Nos Estados Unidos, “no fundo, nada vai mudar”
Nenhum país conta tantas vítimas de Covid-19 – mais de 100 mil em maio – quanto os Estados Unidos. Além disso, a falta de uma rede de proteção médica e social provoca uma crise que não se via há um século. Em ano eleitoral, esse quadro poderia provocar um terremoto político. Entretanto, a reeleição de Trump não está descartada, e seu rival apenas ambiciona um retorno à era Obama
Este é o pior momento da história dos Estados Unidos. A pandemia que os profetas do desastre anunciavam havia décadas caiu sobre nós sem que estivéssemos minimamente preparados. Nosso governo mastodôntico, tão pronto em tempos normais a explorar a fundo o menor reflexo de medo, sobretudo quando isso é conveniente para a extrema direita, permaneceu amorfo diante da atual crise histórica. Nosso presidente, Donald Trump, ex-astro de reality shows na TV, não apenas revelou sua total incompetência, como também pôs em risco a saúde pública graças às suas lucubrações idiotas, divulgadas praticamente todos os dias para todos os lares norte-americanos. Enquanto escrevo estas linhas, o país quase inteiro está confinado. A cidade de Nova York, onde o vírus causou mais devastação, precisou há poucas semanas enterrar os corpos em valas comuns, com a ajuda de escavadeiras.
Colocar o país em quarentena pressupunha, evidentemente, suspender a vida econômica, que estava em pleno vapor havia apenas dois meses. Na América, não existe um mecanismo para suavizar os efeitos de tal bloqueio – as pessoas simplesmente perdem o emprego ou põem a chave debaixo da porta e ponto final. Em um piscar de olhos, passamos de uma das economias mais florescentes do mundo para uma nova Grande Depressão: saltamos todas as etapas intermediárias, assistindo ao desemprego em massa e às falências em série de grandes e pequenas empresas.
Aqui, no país do individualismo, o indivíduo-rei foi literalmente submergido, arrebatado pelas correntes anônimas da doença e do colapso econômico. Parentes estão na iminência de morrer sozinhos, em um hospital qualquer por aí, e os restaurantes concorridos, para onde afluíam em massa os fregueses, fecharam as portas – seus jovens e ambiciosos chefs estão ocupados preenchendo formulários de auxílio-desemprego, como milhões de seus semelhantes.
E tudo isso se desenrola em condições meteorológicas excepcionais. Aqui, em meu cantinho da América [Bethesda, um subúrbio de Washington], gozamos a primavera mais espetacularmente agradável que já vimos. Para os prósperos colarinhos-brancos que vivem nos arredores, a epidemia teve início numa paisagem que se diria pintada por Fragonard: ao surgirem os primeiros medos, os narcisos se abriram, depois as tulipas; as magnólias e as cerejeiras floresceram; em seguida, foi a vez das azaleias e dos rododendros; agora, os cornisos em flor estendem um arco sobre nossa cabeça quando saímos para correr nas calçadas e ruas tranquilas, vazias, de Bethesda.
Esse contraste irônico se mostra para onde quer que olhemos.
Quem possui uma voz capaz de ecoar pelos Estados Unidos agora se rejubila com o fato de a pandemia confirmar de maneira gritante todas as suas crenças anteriores. Em certas mídias, ela ilustra aquilo que se comentava sobre a ignorância e a loucura do presidente Trump. Para os conservadores, demonstra o que eles vêm repetindo há anos a respeito dos esquerdistas de alma delicada, com seu desejo suicida de deixar entrar qualquer um no país. Aos olhos de todos esses, a pandemia foi o pretexto para um carnaval de presunção.
No entanto, vai ficando cada vez mais claro que, em vez de reforçar as crenças tão caras ao consenso norte-americano, esse episódio as pulverizou. Durante décadas, o país exibiu sua capacidade manufatureira a tal ponto que todos reconhecem ser esse o preço a pagar para entrar na era da informação. Seríamos uma nação de colarinhos-brancos aptos a fazer coisas inovadoras, como medicamentos ou manuais de direito; obras do espírito, que importariam muito e pesariam pouco. E eis aonde chegamos, vítimas de uma penúria de máscaras, testes e mesmo álcool em gel, com nossos distintos dirigentes bizarramente incapazes de persuadir antigos parceiros comerciais de que a Terra é plana e que eles nos devem entregar sem demora as mercadorias das quais precisamos.
O sistema norte-americano de saúde pública e lucros privados, construído ao longo de décadas por contribuições entusiastas dos dois partidos políticos que se alternam no poder, mostrou-se absolutamente incapaz de responder aos desafios da pandemia. Por uma razão simples: ele nunca foi concebido para fins de saúde pública. No curso de minha vida, a mensagem implicitamente endereçada a seus usuários pelo sistema de saúde sempre foi que esse era um verdadeiro privilégio ao qual só se tinha acesso em caso de êxito e prosperidade individual. Um sistema meritocrático, tanto pelas recompensas que prodigaliza aos grandes médicos e aos pequenos gênios da indústria farmacêutica quanto por sua maneira de segmentar nosso atendimento. Os pacientes pobres, sem cobertura ou com cobertura defeituosa, mas que também precisam cuidar de seus ossos quebrados ou de seus órgãos doentes, veem-se com frequência arruinados por contas astronômicas. A ideia de que deveríamos parar de sangrar essas pessoas e pensar, antes, em distribuir-lhes gratuitamente testes e tratamentos contra a Covid-19 é tão contrária à concepção corrente sobre a política de saúde neste país que temos dificuldade em calcular quando e como essa decisão necessária será tomada.
A epidemia terá produzido ao menos uma consequência benéfica: reformular nossa compreensão do mundo social. Não faz muito tempo, para o norte-americano instruído e pensante, um trabalho que não exigia diploma universitário era indigno.1 Uma coisa pesada, desagradável e poluente, feita por quem às vezes votou em Trump e cuja vida se desagrega porque merece desagregar-se. Há poucos anos, o bilionário democrata Michael Bloomberg espantava os alunos da Universidade de Oxford com suas teorias enfatuadas sobre as elites que sabem “refletir e analisar”, ao contrário da ignorância presumida dos camponeses e operários.
Tudo poderia acontecer. Contudo…
Atualmente, esses operários e camponeses são tudo que nos impede de cair no abismo. Muitos deles, neste momento, estão fora de casa, arriscando a vida em meio aos vírus. Outros foram obrigados a retomar seu posto por um salário de miséria, sem que ninguém se preocupasse com sua vulnerabilidade à epidemia. Caem doentes nos mercados ou frigoríficos, enquanto os empregadores que lhes dão ordem de trabalhar – os famosos colarinhos-brancos da era da informação – permanecem prudentemente em casa, no sofá, gozando a miraculosa resiliência das cotações da Bolsa (obrigado, Congresso; obrigado, Federal Reserve). Seu trabalho se acomoda facilmente a um cotidiano seguro, feito de e-mails e videoconferências.
Se você acha que os trabalhadores não vão suportar por muito tempo semelhante situação, você está certo. Embora a informação a esse respeito seja uma mercadoria rara, pois o jornalismo social praticamente desapareceu nos Estados Unidos, há sinais de que a ação sindical nos locais de trabalho recobrou fôlego. Há pouco, um dos lobistas mais influentes da América, o inimigo dos sindicatos Rick Berman, advertiu seus clientes quanto aos riscos de uma “rebelião parcial da força de trabalho”.2 Com efeito, numerosas greves espontâneas eclodiram nas últimas semanas pelos quatro cantos do país.3
Cada uma dessas constatações aponta na mesma direção: a do desaparecimento súbito da confortável visão de mundo adotada e imposta ao resto do planeta pelos dirigentes norte-americanos no curso dos anos 1970, 1980 e 1990. A situação, por aqui, é prenhe de possibilidades. Tudo pode acontecer.
Por enquanto, ainda se cultiva a ironia tenebrosa e patológica do liberalismo norte-americano. A instituição que deveria nos ajudar a superar a antiga maneira de ver as coisas é o Partido Democrata – de fato, a única capaz de realizar hoje essa tarefa. Ora, apenas algumas semanas antes de o coronavírus explodir nos Estados Unidos, esse mesmo partido conseguiu, em uma alegre autocelebração pública, banir toda possibilidade de mudança na política norte-americana a curto prazo. Seus dirigentes pareciam empenhados em desperdiçar a crise.
Algumas palavras de explicação. Nos últimos meses, os candidatos à investidura democrática para a eleição presidencial debateram várias vezes. Refletindo o espírito da direita do país, muitos representantes pareciam, num primeiro momento, ter rompido – claramente e não sem criatividade – com os velhos pressupostos de seu partido. Mas, depois que o favorito da situação, o ex-vice-presidente Joe Biden, venceu as primárias na Carolina do Sul, quase todos os outros se recolheram, anunciando seu apoio ao vencedor. O único que continuava no páreo, o senador de Vermont Bernie Sanders – principal reformador de nossa época e figura aclamada pela juventude –, ainda tentou resistir por algum tempo, mas finalmente desanimou diante da marcha irresistível dos acontecimentos.
Biden, o homem que emergiu dessa efervescência, era o mesmo que prometia fazer o mínimo possível. Seu partido se prepara agora para uma eleição que será apenas um referendo pró ou contra a figura odiada de Trump. Eis-nos então em um clima político paradoxal, em que grande parte do eleitorado norte-americano gostaria de optar pela mudança decisiva que lhe propõem, mas em que o partido que encarna esse anseio faz tudo para decepcionar. Devemos assim escolher entre dois homens brancos, idosos e conservadores, conhecidos por sua relação maleável com a verdade, acusados de agressões sexuais e estranhos à esperança de reformas democráticas. Mais uma vez, a velha ordem foi providencialmente restaurada.
Contudo, repito: o estado da opinião, nos Estados Unidos, é tal que, com um dirigente bem escolhido, coisas notáveis poderiam acontecer. Sem isso, nosso horizonte se limita ao senhor Biden, um veterano afável de Washington implicado em grande parte nos desastres que assinalaram as três últimas décadas: acordos comerciais contrários aos interesses dos assalariados, Guerra do Iraque, legislação falimentar cruel, encarceramentos em massa, ataque sem precedentes às liberdades individuais chamado Ato Patriota… Ele até se gaba de ter, no início de sua carreira política, favorecido segregacionistas.
Biden tem boas chances de vencer, não há dúvida. A despeito de sua carreira, ele é um político de tradição clássica, acessível e estimado, ao passo que Trump, afundado num narcisismo patológico, transpira ressentimento e vive procurando meios de se tornar desprezível. Mais: é inconcebível que alguém possa gerir uma crise sanitária e econômica de maneira tão calamitosa como o atual presidente e esperar que os eleitores o convidem a repetir seu desempenho.
Um slogan prodigioso
Mas, “no fundo, nada vai mudar” se Biden se tornar presidente, conforme ele próprio assegurou a seus patrocinadores. Aí está um lema prodigioso para um período como o atual. Meus amigos de esquerda são unânimes em dizer que estão tristes. Seu herói Bernie Sanders, que em janeiro parecia invencível, foi vencido. Agora, estão fechados em casa repassando nomes de pássaros que os internautas trocam pelo Twitter. Eu partilho seu mau humor, mas os desafios são de natureza bem diversa. A perspectiva de imobilismo total após a presente catástrofe já basta para nossa desgraça; no entanto, a cada dia a imprensa nos informa de que a ordem antiga continua se fortalecendo. Sem cessar, um novo esquema surge para inundar de dinheiro público os cofres das empresas ou para apressar a tomada de poder pelo Vale do Silício. Neste mesmo instante, o governador democrata do estado de Nova York, Andrew Cuomo, aproveita a oportunidade do confinamento para convencer Bill Gates e outros bilionários da tecnologia a reprogramar o futuro de sua região. E, no momento, não podemos fazer absolutamente nada para impedi-los.
Um medo nos invade no contexto da pandemia, o de que a própria democracia seja reformatada em nossa ausência. O sistema nos tapeou, pois foi concebido para isso, mas, enquanto estamos fora da jogada, outros tomam as decisões que alterarão nosso amanhã. Apressam-se a reformular nosso contrato social enquanto vemos televisão e nos consolamos com uma dose de bebida.
Thomas Frank, jornalista e historiador, é autor de The People, No: A Brief History of Anti-Populism [Povo, não: uma breve história do antipopulismo] (a sair em julho pela Metropolitan Books, Nova York).
1 Ver Lizzie O’Shea, “Les emplois qualifiés n’existent pas” [Empregos qualificados não existem], Le Monde Diplomatique, maio 2020.
2 “Anti-union operative warns business of historic rise in labor activism” [Lobista contrário aos sindicatos adverte empresários quanto a uma efervescência histórica no ativismo trabalhista], The Intercept, Nova York, 1º maio 2020. Disponível em: https://theintercept.com.
3 “Covid-19 strike wave interactive map” [Mapa interativo da onda de greves em razão da Covid-19], Payday Report, Chattanooga. Disponível em: https://paydayreport.com.