Vulnerabilidade e violência: imigrantes e refugiados na pandemia brasileira
Acesso a moradia, renda, a exposição à contaminação pelo coronavírus e o cárcere, nesse momento são situações de vulnerabilidade entre outras vivenciadas pelos imigrantes e refugiados
“Se a gente que é negro brasileiro tem dificuldade, o negro imigrante tem muito mais. Porque ainda traz a questão de ter uma outra cultura uma outra forma de se inserir e outra forma de ser entendido enquanto cidadão aqui no Brasil” – Ester Vargem, integrante da secretaria municipal de direitos humanos de São Paulo.
Vulnerável significa o sujeito ou grupo social suscetível de ser exposto a danos físicos ou morais devido à condição em que se encontra, vulnerabilidade é a qualidade daquela. Ela é sintoma não causa das desigualdades entre pessoas.
O Relatório do Desenvolvimento Humano (ONU\PNUD) de 2014 relaciona a fragilidade e a vulnerabilidade. Essa implica uma situação de risco para pessoas e/ou comunidades que estão expostas à práticas de exclusão social, discriminação, violação dos direitos econômicos, políticos e ambientais. A Vulnerabilidade não é o mesmo que a pobreza. Não significa estar carente ou necessitado, mas indefeso, inseguro e exposto a múltiplos riscos, choques e stress, de acordo com Robert Chambers, professor e investigador no Institute of Development Studies.
O relatório mencionado, considera vulnerável a pessoa desprotegida, sem casa, a impedida de ir à escola ou ao hospital, por exemplo; e os grupos vulneráveis são identificados, em geral, mas, não somente, entre os pobres, trabalhadores informais e os socialmente excluídos, as mulheres, portadores de deficiência, migrantes, minorias, crianças, idosos e jovens.
Vulnerabilidade na pandemia
Acesso a moradia, renda, a exposição à contaminação pelo coronavírus e o cárcere, nesse momento são situações de vulnerabilidade entre outras vivenciadas pelos imigrantes e refugiados.
No histórico de vida dessa população na cidade de São Paulo, a Zona Lesta é a região de maior concentração residencial.
Dados do relatório Georreferenciamento de Pessoas em Situação de Refúgio atendidas pela Caritas Arquidiocese de São Paulo, publicado em 2018, indicam que 55% das pessoas residem na Zona Leste, especialmente, São Mateus e Itaquera; 26%, no Centro da cidade; e 9,5% na Zona Sul. A Zona Leste, também, é a região com crescentes dados de contágio e óbitos de covid-19. Reportagem do G1 SP online – “Sapopemba, na Zona Leste de SP, lidera ranking de bairros com mais mortes por covid-19” – mostram que até 22 de junho haviam falecido 300 pessoas na subprefeitura de Sapopemba, 168 pessoas em São Mateus, 95 pessoas em São Rafael, 137 em Itaquera e 193 em Cidade Tiradentes, regiões todas elas próximas e onde moram essas pessoas.
A razão da presença de muitos imigrantes nessas subprefeituras pode ser a relação entre o valor do aluguel e a discriminação. Imigrantes e refugiados encontram dificuldade em estabelecer moradia na região central da cidade em razão de algumas corretoras não aceitarem o RNE (Registro Nacional de Estrangeiros), além da própria exigência do fiador, que muitas não possuem devido a sua condição econômica.
O preconceito nas imobiliárias é fator considerável na solicitação, já que está implícita entre locadores a representação depreciativa em relação ao locatário por ele ser procedente de algum país do continente africano. Alguns imigrantes relatam a acusação que recebem de suspeitos de tráfico, razão para negativa da locação do imóvel. Há, também, discriminação em relação aos hábitos alimentares e até a composição familiar, alguns proprietários recusam locar casas para pessoas que possuem filhos. De toda forma, as periferias da cidade vão recebendo-os, pois em muitos casos a negociação é diretamente com o proprietário.
Se dermos visibilidade ao caso dos venezuelanos veremos uma situação pior.
O estudo “Migração & COVID-19: Infância venezuelana entre a espada e a parede” da Word Vision, aponta o quadro de vulnerabilidade vivenciada por famílias refugiadas venezuelanas.
O Brasil é o país com menor população venezuelana migrante com acesso à televisão (23% apenas, contra 62% da média), rádio (19% contra 28% em média) ou celular (81% em comparação com 91%), pelo qual poderiam receber informações sobre auto cuidado. E indicam a qualidade do acesso a bens por essa população.
Apesar de 89% dos migrantes venezuelanos entrevistados no estudo afirmarem possuir acesso à água e sabão para higienização, 25% afirmaram não haver alimentos suficientes para todos os membros da casa. A residência é também um desafio às famílias venezuelanas, nesse momento foram despejadas do local que residiam 17% dos entrevistados, 57% foram obrigadas a buscar casas menos custosas para viverem, tendo em vista a queda da renda familiar. Outras 9% tiveram que ir para um albergue e 4% estão sob o risco do desemprego, ou já não possuíam condições de pagar aluguel.
A maioria das crianças entrevistadas (77%), não frequentam aulas, em razão da suspensão de atividades ou já não estavam matriculadas em nenhuma escola. Quase 2/3 delas alegaram que neste momento de COVID-19 algum familiar deve sair para trabalhar.
Estudos do Instituto Terra Trabalho e Cidadania (ITTC) indicam que a informalidade e a gig economy (uberização do trabalho), são dois fatores determinantes na vida econômica imigrante e refugiada no Brasil.
As formas de atuação, em geral, são a venda de alimento, de tecidos, roupas ou artigos eletrônicos e atualmente a entrega por aplicativos, desta forma, essa população se tornou membro dos mais de 39 milhões de pessoas que trabalham sem carteira assinada para ganhar R$ 7,00 a cada 10km percorridos. Dados do instituto apontam 65% do total populacional estrangeiro mencionado trabalhar sem qualquer vínculo empregatício e, no caso, das mulheres, elas atuam como empregadas domésticas, babás, cabeleireiras e manicures.
O relatório “Migrantes e os labirintos da economia informal” (ITTC, 2020), conclui que a relação simbiótica entre as medidas de isolamento social incompatível com a estrutura da economia informal do comércio de rua, impôs os estrangeiros ao risco já que são obrigados a ir trabalhar fora de casa com a possibilidade de contaminação.
O Instituto denuncia que no processo de solicitação do auxílio emergencial, a Caixa Econômica Federal e o Banco Central, violaram o direito de acesso de muitos estrangeiros, e isso ocorreu pela negativa dos documentos apresentados pelos imigrantes. Em ação civil da Defensoria Pública da União contra os bancos, esta afirmava que não havia razão da exigência de regularidade migratória ou de documentos com fotos emitidos no Brasil, bastando, o CPF e até documento com foto emitido em outro país.
Imigrantes tinham o direito de receberem o auxílio para isso deveriam possuir algum destes pré requisitos: ser titular de uma MEI (Microempreendedor Individual); estar inscrito no CadÚnico (Cadastro Único); deter renda de até meio salário mínimo por pessoa ou de até 3 salários por família ou ser contribuinte do Regime Geral de Previdência Social; possuir CPF ou o RNE (Registro Nacional de Estrangeiros). Devendo corresponder aos critérios aplicados aos brasileiros.
Devido a essa situação do não recebimento do auxílio emergencial, a queda da renda e o próprio desemprego, imigrantes relatam outros quadros de vulnerabilidade nesse momento. Além o fato de muitos estarem distantes de suas famílias a ausência de renda gerou a impossibilidade de pagar aluguel e as contas mensais de água e luz. Imigrantes que vivem na região do Tietê (Santana), Iguatemi e Itaquera (ambos na Zona Leste), tem relatado que crianças estão vivenciando situações de fome.
O encarceramento é outra ocorrência presente na trajetória de imigrantes no Brasil resultante da vulnerabilidade socioeconômica e preocupante devido ao contexto.
O boletim “Boletim Banco de Dados #1: Qual o perfil das mulheres migrantes atendidas pelo ITTC” (2019), mostra que o Estado de São Paulo até 2016 abrigava 63% da população de mulheres imigrantes encarceradas no país. A infração por tráfico de drogas representava 84% deste total, conforme o gráfico abaixo.
Acusações formuladas às mulheres encarceradas – Fonte: Instituto Terra Trabalho e Cidadania. 2019.
Dados do relatório “Gênero e trabalho: olhando para as condições socioeconômicas de mulheres migrantes em conflito com a Lei” (2019), as bolivianas (21%), sul africanas (14%), colombianas (8%), venezuelanas (8%), paraguaias (5%), filipinas (4%) e angolanas (3%), estão entre as principais nacionalidades encarceradas no país.
O trabalho informal e a escolaridade são dois fatores determinantes para a entrada delas no tráfico internacional. Nos seus países de origem a ocupação em trabalhos considerados tradicionais – cozinheira, doméstica, cuidadora ou babá, esteticista, cabeleireira ou manicure – associada às mulheres representavam uma ocupação de 72% informal para 28% formal do total. E 17% das mulheres não trabalhavam e 83% estavam no trabalho informal, entre aquelas que nunca foram à escola; entre aquelas que cursaram o ensino fundamental e médio, 72% (fundamental) e 56% (médio) eram informais, 11% e 12% não trabalhavam, enquanto 18% e 32% ocupavam cargos formais, como indica o relatório e o gráfico abaixo.
Motivo da viagem de mulheres envolvidas com o tráfico internacional – Fonte: Instituto Terra Trabalho e Cidadania
Para o ITTC, a precariedade socioeconômica das mulheres em seus países de origem, empurram-nas a se tornarem mulas do tráfico internacional de drogas no Brasil. Algumas recorrem à função de mula como estratégia para obter ou complementar a renda ao sustento da família, visto que a grande maioria é responsável pelo domicílio. Outras são submetidas à função de mulas contra a sua vontade, sendo vítimas de tráfico de pessoas. A grande maioria chega ao Brasil através de propostas de trabalho fictícias, representando 70% dos casos, seguido de formas de ameaça e coerção (10%).
Essa população está sob risco, também, de contaminação por corona vírus uma vez que vivenciam a mesma realidade de brasileiras que é o crescimento em 800% de contaminação nos presídios nacionais, segundo balanço do Conselho Nacional de Justiça, e conforme indicam os dados de junho do Departamento Sanitário Nacional (Depen), contabilizando até esse mês 2.351 pessoas diagnosticadas pelo vírus.
Histórico de violência xenofóbica
A palavra xenofobia surgiu da junção de xénos (estrangeiro, estranho) e phóbos (medo) do idioma grego. Seu significado foi utilizado para descrever a aversão a um grupo estrangeiro e pode ser empregado para significar a aversão contra pessoas do mesmo país, mas que são consideradas forasteiras.
No contexto da pandemia, do isolamento social, da crise econômica e demais consequências do precário planejamento ao enfrentamento da crise sanitária pelos governos municipais e estaduais, articulada a escolha estratégica do governo federal pela morte em massa, outra tragédia ocorreu na cidade de São Paulo, outra, não uma nova.
Na madrugada do dia 17 de junho de 2020, o frentista João Manuel, de 47 anos, foi morto a facadas em Itaquera, Zona Leste da capital paulista. Dois outros africanos, ao tentarem defendê-lo, foram feridos pelo mesmo agressor, e hospitalizados. O agressor é um trabalhador brasileiro que exerce a profissão de mecânico. As narrativas de mídia não explicam que, na verdade, a razão da agressão foi xenofóbica e racista, um ataque deflagrado após a indagação desse brasileiro sobre o pagamento do auxílio emergencial federal para imigrantes.
O caso descrito acima, todavia, não é o primeiro nem está isolado de outras situações.
Em 2011, na cidade de Cuiabá, Toni Bernardo da Guiné-Bissau e estudante de economia da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul, foi espancado até a morte por três pessoas, Weslley Fagundes e Higor Montenegro, ambos policiais militares, e o empresário Sérgio Marcelo Silva. A agressão teria iniciado segundo as notícias da época porque Bernardo esbarrou na namorada de um dos envolvidos em uma pizzaria da cidade. A época a juíza Marcemila Mello Reis, da 3ª Vara Criminal de Cuiabá, absolveu os militares envolvidos sob a alegação de que Toni estava extremamente alterado e seu comportamento causou a tragédia, ela criminalizou e responsabilizou a vítima pela sua morte. Na fala da própria Marcemila para o Terra online: “A vítima foi o agente provocador dos fatos, e seu comportamento foi decisivo para o desenrolar dos acontecimentos”. Sérgio Marcelo Silva da Costa, único responsabilizado pela morte, foi condenado a dois anos e oito meses de reclusão em regime aberto.
Em 2015, três angolanos foram espancados por policiais militares no bairro do Brás, em São Paulo. As agressões ocorreram como resultado de uma abordagem abusiva, com insultos, ameaças, agressões físicas e tortura. A razão da conduta policial foi por que os três se envolveram em conflito com brasileiros que momentos antes xingaram de macaco e tentaram agredir um dos angolanos, os outros dois colegas foram defendê-los, estes brasileiros fugiram e retornaram com a polícia que de imediato tratou com violência os estrangeiros.
Um caso que marcou a trajetória de imigrantes e refugiados no Brasil no que se refere à homicídios, foi o da estudante angolana Zulmira de Souza Borges Cardoso, a época com 26 anos. Informações dos movimentos de imigrantes, afirmam que no 22 de maio de 2012, ela e outros colegas comemoravam o aniversário de um amigo em um bar frequentado pela comunidade angolana no bairro Brás. Um dos frequentadores do bar, brasileiro, envolveu-se em uma briga com angolanos, insultando a todos de macacos que vieram de Angola. Cerca de vinte minutos depois da saída da polícia que foi chamada ao local para averiguar a confusão, um homem retornou e disparou contra quatro pessoas, ferindo-as, entre elas Zulmira, que morreu no local.
Na madrugada de 28 de junho de 2013, cinco homens armados com facas e revólveres tornaram por reféns o menino boliviano Brayan Yanarico Capcha, de 5 anos à época, seus pais e um tio na casa onde eles moravam, no bairro São Mateus, Zona Leste de São Paulo. Um dos criminosos se irritou com o choro de Brayan e atirou em sua cabeça. O grupo fugiu com R$4,5 mil roubados da família valor que mantinham em casa, apesar de levado ao hospital, Brayan faleceu.
Em 2015 foi a vez dos Haitianos sofrerem atentado, no caso, em agosto cinco pessoas foram atingidas por um ataque de disparos de tiro com bala de chumbinho vindo de um carro após saírem de um culto Paróquia Nossa Senhora da Paz no Glicério, centro de São Paulo.
Muitos ainda são os desafios dos imigrantes e refugiados em relação violência simbólica que recebem no cotidiano brasileiro, por exemplo, pessoas de origem africana em razão de seus nomes são mal tratadas quando vão realizar matrícula nas escolas públicas e nesse ambiente os jovens recorrentemente são inferiorizados com xingamentos de macaco, cabelo duro, cabelo de boneca. Nos postos de saúde já existia o destrato, sobretudo, neste ano vem aumentando e isto tem como ponto de partida o sotaque de muitas pessoas que vão aos postos de saúde ou hospitais públicos.
O jornalismo nacional e os formadores de opinião da internet, por fim, contribuem ao agravo da violência.
No contexto da contratação de médicos cubanos ao Programa Mais Médicos, plataformas de mídia e influencers descreveram as médicas cubanas como pessoas com cara de empregada doméstica, homens e mulheres por escravos do comunismo, indolentes, incompetentes, trazidos em um avião negreiro. No mesmo ano em um quadro do programa televiso o Pânico na Band, o ator Eduardo Sterblitch se utilizou do black face, de grunhidos e gestos exagerados para interpretar, de acordo com o programa, um africano.
Em agosto do mesmo ano, a professora doutora em Direito Internacional da USP Maristela Basso, à época, foi convida para comentar no Jornal da Cultura o impasse diplomático entre Brasil e Bolívia em razão de uma disputa resultante por recursos do Gaz Natural. Na oportunidade, ela afirmou que o país vizinho era insignificante em todas as perspectivas diplomáticas para o Brasil, acrescentando que os imigrantes bolivianos em São Paulo não contribuíam para o desenvolvimento tecnológico, cultural e social do país.
Um caso recente de discriminação contra estrangeiros ocorrido no mês de junho, a pouco mais de três semanas, se deu no Aeroporto Internacional de Guarulhos/SP. Na situação o governo angolano fretou um voo humanitário, para retirar do território brasileiro cidadãos angolanos, não residentes, que se encontravam em território nacional por várias razões, dentre as quais, tratamento médico, turismo, negócios etc, os quais ficaram retidos em São Paulo em razão da pandemia, ante o cancelamento do tráfico aéreo no país.
Na entrada destes passageiros no avião, é comum algumas pessoas embarcarem com mercadorias de terceiros para os familiares e\ou comércio em Angola. Entretanto, um cidadão angolano, empresário, residente no Brasil a mais de 15 anos, transportava consigo uma sacola contendo máscaras de proteção, que doaria aos membros de uma igreja em seu país, para tanto, precisava entregar a uma amiga passageira que embarcava, também, naquele exato momento.
Ocorre que no momento em que tentava entregar a sacola, um segurança da Gruerpot se dirigiu até ele, com truculência, retirou dos seus braços a sacola, a força, fazendo com que o jovem empresário se assustasse e resistisse a sua investida, mas seus esforços foram em vão, a sacola foi levada pelos seguranças que jogaram no chão, abriram-na e verificaram o seu conteúdo, obviamente esperando se tratar de algo ilícito, para justificar o seu comportamento violento, como tal se deparou com simples máscaras devidamente lacradas, cujo manuseio irregular dos seguranças certamente inutilizou o produto, o qual ainda se encontra em posse do aeroporto, mesmo com os pedidos, sem sucesso, do delegado da TAAG (Companhia Aérea de Angola), no local.
Este modelo de desconfiança tem se dirigido à muitas imigrantes especialmente mulheres africanas no dia a dia da cidade de São Paulo. Elas têm sido recorrentemente enquadradas pela polícia militar sob acusação de recepção culposa de aparelhos celulares roubados. De um lado a necessidade de muitas adquirirem algum aparelho eletrônico a baixo custo no comércio informal, junto disto o desconhecimento, especialmente, para as recém imigradas, da circulação de bens ilícitos nestes ambientes e por fim a já deliberada pré concepção por parte da instituição militar de que certos grupos demonstrariam atitude suspeita logo seriam elas as assaltantes ou traficantes.
No Brasil a xenofobia é sintoma da violência racial
Reitero a análise do sociólogo Michel Wieviorka na falta de debate, na ausência de agentes políticos ou intelectuais capazes de romper o consenso e o silêncio relativo à ausência de direitos, a violência se inscreve no prolongamento de problemas sociais, reatualiza modalidades fundamentais da dominação, tornando-se inclusive suscetível de ser negada ou banalizada.
É o caso quando grupos nativos de um país difundem entre seus pares estereótipos raciais. Diante da diversidade cultural, religiosa, nacional, racial ou de outro tipo que se dá devido ao encontro entre diferentes povos, típico dos processos imigratórios, o ressentimento político pode transformar esse diferente em alvo de violência. No Brasil a violência contra a alteridade está associada a ideologia de os estrangeiros não brancos serem tratados como raças perigosas.
Esse pensamento e essas ações se fortalecem devido a lógica da segregação que atravessa a produção da alteridade, conforme, analisou Abdelmalek Sayad no livro “Imigração ou os paradoxos da alteridade”. Para o sociólogo argelino, a distinção entre nacional e não nacional (em termos jurídicos) pede o reforço às discriminações de fato (às desigualdades sociais, econômicas, culturais), é uma lógica circular segundo a qual diferenças de fato e de direito se sustentam e se confundem mutuamente. Tal lógica é o princípio de todas as segregações (escravidão, apartheid, colonização, imigração, etc) e de todos os dominados (o escravo, o negro, o colonizado, o imigrante, a mulher, etc.). A igualdade de direito é recusada usando-se como pretexto as desigualdades de fato, e a igualdade de fato, torna-se impossível devido à desigualdade de direito.
Não obstante no caso do Brasil xenofobia e racismo são sinônimos. No país a violência contra o diferente ocorre contra àqueles que são identificados pela relação entre a nacionalidade e a cor da pele. A descrição de casos elaborada neste texto evidencia, igualmente, a análise de Willem Schinkel (Erasmus University Rotterdam), sobre a redução do ser. Na perspectiva dele, a ação violenta direcionada a certa pessoa busca reduzir as possibilidades dela em ser alguém.
A recorrência dessa violência racial como se vê nos casos mencionados e outros que ainda nem mesmo puderam ser denunciados são sintomas, conforme afirmam os pesquisadores Gustavo Fernandes e Fernando Monteiro, de atos premeditados direcionados a um grupo racial em particular, no caso, os imigrantes e refugiados racializados.
Nunca é demais lembrar que o Brasil possui uma Lei de Imigração nº 13.445 /2017 e é signatário de tratados internacionais de acolhida a refugiados através da Lei nº 9.474/1997. Ambas, instituem diversos direitos que migrantes e refugiados possuem no país. E ao que a realidade indica, não são cumpridos pelo Estado nem respeitados pela população – distinções de fato e de direito atuando mutuamente.
Além disso, existe uma dívida moral e material da sociedade brasileira com imigrantes negros, pois o país é um entre os que mais receberam pessoas do continente africano, em um passado não muito distante. Os imigrantes em geral são, também, junto aos afro-brasileiros e povos originários, os responsáveis pela construção das bases econômica, política, social e cultural do país. Por fim, a dívida histórica com a população negra e a demarcação de terras indígenas se resolverão, de modo igual, ao reconhecimento e respeito à vida de todos estrangeiros que, à sua forma, contribuem ao desenvolvimento nacional com seu trabalho, culturas, seus valores políticos e impostos.
Willians Santos é doutorando em Ciências Sociais (Unicamp) e ativista pelos direitos humanos.
Alvaro da Silva Pereira Bastos é angolano, advogado radicado no Brasil.
Karina Quintanilha é doutoranda em sociologia (Unicamp), assessora jurídica do Centro dos Direitos Humanos e Cidadania dos Imigrantes e integrante do Fórum Internacional Fontié Ki Kwaze – Fronteiras Cruzadas USP.