O neocolonialismo metabólico
Códigos técnicos do capitalismo contemporâneo exprimem o poder de produzir ou reproduzir situações de desigualdade ambiental entre os países do Norte e do Sul
A sociologia crítica das técnicas entende que a concepção dos artefatos tecnológicos se dá sempre a partir de um “código” – ainda que informal – de normas e valores. A ação técnica é entendida como uma forma de exercício de poder, estando a racionalidade técnica situada numa interseção entre ideologia e tecnologia.[1] Sabe-se que, não por acaso, parte importante das inovações técnicas provém de pesquisas desenvolvidas para fins de guerra. As tecnologias de processamento de alimentos em conserva são um dos exemplos mais citados. Assim é que os códigos técnicos do capitalismo contemporâneo exprimem o poder de produzir ou reproduzir situações de desigualdade ambiental entre os países do Norte e do Sul. Conforme foi sustentado num memorando interno do Banco Mundial, em 1992, por seu então economista-chefe Lawrence Summers, a racionalidade econômica justificaria a localização das atividades desenvolvidas com técnicas poluentes nos países de baixa renda,[2] onde, sob essa mesma lógica, a carência de recursos de investimento concorreria para estimular maior tolerância para com a recepção de tais práticas. Para além da conhecida configuração geral dessa desigualdade ambiental perversa que caracteriza o capitalismo neoliberalizado, o que discutiremos aqui, em particular, é o código técnico que exprime uma desigualdade ambiental específica – aquela entre sistemas alimentares do Norte e do Sul –, buscando mostrar como certas estratégias de pesquisa tecnológica ora em curso se inscrevem na perspectiva de uma cadeia produtiva de lucro.
Refiro-me aqui a pesquisas que têm sido justificadas por buscar enfrentar os resultados microbiológicos indesejáveis dos sistemas alimentares ocidentais. Mais especificamente, parto do fato recentemente divulgado de que pesquisadores suíços estão importando e estocando fezes coletadas em países menos industrializados para a constituição de um banco mundial de microbiota,[3] sob a justificativa de buscar proteger o microbioma humano em geral.[4]
Esses cientistas partem da constatação empírica de que não apenas as plantas e animais estão ameaçados de extinção, mas também as bactérias, e entre elas, aquelas associadas às práticas alimentares. A flora intestinal dos humanos estaria empobrecendo ao longo do tempo, verificando-se uma grave redução da diversidade dos micro-organismos presentes nos sistemas digestivos humanos. Diante disso, pesquisadores pretendem criar um cofre-forte contendo microbiota diversa para, eventualmente, compensar, no futuro, a drástica e prevista redução da variedade de micro-organismos presentes no sistema digestivo de indivíduos habituados ao regime alimentar ocidental dominante.
O Laboratório de Microbiologia da Universidade de Lausanne, onde nasceu esse projeto, alega visar, com ele, conservar a microbiota humana no longo prazo a partir de matéria fecal de doadores saudáveis de outros países tendo por fim preservar a microbiodiversidade para as gerações futuras. No entanto, quem são esses doadores de microbiota saudável? Para que segmentos sociais da geração futura serão assegurados os benefícios da preservação no longo prazo dessa diversidade microbiológica?
Não por acaso grupos sociais e étnicos de países pobres são os que apresentam um microbioma bastante diverso comparativamente ao dos países ricos. O modo de vida dos países mais industrializados, onde a agricultura é monocultural e a alimentação, em grande parte, ultraprocessada, é tido como o grande responsável pela queda da diversidade microbiológica da flora intestinal no mundo. Nos países mais pobres, onde a agricultura em grande escala com espécies homogêneas ainda não ocupa todo o espaço rural e a alimentação ainda é, particularmente para certos grupos sociais, biodiversa, vigora uma vantagem comparativa biológica – mais precisamente biocultural – com relação aos países ricos[5]. Estima-se que os povos indígenas da Amazônia, por exemplo, transportem em seus intestinos quase o dobro da variedade de micro-organismos do que aquela presente em indivíduos de uma grande cidade dos Estados Unidos.
A importação de excrementos dos países menos industrializados poderia ser um meio dos laboratórios farmacêuticos multinacionais transformarem a circunstancial vantagem biológica remanescente dos países pobres em fonte de lucro para as corporações dos países ricos. A tecnologia do transplante de matéria fecal entre indivíduos – no caso presente, transferida de pobres produtores de dejetos para ricos consumidores de microbiota – transformaria a diversidade biocultural, circunstancialmente virtuosa do ponto de vista dos países pobres, em acumulação por espoliação em benefício dos países ricos[6]. A desigualdade biológica vantajosa, expressa na microbiota diversa de países pobres da África, da Ásia e da América Latina, seria, assim, convertida em fator de uma desigualdade financeira viciosa, em detrimento dos países pobres. O intercâmbio desigual que até aqui caracterizou o processo de afastamento entre os níveis de vida de países mais industrializados e menos industrializados agora alcançaria também a relação entre as cadeias alimentares respectivas dos países do Norte e do Sul, estabelecendo um processo de transmutação da microrriqueza biológica dos pobres em macrorriqueza financeira dos ricos.
Essa transferência não só não altera ou retifica os sistemas alimentares do ocidente, como permite que eles continuem aprofundando a redução de sua microbiodiversidade, garantindo, assim, a lucratividade das corporações nas duas pontas – a do sistema agroalimentar monocultural industrializado e a da indústria farmacêutica que venderia fármacos destinados a corrigir os resultados nefastos do sistema alimentar ocidental homogêneo. No entanto, isso só se mostra possível porque ainda existem fontes de diversidade microbiológica nos espaços ainda não totalmente despossuídos dos agroecossistemas dos países da periferia do capitalismo. Nesses países, a biodiversidade vem sendo destruída pelo avanço da produção de commodities exportáveis sobre áreas de pequena produção e de comunidades tradicionais, ao mesmo tempo em que o que resta de biodiverso no metabolismo socioalimentar das populações locais é pensado como matéria-prima a ser incorporada à cadeia produtiva de lucros do capitalismo extrativo multinacional. Configura-se assim um extrativismo disposto em duas frentes de expropriação: uma, a partir de áreas biodiversas transformadas em monocultoras e outra, a partir da diversidade microbiológica transformada em medicamentos, fechando a cadeia agroquimicofarmacêutica de despossessão dos ambientes de vida e trabalho dos povos do Sul global.
A técnica de transplante de microbiota fecal já existia, aplicada ao combate à infecção persistente da bactéria Clostridioides. No atual projeto de cofre-forte global de microbiota, essa técnica é pensada em um contexto internacional, inserida num quadro de relações internacionais desiguais no qual a matéria-prima para os fármacos, imaginados como meio de cura da crise intestinal dos consumidores do Ocidente, seria coletada nas fezes dos povos tradicionais dos países do Sul – notadamente pastores da Etiópia e do Laos –, certamente mais barata para os laboratórios farmacêuticos multinacionais do que aquela que poderia ser retirada dos insumos processados pela própria cadeia tecnológica do complexo químico-farmacêutico.
A desigualdade ambiental até aqui conhecida veio operando pela transferência para os países pobres, das práticas e técnicas poluentes – como uso de agrotóxicos proibidos no Norte – e degradantes, baseadas na extração e exportação de bens comuns como água, fertilidade do solo e biodiversidade do Sul para o Norte. Ao lado da já conhecida condição de injustiça climática, resultante das emissões de gases pela indústria fóssil cujos efeitos penalizam populações vulnerabilizadas, o código técnico prevalecente no capitalismo vem gerando também uma injustiça biológica pela destruição da biodiversidade cultivada ao longo dos tempos pelos pequenos produtores e indígenas, ao mesmo tempo em que investe na produção de uma biodiversidade industrial artificializada, como é o caso do aqui referido projeto de banco mundial de microbiota, a partir da síntese metabólica – ou seja, de um processo biológico não pago – das práticas alimentares de populações que consomem bens biodiversos cultivados por pequenos produtores e indígenas.
O código técnico, portanto, não só produz realidades no âmbito do trabalho e da exploração de recursos em acordo com a lógica e os objetivos dos atores cujos negócios dependem da competitividade das tecnologias, mas apoia-se também em uma interpretação estratégica das situações sociais existentes – no caso em questão, a situação de desigualdade biológica oriunda da diversidade cultural entre Norte e Sul globais – para exercer uma imaginação sociotécnica com possíveis fins lucrativos.
Segundo os promotores do referido projeto, as amostras colhidas nos países menos industrializados não deverão pertencer aos pesquisadores, nem à Suíça, não podendo a grande indústria farmacêutica delas vir a se servir, tratando-se de um projeto sem fins lucrativos. Mesmo se assim vier a ser, salta aos olhos, do ponto de vista das estratégias de pesquisa, que a “solução” técnica que venha prevalecendo não seja aquela que poderia contribuir para mudar a trajetória tecnológica do sistema agroalimentar ocidental ou proteger a riqueza microbiológica in-situ dos territórios tradicionais dos países periféricos. O caminho privilegiado pelos códigos técnicos dominantes é o de buscar ações compensatórias para modelos agroalimentares que se supõe pretender manter intocados, o que, no caso presente, significa fazer das desigualdades sociais, territoriais, biológicas e alimentares uma possível oportunidade de negócio.
Henri Acselrad é professor do IPPUR/UFRJ.
[1] A. Feenberg, Entrevista. Scientiae Studia, São Paulo, v. 7, n. 1, 2009, p. 168
[2] Let Them Eat Pollution, The economist, 8/2/1992, p.66
[3] A microbiota é o conjunto de microorganismos que habitam um ecossistema, formado principalmente por bactérias que têm funções importantes na decomposição da matéria orgânica e na reciclagem dos nutrientes. A microbiota intestinal, em particular, conhecida como flora intestinal, é o complexo de espécies de microrganismos que vivem no trato digestivo dos seres humanos.
[4] M. Andina e C. Raaflaub, Notre flore intestinale a désormais son coffre-fort suisse, SWI swissinfo.ch – succursale de la Société suisse de radiodiffusion et télévision, 27/2/2022. Conhecido pelo nome de Microbiota Vault, o projeto foi inspirado em uma iniciativa similar destinada ao campo da agricultura, quando se constituiu um banco de mais de 1,1 milhão de tipos de grãos provenientes de todo o planeta, que foi instalado em um arquipélago pertencente à Noruega.
[5] Segundo conhecimento estabelecido, “o modo de vida influencia o enterotipo: a higiene alimentar tem um papel prepoderante na composição da microbiota” (K. Fabiani, Microbiote intestinal, immunité et transfert de microbiote: vers um espoir vers un espoir thérapeutique?, Tese de Doutorado em Farmácia, Université d’Aix-Marseille, Marselha, 2019, p.41). O enterotipo é uma classificação dos seres vivos com base em seu ecossistema bacteriológico intestinal. “Um regime alimentar nefasto é deletério pois existe uma relação estreita entre a alimentação e a microbiota intestinal. Os enterotipos bacterianos encontram-se sob influência dos hábitos alimentares do hospedeiro” (Fabiani, op.cit., p. 110).
[6] Tem-se designado por acumulação por espoliação ou despossessão os mecanismos pelos quais o capitalismo incorpora novas riquezas para si por meio da privatização da terra e expulsão de camponeses, povos indígenas e tradicionais que nela vivem e trabalham, assim como por métodos neocoloniais de apropriação de ativos pré-existentes sob a forma de bens comuns, como água e sistemas vivos, entre outros. D. Harvey, The ´New`imperialism: accumulation by dispossession, Socialist Register, 2004, p.63-87.
Muito interessante, obrigada. Nunca tinha ouvido enquanto vivo em Lausanne e até ando nesta universidade 🙂
Porém… Há algo que não dá bem para eu perceber. Parece que se pretende que no Sul global, a alimentação tende ser mais diversa e saudável do que no Norte… É a ideia?
Porque, vivendo na Suíça, não posso não dizer que cá, as pessoas está bem não as mais afortunadas mas sim as mais sensiveis e conscientes têm acesso a uma grande variade de legumes ou cereias antigos, enquanto as pessoas com recurscos económicos é que se alimentam mais de comida ”chatarra” ultra-transformada.
Por outra parte, bem sabemos que há países como colonizados pela ex Monsanto onde então estamos longe de ter diversidade… E o que dizer de tantos países submetidos a leis comerciais inequânimes que obrigam à monocultura de exportação para depois comer importações?
Para terminar, não perceãoãbo como a pobreza no Sul global pode implicar diversidade de alimentação. Se me refiro ao artigo da RTS posto em referência, são mais mencionados o consumo quasi-nulo de antibioticos e o contacto com animais e as bactérias deles…
Obrigada pela resposta 🙂