No Amapá, para cada pedido de ajuda, dúzias de balas de borracha
Protestos da população diante da situação de emergência instaurada pelo apagão são respondidos com violência do Estado. Publicação da ARTIGO 19 alerta para a perpetuação de violações ao direito de protesto
Vítima de uma crise instaurada pelo apagão energético que deixou treze dos dezesseis municípios do Amapá sem eletricidade, a população do estado reivindica que providências sejam tomadas pelo poder público. Foram quatro dias na escuridão absoluta – de 3 a 7 de novembro –, até que a energia fosse parcialmente restabelecida, em um sistema de rodízio. Treze dias depois, a situação ainda não foi estabilizada e o cronograma de rodízio não é obedecido. Os bolsões de riqueza, com seus condomínios de luxo, tiverem a energia assegurada e restabelecida em tempo integral, em detrimento do restante do estado. Em meio a uma pandemia, a maior parte dos municípios amapaenses está sofrendo também com os efeitos decorrentes do corte de energia elétrica, como a falta de água potável, precariedade do sinal telefônico e de internet, falta de gasolina e perda de alimentos – situação que também prejudica escolas, postos de saúde e comerciantes.
Mesmo diante desse cenário calamitoso, o governo federal se esquivou do compromisso de agir para sanar o problema ou oferecer a ajuda necessária à população durante os primeiros dias de apagão. Já o governo estadual respondeu às manifestações populares em diversas cidades do mesmo modo que outros governantes brasileiros se habituaram a lidar com crises: com farda, coturno, bombas e um punhado de balas de borracha. Até o último sábado (15), foram registrados pela Polícia Militar amapaense mais de oitenta manifestações populares. São velhos e jovens, homens e mulheres que estão vivendo em privação de recursos essenciais à vida, e que, diante do abandono do poder público, recorrem às ruas para serem vistos e ouvidos.
A forte repressão policial, inclusive com destacamento do batalhão de choque, tensionou os protestos, especialmente em Macapá e Santana. Os relatos e vídeos feitos mostram que a PM/AP tem agido não só para dispersar manifestantes, mas também para coibir novos protestos e criminalizar aqueles que tenham algum envolvimento com as manifestações. Não bastasse o clima de indiferença ao sofrimento da população, a polícia tem realizado rondas que instauraram uma verdadeira perseguição aos manifestantes. Ou seja, o poder público não só nega direitos, mas busca reprimir sua reivindicação pela população e punir os reivindicantes.
As numerosas denúncias, frequentemente acompanhadas de registros filmados por cidadãos e cidadãs que sofreram ou presenciaram ações policiais violentas, levaram à instauração de dois processos administrativos que investigam o abuso do uso da força nos protestos no Amapá, especialmente do uso de armamentos com munição de elastômero, a famosa bala de borracha. Amplamente criticado em todo o mundo, o uso desse armamento tem feito diversas vítimas com as mais diversas lesões. Em Macapá, durante uma manifestação no dia 6, o garoto Lucas Matheus Cavalcante Abreu, de 13 anos, foi atingido por um tiro de bala de borracha. A avaliação médica informa que a lesão irá custar a Lucas a visão de seu olho direito. Segundo a família, que tem comércio na rua onde o tiro foi disparado, o garoto sequer participava da manifestação. Quando foi ferido, a família relata ter pedido socorro à polícia, que ignorou os apelos.
No mesmo dia, pelo menos outras quatro pessoas foram atingidas nos membros superiores do corpo, violando os parâmetros internacionais que regulam o uso da força e o emprego de armamentos “menos letais”. Entre elas está o professor Fausto Suzuki, de 40 anos, atingido por duas balas de borracha no braço. Casos como o de Lucas e de Fausto são rotineiros no Brasil. Só em São Paulo, de 2018 para 2020, houve um aumento de 475% no uso da munição de elastômero pela Guarda Municipal em operações de segurança contra a população na região da Luz. Foi também na capital paulista que os comunicadores Sérgio Silva e Alex Silveira perderam a visão após serem atingidos por balas de borracha enquanto faziam a cobertura jornalística de protestos, em casos que se tornaram emblemáticos e que mostram como essa violência é uma prática intencional e consolidada. Ainda que os agentes públicos venham a ser responsabilizados – o que nem sempre ocorre –, o sistema de justiça não nos mantém a salvo das violações futuras, nos oferecendo, no máximo, uma punição a quem disparou. Para as vítimas, a lesão é permanente. E a violação se perpetua – de São Paulo ao Amapá, do Brasil ao Chile – onde 285 pessoas sofreram trauma severo nos olhos por causa de tiros de bala de borracha e gás lacrimogêneo, segundo dados compilados no Relatório Global de Expressão.
Uso de armas “menos letais”
Embora comumente tidos como os armamentos mais recomendados para “controle de multidões” (crowd-control weapons), seu uso pode mutilar e matar, e por esse motivo, mesmo a terminologia “armamentos não letais” não parece adequada. Há muito tempo busca-se produzir recomendações para redução dos danos resultantes do uso desses armamentos, a exemplo dos princípios básicos sobre o uso da força e armas de fogo pelos funcionários responsáveis pela aplicação da lei, das Nações Unidas.
Segundo a recomendação da ONU, o uso da força deverá sempre obedecer aos princípios da “necessidade, legalidade, proporcionalidade, conveniência e moderação”. O potencial letal das balas de borracha não deve ser subestimado: um estudo de revisão sistemática da literatura médica realizado pelas organizações International Network of Civil Liberties Organizations (INCLO) e Physicians for Human Rights (PHR) aponta que os projéteis podem causar lesões severas, invalidez e morte. Quando os disparos são efetuados de longe, os tiros são imprecisos e podem atingir as partes mais vulneráveis do corpo ou ferir transeuntes, como ocorreu com Lucas, no Amapá. Os pesquisadores concluem que alguns modelos de armas “menos letais” têm, em realidade, o mesmo potencial de penetração na pele que a munição convencional, podendo ser igualmente letais. Não seria possível garantir, portanto, um uso simultaneamente seguro e eficaz desse tipo de armamento.
O uso de balas de borracha, de bombas de gás lacrimogêneo e de efeito moral, além de atentarem contra a vida dos manifestantes, fomentam um mercado lucrativo de armamentos que aposta no agravamento das condições sociais. Quem afirma isso é um dos dirigentes da Condor, a maior empresa de tecnologia dita “não letal” do Brasil, especializada na venda de balas de borracha e granadas lacrimogêneas, de pimenta e de efeito moral, ao afirmar que via nos protestos contra o governo de Jair Bolsonaro uma grande oportunidade comercial. Nesse contexto e diante da eclosão dos protestos no Amapá, a ARTIGO 19 publica nesta quarta-feira (18/11) um caderno de referência sobre o exercício do direito de protesto no Brasil, trazendo informações sobre os cuidados necessários a serem tomados antes, durante e após a manifestação. A publicação aborda aspectos jurídicos e de segurança física e comunicacional, além de estratégias para, quando possível, registrar violações ao direito de protesto como corajosamente têm feito os amapaenses. A publicação foi preparada antes do apagão e dos protestos no estado, mas trazia um alerta que se aplica ao contexto atual como uma tragédia anunciada: assim como as táticas como caldeirão de Hamburgo (keting) e o envelopamento, o uso de armamentos menos letais coloca a vida dos manifestantes em risco e atenta contra as liberdades de expressão, manifestação e associação – especialmente quando elas são mobilizadas para reivindicar outros direitos fundamentais.
É necessário e urgente que pensemos e coloquemos em prática melhores formas de lidar com os tensionamentos gerados por protestos populares; não podemos naturalizar a possibilidade de, no exercício de nosso direito à liberdade de expressão e manifestação, perdermos a visão de um olho, ou mesmo a vida. Devemos nos mobilizar para que o uso das munições de elastômero seja abolido, evitando que outros jovens como Lucas sejam vitimados – acidental ou propositalmente – em virtude do exercício legítimo ao direito de protesto.
Manoel Alves é assessor jurídico do Centro de Referência Legal da ARTIGO 19 e mestre em Ciências Criminais.