Imigrantes e refugiados negros na cidade de São Paulo
“Pra mim, refugiado é uma categoria da ONU e tá incompleta… Aqui no Brasil, a gente tem refugiado branco e refugiado negro. Todo mundo prefere refugiado sírio. A Síria tá em guerra há seis anos, o Congo tá em guerra há vinte! (…) O sírio, ele vai ser comerciante, dono de restaurante… o africano e o haitiano vão ser garçom, pedreiro… essas coisas, e se conseguir trabalhar. Na ocupação, você não encontra sírio, mas encontra haitiano, congolês, nigeriano. Quem vai morar na rua é africano, haitiano… então, tem refúgio branco e refúgio negro no Brasil. Pro negro é diferente. É por isso que ninguém sabe o que tá acontecendo no Congo.” ( Registro de campo de pesquisa etnográfica)
Eram os últimos dias de setembro de 2017 e Jean* encontrava-se no Al Janiah, famoso restaurante palestino localizado na região central de São Paulo. O restaurante, convertido em um importante espaço de ativismo e resistência política – especialmente entre aqueles envolvidos com a temática migratória – abrigaria naquela noite um debate sobre o acesso de imigrantes e refugiados à moradia.
Jean, refugiado congolês que já havia morado por alguns meses em uma ocupação em um prédio também no centro de São Paulo, fora convidado para o debate para apresentar suas considerações sobre a sua experiência a dezenas de ativistas e trabalhadores de serviços de assistência migratória da cidade. No entanto, ele estava decidido a exibir aos presentes um vídeo sobre a guerra civil na República Democrática do Congo 1. O vídeo, porém, não pôde ser reproduzido por falhas no equipamento de projeção. Jean, frustrado, falou:
“Eu queria começar mostrando pra vocês um pouco do que tá acontecendo no meu país porque ninguém mostra isso aqui no Brasil. O Congo tá em guerra há vinte anos, tem criança com mão cortada, trabalhando em mina, mulher estuprada… quando um menino sírio morreu, aquele na praia, passa em todos os jornais do Brasil. Todos. Mas ninguém aqui sabe o que tá acontecendo no Congo, por isso queria mostrar pra vocês esse vídeo, mas não tem problema, eu conto.” ( Registro de campo de pesquisa etnográfica)
Guerra, mortos e sofrimento
O público acompanhava, intrigado, o desenvolvimento do argumento: se a fala destinava-se a endereçar o acesso de imigrantes e refugiados à moradia, por que era necessário saber sobre a guerra na República Democrática do Congo? Jean explicou que sua intenção era colocar em relevo o quanto a situação em seu país de origem era amplamente ignorada no Brasil, apesar de não haver motivos para isso. Se guerras são guerras, mortos são mortos e sofrimento é sofrimento, e se todas essas categorias têm caráter monossêmico – um significado único e supostamente neutro -, não havia motivos para que soubéssemos tão pouco sobre a guerra do Congo. Para que soubéssemos mais sobre algumas crises humanitárias em detrimento de outras.
Iniciar sua fala dessa forma ressaltava que, na visão de Jean, não havia maneira de abordar o tema proposto para o debate sem que entendêssemos também a razão de não sabermos mais sobre o conflito em seu país – afinal, se lançávamos mão de uma temporalidade passada para atestar o merecimento ou não de determinada ajuda humanitária, e, em último grau, para definir o que Jean era (um refugiado no Brasil), por qual razão essa temporalidade passada adquiria uma topografia desigual no caso de sírios e congoleses? Por que sabíamos dos mortos da Síria, e não sabíamos dos mortos do Congo? Por que chorávamos uns e não outros?
Jean, então, explicou qual a relação entre a guerra do Congo e o acesso à moradia por imigrantes e refugiados na cidade de São Paulo enquanto descrevia sua história pessoal: sem lugar para morar quando chegou ao Brasil, ele passou por casas de acolhida e morou em diversas ocupações.
Sua fala, que havia começado em um resgate da temporalidade passada, começou a encaminhar-se para o presente: disse que “descobriu o racismo no Brasil”, onde também havia se descoberto negro, relatando que as pessoas se levantavam de seus lugares no ônibus quando ele chegava, cruzavam a rua para não ter que dividir a calçada com ele e lhe direcionavam olhares suspeitos. Jean, então, disse:
“Pra mim, refugiado é uma categoria da ONU e tá incompleta… Aqui no Brasil, a gente tem refugiado branco e refugiado negro. Todo mundo prefere refugiado sírio. A Síria tá em guerra há seis anos, o Congo tá em guerra há vinte! (…) O sírio, ele vai ser comerciante, dono de restaurante… o africano e o haitiano vão ser garçom, pedreiro… essas coisas, e se conseguir trabalhar. Na ocupação, você não encontra sírio, mas encontra haitiano, congolês, nigeriano. Quem vai morar na rua é africano, haitiano… então, tem refúgio branco e refúgio negro no Brasil. Pro negro é diferente. É por isso que ninguém sabe o que tá acontecendo no Congo.” ( Registro de campo de pesquisa etnográfica)
Imigração e racismo
Essa passagem, que descrevo em minha dissertação de mestrado, aponta para um dado importante sobre a imigração e o refúgio no Brasil: o condicionamento da experiência de determinados grupos de imigrantes e refugiados negros pelo racismo.
O refúgio negro, que, como sublinha Jean,² engloba mais do que só os sujeitos a quem é garantido o status de refugiado, determina como a “integração” – em determinados momentos tida como sinônimo de “assimilação” – desses migrantes irá se dar no Brasil, atravessando transversalmente o acesso a direitos e a condições de vida dignas.
Ser um imigrante ou refugiado negro no Brasil irá determinar o acesso à moradia – definindo, inclusive, para quais bairros da cidade alguns fluxos se encaminharão -, a cursos profissionalizantes, a vagas de emprego, à ajuda humanitária e, em último grau, condicionará quais sofrimentos ganharão relevo político perante aqueles envolvidos com o tema (entre eles, o Estado).
Um relatório divulgado no último dia 11 de novembro pelo coordenador do Observatório das Migrações Internacionais, Leonardo Cavalcanti, retrata o aumento das desigualdades no acesso ao mercado de trabalho. Se em 2010 a proporção de imigrantes e refugiados negros – somando-se pretos e pardos3 – no mercado de trabalho representavam 13,9%. Em 2018, esse número chegou a 54,4%, fenômeno explicado pela intensificação da entrada de imigrantes originários de países da África e da América Latina no Brasil (Cavalcanti et. al [orgs.] 2019:14).
Ainda assim, 70% dos trabalhadores imigrantes de cor preta encontravam-se na faixa de renda de até dois salários mínimos. Já entre aqueles com rendimentos acima dos 10 salários mínimos, 26% eram brancos, enquanto apenas 0,6% eram pretos.
Especificamente sobre refugiados, outro relatório do OBMigra (Simões et. al [orgs.] 2019) demonstra que entre os não ocupados, refugiados pretos e pardos representam a maioria ao longo de toda a série histórica.
Desigualdades profundas
Ainda que se possa argumentar que existem diferenças no nível de escolaridade entre imigrantes e refugiados negros e brancos (negros têm, majoritariamente, nível médio completo, e brancos têm, em sua maioria, nível superior completo), essa explicação não justifica a profundidade das desigualdades. Imigrantes e refugiados negros são, via de regra, tratados sob a égide da desqualificação mesmo em casos em que isso não corresponda à realidade.
Dessaline*, haitiano de 32 anos, é um desses casos. Fala crioulo haitiano, francês, espanhol, inglês e português. Ele é formado em engenharia civil na República Dominicana. Não conseguiu validar seu diploma porque, embora refugiados tenham direito a submeter-se gratuitamente ao processo de revalidação de diplomas no estado de São Paulo por ocasião da Lei Estadual nº 16.185/2018, haitianos têm que pagar até R$ 20 mil reais para cumprir todos os trâmites do processo, a depender da quantidade de traduções juramentadas necessárias. Isso porque não têm o estatuto jurídico de refugiado, nem podem tê-lo, apesar de figurarem entre os que mais solicitam refúgio como estratégia de regularização rápida.
Assim, Dessaline fez cursos de panificação, estamparia e construção civil. Não foi o suficiente. Ele começou a dar aulas de francês, inglês e espanhol como professor particular de idiomas. São vários os que vão vender roupas e calçados nas ruas do Brás ou na feira da madrugada do bairro e sempre a despeito de suas qualificações.
Dessa forma, os habitantes do macrocontinente do refúgio negro – que circunscreve não apenas aqueles com o status legal de refugiado ou os que têm direito a tê-lo – somam-se a outros grupos incluídos pela exclusão: estão simultaneamente incluídas no território nacional, mas excluídas do pleno gozo de suas potencialidades e direitos.
Aqueles, entretanto, que têm o refúgio concedido pelo governo brasileiro acessam um sistema mais robusto de assistência, mesmo que isso, por vezes, não seja o suficiente para diminuir as desigualdades entre refugiados negros e brancos. Até porque, há desigualdades da ordem do simbólico e que não serão mitigadas apenas com políticas públicas, embora elas sejam extremamente necessárias.
Transversalmente atravessados, entretanto, por estruturas racistas e racializantes encontradas no Brasil, esses sujeitos vão habitar as margens da cidade e da cidadania e, a despeito das tentativas de integração, são tratados como inassimiláveis :4 alteridades em mobilidade que ameaçam o referencial basal de humanidade que se considera branco desde essa perspectiva.
Alexandre Branco Pereira é cientista social pela Universidade de Brasília (UnB), mestre em Antropologia Social pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) e pesquisador vinculado ao Laboratório de Estudos Migratórios (LEM-UFSCar). Atua como colaborador no Programa de Psiquiatria Social e Cultural do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo (PROSOL-IPq-HCFMUSP). É membro da coordenação da Rede de Cuidados em Saúde para Imigrantes e Refugiados da cidade de São Paulo. É autor do livro “Mas é só você que vê?”. Também dá aulas de português, como professor voluntário, para imigrantes e refugiados em curso organizado pelo Coletivo Conviva Diferente, em Guaianases, São Paulo. As fotos utilizadas para ilustrar a matéria fazem parte da série artística “Aceita”, de Moisés Patrício.
*nomes fictícios.
1 – A guerra no Congo inicia-se em 1996, em sequência ao genocídio dos tutsis pelos hutus em Ruanda, e tinha o objetivo de derrubar o ditador Mobuto Sese Seko, que apoiava o massacre tutsi. Seu rival, Laurent-Désiré Kabila – pai do atual ditador do Congo, Joseph Kabila – era apoiado por países vizinhos, como Angola, Uganda e Ruanda. Em 1998, Kabila indispôs-se com seus antigos aliados, e expulsou as tropas das nações vizinhas do país, o que resultou no início da Segunda Guerra do Congo (também chamada de Guerra Mundial Africana) com proporções gigantescas. Já são mais de 6 milhões de mortos. Atualmente, é comum associar a guerra no país à presença de uma vasta reserva de uma liga metálica chamada coltan, formada por dois minérios (tantalita e columbita) de onde se extraem o nióbio e o tântalo. Esses minerais são muito utilizados na fabricação de todos os aparelhos eletrônicos portáteis, como celulares, notebooks e computadores automotivos.
2 – A garantia de proteção dada pelo Estado brasileiro a refugiados esbarra, aqui, em um dado inarredável: como garantir proteção a refugiados negros, se há em curso no Brasil um extermínio dessa população perpetrado por forças de segurança do Estado?
3 – Uso aqui as categorias raciais da forma como são determinadas pelo IBGE. É importante ressaltar aqui que os dados do OBMigra são obtidos através de comunicação dos empregadores desses migrantes, e não consideram as autodeclarações. É comum, no entanto, que imigrantes e refugiados negros digam que descobrem-se negros no Brasil por não articularem as categorias étnico-raciais da forma como fazemos por aqui antes do deslocamento migratório – são, portanto, racializados no Brasil. Se, por um lado, isso se dá na própria experimentação do racismo, por outro, tem profunda relação com a maneira como esses sujeitos têm contato com o instrumental político mobilizado para a contestação dessa estrutura de relações raciais arquitetado pelos movimentos negros brasileiros.
4 – Achille Mbembe também usa o termo para definir pessoas em mobilidade: “Uma das funções do Estado é, portanto, fabricar conceitos de ordem, estabilidade e segurança que possam ser conciliados com seus conceitos de liberdade e movimento. Essa é a contradição. Kotef argumenta que o Estado liberal clássico é inimigo das pessoas que circulam incansavelmente. Essas pessoas se tornam um outro inassimilável. Não se pode assimilá-los”. Não quaisquer pessoas, no entanto.
Referências
Branco Pereira, Alexandre (2019). Viajantes do tempo: imigrantes-refugiadas, saúde mental, cultura e racismo na cidade de São Paulo. 175f. Dissertação de mestrado em Antropologia Social – Universidade Federal de São Carlos, São Carlos.
Mbembe, Achille (2019). A ideia de um mundo sem fronteiras. Revista Serrote, nº 31.
Cavalcanti, Leonardo; Oliveira, Tadeu; Macedo, Marília de [orgs.] (2019a). Imigração e Refúgio no Brasil: a inserção de imigrantes e refugiados no mercado de trabalho. Relatório Anual do OBMigra de 2019.
Simões, André; Neto, João Hallak; Cavalcanti, Leonardo; Oliveira, Tadeu; Macêdo, Marília de [orgs.] (2019b). A inserção socioeconômica dos imigrantes no mercado de trabalho formal. Relatório RAIS, OBMigra.