Os reflexos da pandemia sobre migrantes e refugiados
Impõe-se verificar se o ser humano pós-pandemia de Covid-19 privilegiará o vocabulário da solidariedade global, hospitalidade universal e o caminho da sonhada cidadania global ou esse indivíduo pós-pandêmico pode preferir discriminar, rejeitar e violar direitos
A pandemia de Covid-19 atingiu a humanidade de uma maneira inédita, paralisando o planeta e lançando sobre todas as pessoas, simultaneamente, incertezas, medo, ansiedade, histeria coletiva e sentimentos de repulsa e xenofobia. Em curto espaço de tempo, todo o poder político, bélico e econômico se viu impotente diante da velocidade e comportamento imprevisível do coronavírus. Em questão de dias, a força de líderes mundiais que se ameaçavam mutuamente e, por consequência a toda a humanidade, violavam regras de direitos internacional e humanos, decidindo o que seria bom, ruim ou aceitável aos seus talantes, dissipou-se ante a vulnerabilidade do ser humano frente a um vírus até então desconhecido.
O déspota esclarecido que governa pelas redes sociais ou o ditador clássico que decidia quem iria viver ou morrer, seja pela arma de um drone ou por uma negativa de refúgio, transformou-se em espetáculo midíático de cada dia até o limite de ver a sua própria existência ameaçada. O Brexit, como mágica, desapareceu das preocupações dos países europeus e a vida do ser humano voltou ao centro dos debates.
Guardadas as proporções temporais, as questões econômicas e a globalização, muitos aspectos e propostas para parar a pandemia de Covid-19 assemelham-se à gripe espanhola de 1918. Isso mostra que a humanidade, embora tenha avançado tanto em aspectos tecnológicos e econômicos, repetiu os erros da desigualdade severa entre nações e pessoas. Como recomendar isolamento para quem mora em um só cômodo com até uma dezena de pessoas de várias idades e riscos? Como recomendar a higiene várias vezes por dia a pessoas que não têm abrigo e nem sequer meios e recursos sanitários para tanto?
Solidariedade
Na mesma intensidade, afloram sentimentos de solidariedade, empatia, amor pelo próximo, compaixão, tréguas em conflitos internos e externos, formação de rede de cientistas e troca de informações e ajuda entre inimigos históricos. Dessa mistura de sentimentos e ações concretas surgem as respostas das áreas da saúde, economia, assistência social e do direito, em certos momentos cambaleantes e inseguros tanto em um plano imediato quanto em um futuro próximo. Reanima-se, pois, o debate sobre globalização econômica, mobilidade humana e direitos humanos de migrantes e refugiados.
Em meio à pandemia, os noticiários deixam de evidenciar como outrora o drama dos migrantes e refugiados, por exemplo. Isso não quer dizer que os venezuelanos em Roraima terminaram seu calvário, a crise humanitária do povo rohingya esteja superada ou os migrantes aprisionados em campos na Grécia, em condições de higiene e salubridade assustadoras, aumentaram suas expectativas de sucesso no seu projeto migratório. Pelo contrário, as medidas de contenção da Covid-19 tornam o martírio ainda mais intenso, arriscado e de prognóstico sombrio.
Com efeito, esses grupos estão ainda mais expostos em campos de detenção, assentamentos e abrigos formais e informais e, cotidianamente, sujeitos à xenofobia, exclusão, estigma, exploração de todas as formas, dentre elas o tráfico humano, escravidão, violência de gênero e abusos de crianças, adolescentes, mulheres e vulneráveis. A situação se potencializa quando esses migrantes e refugiados estão indocumentados.
Conforme ressalta a Organização Internacional para as Migrações (OIM, 2020), as consequências indiretas da Covid-19 consistem “em incluir uma deterioração das economias, dos sistemas educacionais, bem como do respeito das sociedades pelos direitos humanos e pelo Estado de direito”.
Discriminação
Nos países que já aplicavam uma política migratória de discriminação aos migrantes e refugiados, a pandemia tende a fortalecer discursos nacionalistas, o autoritarismo, as teses supremacistas, a estigmatização de povos e culturas como responsáveis pela disseminação do vírus. Os prosélitos na necessidade de retorno dos controles fronteiriços, do endurecimento das leis migratórias e da própria circulação de pessoas para o turismo ou atividades acadêmicas de curta duração podem ganhar projeção política e ocupar os postos de liderança.
A contingência1, que é elemento característico da pós-modernidade, foi agudizada pela pandemia de Covid-19, espalhando-se o medo da morte, do caos econômico e do aumento das desigualdades entre as pessoas e nações. Tudo isso coloca a democracia liberal em xeque e refém de governantes que, sob a lógica de reforçarem sua liderança necessária na crise, na prática concentram poderes, violam liberdades, direitos e garantias das pessoas, sobretudo os mais vulneráveis pelas próprias circunstâncias de vida, a exemplo dos migrantes e refugiados.
Isso remete a Agamben quando trata das leis e medidas duras e impopulares que são tomadas contra a população em momentos de crise, as quais surgem para serem temporárias, mas se incorporam ao cotidiano da população e se perpetuam por décadas, limitando direitos humanos e garantias fundamentais. O discurso baseia-se na premissa de que o remédio é amargo, porém necessário. Logo, no lugar da indignação com as restrições que se afiguram abusivas, prefere a população aceitar sem muitos questionamentos o que parece ser um destino inevitável. Solapa-se, assim, as regras do direito internacional, dos direitos humanos e fundamentais, sem a certeza de que o sacrifício trará os benefícios necessários e esperados.
Então, o que fazer diante desse quadro tão incerto? Pensar em saídas jurídicas ou cautelas legais e societárias seria exercício de futurologia? Os filósofos contemporâneos, a exemplo de Yuval Harari, sinalizam os desafios do “mundo novo” pós-epidemia de Covid-19. Os países vão preferir exercer a vigilância em massa sobre as populações, visto que agora a tecnologia chega ao seu ápice de importância para a humanidade ou esse mesmo avanço da informática será um fio condutor para proteger a vida? A humanidade é um único mundo e, portanto, deve-se guiar pela “ética da espécie” proposta por Habermas2? Qual será o papel dos migrantes e refugiados nesse contexto?
Demográfica
A questão demográfica também retorna ao centro da discussão, pois não se sabe qual será a configuração do mundo pós-pandemia. Um prenúncio se faz ecoar no que tange a perdas de pessoas mais idosas, sobretudo nos países desenvolvidos da Europa, Ásia e nos Estados Unidos. Como nenhuma região será poupada, surge o dilema de como as sociedades reagirão ao episódio fatídico e imponderável da pandemia de Covid-19; se a economia vai demandar um fluxo maior de imigração, em quais setores, faixa de idade, se a escolha será seletiva por nível de conhecimento, origem, laços históricos ou simplesmente se os Estados se fecharão por longo período e aumentarão os controles, fazendo das fronteiras zonas de não direitos e seu bastão de defesa em relação aos migrantes e refugiados, histórica e levianamente responsabilizados pelas mazelas de alguns países.
Dentre essas provocações, impõe-se verificar se o ser humano pós-pandemia de Covid-19 privilegiará o vocabulário da solidariedade global, hospitalidade universal3 e o caminho da sonhada cidadania global ou esse indivíduo pós-pandêmico pode preferir discriminar, rejeitar, violar direitos assim que tiver certeza que seu IgG, em tese, não estará mais sob o risco do novo coronavírus. Para os que acreditam em uma redenção da natureza humana é preciso recordar que a sociedade pós-moderna já se prepara para usar uma nova roupagem, agora trajada de tecnologia, aplicativos, programas de distração e lazer à distância, sem perder, é claro, sua agressividade.
A ONU, tão questionada pelos Estados e pessoas, precisa dar uma resposta de poder de articulação política e jurídica para construir consensos que resultem em tratados que coloquem a vida humana em primeiro lugar, sem descurar da equação econômica global. Isso significa também impor àqueles que sempre se beneficiaram da globalização e maximizaram lucros um mínimo de sacrifício, sejam empresas ou indivíduos com grande fortuna. Se a situação é de extrema gravidade para os que estão em seus países de origem, o que dizer de mulheres, homens e crianças deslocados de suas raízes, em campos de refugiados, morando em abrigos improvisados sem renda para a própria sobrevivência? O direito e a economia precisam chegar a um consenso sobre a renda mínima universal, pois assim os Estados que criam as vulnerabilidades dos migrantes e refugiados seriam responsáveis minimamente pela vida digna dessas pessoas. O Estado de bem-estar social precisa ser refundado.
Nesse compasso frenético e assustador para todos enquanto seres humanos, desprovidos de certezas se passarão ilesos por esta pandemia, é, ao mesmo tempo, angustiante, contraditório, alvissareiro e pedagógico que nenhum grupo ou etnia tenha razão, solução pronta, nenhum laboratório sozinho tem a vacina ou remédio eficaz para prevenir o vírus, nenhuma religião tem na sua doutrina a receita para esse “mal epidêmico” e conforto emocional absoluto diante das consequências da pandemia; nenhum líder mundial se arvore a dizer que a sua pessoa, os seus nacionais ou asseclas partidários estão a salvo da doença; nenhum bilionário alimente seu ego por salvar a humanidade. De fato, ninguém tem a senha master para sanar o problema.
Por isso, torna-se imprescindível a formação de uma rede de cientistas, políticos, juristas, economistas ou de pessoas ditas “comuns”, nativos, migrantes ou refugiados, onde cada um tem uma minúscula parte do mosaico e terá que se contentar em fornecer seu melhor talento ou virtude, de forma simples e cooperativa, forçosamente. Parte da solução pode vir de um egocêntrico ardiloso, influencer ou humilde, branco ou preto, europeu ou indígena, homossexual ou heterossexual, não importa. O Papa Francisco em sua histórica missa, em 27 de março em Roma, com a praça de São Pedro completamente vazia de pessoas disse: “Demo-nos conta de estar no mesmo barco, todos frágeis e desorientados mas ao mesmo tempo importantes e necessários: todos chamados a remar juntos, todos carecidos de mútuo encorajamento. E, neste barco, estamos todos”.
Complexidade
O quebra-cabeças do dilema existencial e salvação da humanidade forma um todo complexo, democrático e igualitário naquilo que é possível, perpassa a ética dialógica proposta por Habermas5, do reconhecimento que as minorias precisam de proteção, mas podem contribuir com o mundo com suas experiências e culturas. O desenvolvimento sempre será sinal de liberdade como frisa Amartya Sen6 e a economia sempre precisará se renovar e robustecer com a participação dos migrantes na visão de Piketty7. Assim, por uma via de dores e sofrimentos, a humanidade tem a oportunidade de voltar-se para a sua essência e abrir-se para uma visão transcivilizacional, como defende Yasuaki Onuma8, que não é novidade, mas sempre esteve ofuscada pelo colonialismo e eurocentrismo do direito e das ciências.
Nesse contexto, a conformação jurídica dada pelo direito internacional para a constituição e funcionamento das Organizações Internacionais e subsidiar ONGs de âmbito internacional contribui para uma rede institucional de esforços e solidariedade. O mesmo direito internacional dá limites legais aos governantes que querem sobrepor a soberania e os ideais nacionalistas em desfavor da supremacia dos direitos humanos.
A ONU, OIM, Acnur, OMS e ONGs concentram-se e coordenam esforços humanitários em todo o planeta e, especialmente, no Brasil. São ações de saúde, assistenciais, informativas e de proteção jurídica. Conforme noticiado, para exemplificar, no Brasil, a OIM, ACHNUR, ONGs e governos locais, com o financiamento do governo do Japão, estão promovendo ações de saúde em Roraima, apoiando a Operação Acolhida.
Nesse momento de contingência, de frisson autoritário, de histeria coletiva e tensão sem precedentes, no qual os sentimentos são contraditórios entre compaixão e egoísmo, empatia e culpabilização, solidariedade e busca da própria sobrevivência física, independentemente do seu status legal, migrantes e refugiados clamam por proteção na linha no espírito da “cobertura universal de saúde” e da ética da espécie.
Em meio aos ataques e ameaças financeiras contra OMS e quando tudo parece estar suspenso, a humanidade tem, ao menos, uma certeza: o respeito às liberdades individuais, o aspecto cogente às normas de direitos humanos e o Estado de direito não estarão jamais em quarentena.
Paulo Borba Casella é professor titular do Departamento de Direito Internacional e Comparado da Universidade de São Paulo (USP), jurista e presidente do Instituto de Direito Internacional e Relações Internacionais (IDIRI); e Clodoaldo Silva da Anunciação é doutor em Direito pela Université Paris 1 Panhéon – Sorbonne em cotutela e dupla titulação com a USP, professor adjunto da Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC), pesquisador do Observatório das Migrações do Estado da Bahia e promotor de Justiça do Ministério Público do Estado da Bahia.
1 BAUMAN, Zigmunt. Modernidade e Ambivalência. Trad. Marcus Penchel. Rio de Janeiro, 1999.
2 HABERMAS, Jürgen. A inclusão do Outro. Estudos de teoria política 2.ed / Jürgen Habermas; tradução de George Sperber, Paulo Astor Soethe e Milton Camargo Mota. São Paulo: Loyola, 2004.
3 KANT, I. Ideia de uma história universal com um propósito cosmopolita. In: A paz perpétua e outros opúsculos. Lisboa: Edições 70, 2009.
4 Trecho da homilia da Santa Missa celebrada em 27 de março de 2020.
5 HABERMAS, Jürgen. A Inclusão do Outro: Estudos de teoria política. Tradução de George Sperber e Paulo Astor Soethe (UFPR). São Paulo: Edições Loyola, 1996.
6 SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. Trad. Laura Teixeira Motta. São Paulo: Companhia das Letras. 2010.
7 PIKETTY, Thomas. O capital no século XXI. Trad. Monica Baugarten de Bolle. Rio de Janeiro Intrínseca. 2014.
8 YASUAKI, Onuma, Direito Internacional em Perspectiva Transcivilizacional: questionamento da estrutura cognitiva predominante no emergente mundo multipolar e multicivilizacional do século XXI. Org. Trad. Paulo Borba Casella e Masato Ninomiya. Belo Horizonte: Arraes editores Ltda, 2017.