Ninguém nunca mais soltará a mão de ninguém
Aquela afirmação, “transformaram todos nós, familiares, em bandidos, o pobre não é mais digno pra nada!”, me desassossegou
– Seu juiz, estou nervoso de encontrar o senhor aqui. Viemos ver as luzes de Natal e o senhor caiu como uma benção na nossa frente. Meu filho está preso e precisava muito que ele saísse no final do ano.
– O senhor sabe dizer qual a pena dele e o regime?
– Ele se envolveu num roubo com arma, mas ninguém se machucou, está no fechado. Ele errou, eu sei, mas é um rapaz que tem jeito e aquele lugar é muito precário. Ao menos se tivesse um trabalho, estudasse por lá…
– É muito difícil, não tem trabalho e estudo para todos na prisão.
– Mas ele pode sair?
– É pouco provável. Se não saiu até agora, este ano não sai mais. Teve uma lei de 2019 que transformou esse crime em hediondo, as progressões de regime e saídas demoram mais, lamento.
– Transformaram todos nós, familiares, em bandidos, o pobre não é mais digno pra nada!
– As coisas melhorarão.
– Será?
– Está vendo esse menino segurando a sua mão? – o homem estava com uma criança agarrada nas pernas, a mãozinha para cima, ao encontro da dele.
– É meu filho mais novo.
– É assim que faremos, segurando a mão um do outro.
– Obrigado, doutor. O senhor é muito importante para nós.
– Não há o que agradecer. Boas festas.
– Para o senhor também, boas festas.
Continuei meu percurso pelas calçadas do centro da cidade, mas a afirmação, “transformaram todos nós, familiares, em bandidos, o pobre não é mais digno pra nada!”, me desassossegou. Aquele pai transmitia o senso comum da população mais vulnerabilizada.
Dentre milhões de brasileiros, as minorias políticas e os defensores dos direitos humanos, além de lutar por um mundo mais ético e justo, precisam lutar contra estigmas e contra uma força permanente que os empurra para a margem.
No sistema de justiça criminal e carcerário, a falta de um plano de estado para redução do encarceramento de um lado e equívocos graves, como foi o intitulado “pacote anticrime”, de outro, deságua em recrudescimento das penas e, por consequência, da violência.
Há momentos em que o inferno se instala no peito e na cabeça e a tristeza, aliada à angústia, toma conta de cada um.
Entretanto, os olhos, cansados de chorar, vislumbram um novo tempo, um tempo de retorno aos valores fundantes da democracia.
Isso é possível porque aqueles que se mantém ao lado da Constituição, dos direitos humanos, da civilidade, ao lado da grande massa da população ainda mais vulnerabilizada, sabem se amparar, sabem co-esperançar.
Dessa forma, quando falei àquele pai que as coisas melhorariam, não o fiz retoricamente.
O tempo do meio ambiente, como centro da existência; dos indígenas e sua ancestralidade, na luta pelas terras a que pertencem; da reparação histórica pela sequestro e opressão das populações negras, com o efetivo reconhecimento de que ser antirracista é a base de alcance da igualdade; do combate à homofobia, pelo respeito à orientação sexual e identidade de gênero; da pauta da superação da violência contra a mulher, face ao machismo e patriarcado; do reconhecimento do trabalhador como propulsor do progresso; da valorização da cultura; da retomada do leme pela educação e ciência; da justiça social, que alimenta de oportunidades os jovens brasileiros desde a primeira infância; e finalmente das políticas de enfrentamento à cultura do encarceramento em massa, com alternativas penais distanciadas do punitivismo, esse tempo voltará, ou chegará, como querem alguns.
Ninguém pode ser expulso da cidadania, ninguém pode se sentir estigmatizado pelo Estado, ninguém!
Aquele pai que encontrei no centro da cidade estava certo, assim como certa está a luta contra todas as formas de injustiça.
Porque ninguém nunca mais soltará a mão de ninguém!
João Marcos Buch é juiz de direito.