medo do estrangeiro, as fronteiras se tornaram barricadas adornadas com arame farpado. Dali em diante, as humilhações usualmente dirigidas aos criminosos seriam estendidas aos viajantes, que teriam seus rostos fotografados, suas digitais capturadas, seus atestados de saúde esquadrinhados, seus antecedentes examinados, suas rendas conferidas e suas cartas de recomendação diligentemente apreciadas. “Bastava faltar uma dessas tantas folhas para se estar perdido”, lembra o escritor austríaco [1].
Zweig lamenta toda a perda de “dignidade humana” consubstanciada nos muros e nas barreiras entre os países. Ele também consideraria deplorável o número de refugiados ao fim de 2020: 80 milhões, segundo dados da Organização das Nações Unidas.
A pandemia de Covid-19 tornou ainda mais difícil a vida dos refugiados. Em tempos de necessidade de distanciamento social, os campos, assentamentos e abrigos estão abarrotados. Não bastasse isso, dezenas de países deixaram de, ao longo do ano passado, oferecer-lhes asilo. As perspectivas são desoladoras e sombrias, segundo a Agência para Refugiados da Organização das Nações Unidas.

O agravamento da situação dos refugiados volta a chamar a atenção para um tema bastante caro aos estudiosos dos direitos humanos: a separação entre o homem e o cidadão – distinção de que, sob a perspectiva da filosofia política, ocupam-se Hannah Arendt e Giorgio Agamben.
A análise do pensador italiano tem início com a retomada de uma misteriosa figura que o direito romano arcaico chamou de Homo Sacer – um homem que o povo condenou por um delito, mas que não pode ser sacrificado em razão de tal veredicto. Apesar disso, é possível que alguém venha a assassiná-lo sem que seja condenado por homicídio. A contradição é evidente[2]. Segundo Agamben, a especificidade do Homo Sacer reside na impunidade da sua morte e no veto de seu sacrifício. Esse homem está, portanto, fora da jurisdição humana e, ainda, fora da esfera divina. Ele não pertence a nenhuma delas.
O refugiado seria, conforme Agamben, um Homo Sacer. Por um lado, ele não conta com a proteção do direito nacional – a lei do Estado-nação de onde fugiu. Por outro, o direito universal não o ampara – pois falta efetividade aos direitos humanos.
Agamben sustenta, porém, que se há algum homem “puro” ou “universal” – um homem sem ligação com nenhum Estado-nação e que deveria ser protegido pelos direitos humanos -, ele é certamente o refugiado, “o verdadeiro ‘homem dos direitos’, a sua primeira e única aparição real fora da máscara do cidadão que constantemente o cobre.”
Para chegar a essa conclusão, o filósofo italiano se vale de tese desenvolvida por Hannah Arendt, para quem toda a construção dos Direitos do Homem tem por base a existência de um homem abstrato – pura e simplesmente, um ser humano. Mas, contraditoriamente, assim que determinado ser humano perde sua cidadania, ele se vê absolutamente desamparado: quando um homem abandona o Estado em que era tido por cidadão e se torna um refugiado, ele está perdido.
Os refugiados, afirma Arendt, constituem “o refugo da Terra”: “uma vez fora do país de origem, permaneciam sem lar; quando deixavam seu Estado, tornavam-se apátridas; quando perdiam seus direitos humanos, perdiam todos os direitos”[3].
Sob o ponto de vista de Agamben, o refugiado é um conceito-limite que põe na berlinda as categorias que estruturam o próprio Estado-nação, expondo os paradoxos da díade homem-cidadão.
Na teoria, as revoluções liberais proclamaram, em alto e bom som, os direitos humanos como o novo fundamento para a civilização. Mas não na prática. Mais de dois séculos depois delas, os 80 milhões de refugiados do mundo provam-no.
Norberto Bobbio afirma, em A Era dos Direitos, que “o problema grave de nosso tempo, com relação aos direitos do homem, não era mais o de fundamentá-los, e sim o de protegê-los”[4]. Ele tem razão. Afinal, nenhum ser humano é ilegal.
Marcel Mangili Laurindo é mestre em Sociologia Política e doutorando em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina.
[1] ZWEIG, Stefan. Autobiografia: o mundo de ontem. Rio de Janeiro: Zahar, 2014, p. 362-363.
[2] AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer – o poder soberano e a vida nua I. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2014, p. 74.
[3] ARENDT, Hannah. Origens do Totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1989, p. 300.
[4] BOBBIO, Norberto. Sobre os Fundamentos dos Direitos dos Homens. In: A Era dos Direitos. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004, p. 17.