As possibilidades abertas por Donald Trump…
O processo de impeachment de Donald Trump começou a tramitar em janeiro no Senado, enquanto, a partir de 3 de fevereiro, iniciam-se as primárias que devem definir seu adversário nas eleições presidenciais de novembro. Ambos os eventos são dominados por suas ações, comentários e personalidade. Contudo, se alguns democratas têm como único programa combatê-lo, outros veem bem mais longe
Desde que Donald Trump se instalou na Casa Branca, a personalização da política norte-americana atingiu seu paroxismo. Suas declarações, tuítes, delírios e egocentrismo obcecam o país – e o esgotam. Mas a mídia regozija-se de ter um produto tão atraente. Resultado: só se fala dele. Os republicanos apenas têm a ambição de coroar um campeão de autoridade indiscutida em seu lado do campo. Os democratas debatem meios de “expulsar” o mais rápido possível um presidente tão ameaçador. No entanto, como sua destituição é bem improvável, esperam que as primárias lhes permitam identificar um rival capaz de fazê-lo cair por terra em novembro.
“Se nos contentarmos em nos livrar dele”, observa, no entanto, a ensaísta de esquerda Naomi Klein, “voltaremos à situação anterior, tão ruim que lhe possibilitou triunfar.” É melhor, segundo ela, tratar a causa em vez de combater o sintoma. Andrew Yang, um dos doze candidatos democratas à eleição de novembro, pensa da mesma forma: “A mídia não nos ajuda muito ocultando a razão pela qual Donald Trump se tornou presidente. Observando um programa de notícias, é possível imaginar que é uma mistura de Rússia, racismo, Facebook, Hillary Clinton e seus e-mails que explicaria o resultado. Mas os norte-americanos sabem que isso não é verdade. Perdemos 4 milhões de empregos industriais, principalmente em Ohio, Michigan, Pensilvânia, Wisconsin, Missouri (estados do Meio-Oeste conquistados em 2016 pelo atual presidente, em alguns casos por muito pouco e para surpresa geral). Quanto mais agimos como se Trump fosse a causa de todos os problemas, mais os norte-americanos duvidam de nossa capacidade de perceber e resolver suas dificuldades cotidianas”.1
Aos olhos da ala centralista do Partido Democrata, principalmente representada por Joe Biden, substituir o presidente sem entrar em acordo sobre as condições que lhe permitiram vencer apresenta um interesse evidente: inocentar aqueles que não souberam lutar enquanto dispunham de meios para fazê-lo, ou seja, Hillary Clinton, Barack Obama… e o ex-vice-presidente deste último. Mas significa então correr o risco de produzir um novo Trump, potencialmente mais perigoso por ser mais hábil, menos inclinado a perder porções inteiras do eleitorado por vaidade, menos incorrigivelmente narcisista e menos ignorante das correlações de força internacionais. E, por consequência, mais capaz de encontrar aliados no interior e no exterior a serviço de uma política quase idêntica, cujos efeitos destrutivos seriam aumentados.
Lembremos: em novembro de 2008, a maioria dos norte-americanos estava feliz e orgulhosa. Havia acabado de levar à Casa Branca um jovem senador afro-americano que prometia “esperança” e “mudança”. Sua eleição golpeou o Partido Republicano, que muitos julgam ser reacionário, intolerante, a serviço dos ricos, militarista e temível por não sentir falta do apoio das populações mais pobres.2 A esperança seria rapidamente desapontada, já a mudança, modesta; e sabemos quem viria a suceder Obama.
Trump, que quis se distinguir de seu predecessor, o qual execra, não desviou de seus adversários. No caminho, banalizou diversos comportamentos tão bem documentados a ponto de não fazer falta que os detalhemos: a vulgaridade, a ganância, as propostas racistas e sexistas, a glorificação da violência, a mentira generalizada. Ao mesmo tempo, medidas preocupantes se disseminaram no lado democrata. E sua lista também é longa: questionamento do voto popular quando produz um resultado que não lhe convém; olhar acrítico e beato da história dos Estados Unidos até o dia maldito em que a eleição de Trump estragou tudo; glorificação de alianças militares ocidentais que de repente se tornaram “progressistas” pelo único motivo de o atual presidente proclamar “America First” (“América em primeiro lugar”), enaltecimento das agências de pesquisa por incomodarem a Casa Branca fazendo vazar na imprensa informações (e conversas telefônicas) que comprometem o presidente; por fim, celebração dos grandes meios de comunicação privados, intocáveis até que Trump se irritasse com eles afirmando que sua atividade se resume à produção de fake news.
“Assassinos, há muitos”
Em novembro de 2016, 22% dos brancos sem diploma, que haviam votado em Obama nos pleitos presidenciais de 2008 e 2012, penderam para o lado republicano.3 Como os partidários de Hillary Clinton não podiam acusar de racismo esses eleitores que haviam escolhido duas vezes um candidato afro-americano, explicaram seu abandono por meio do sexismo, ou da ingenuidade dos iletrados, mais fáceis de serem manipulados pelas notícias falsas de origem russa por serem incultos. A ideia de que as políticas de livre-comércio destrutivas implantadas pelos democratas e seu fechamento em uma bolha sociológica de seres urbanos graduados e esnobes teriam desempenhado um papel pelo menos tão importante nessa reviravolta não os atormentou por muito tempo.
Essa miopia social não é só eleitoral. Quando os primeiros episódios da série Roseanne – cujos personagens principais eram operários, empregados, trabalhadores rurais, em vez de designers gráficos, jornalistas ou professores de escrita – conseguiram uma enorme audiência, a presidente do canal ABC confessou sua perplexidade: “Até o presente, havíamos passado bastante tempo prestando atenção na diversidade em termos de cor, religião e gênero. Mas não havíamos pensado tanto na diversidade econômica. O sucesso de Roseanne nos lembra que há muita gente que não se vê muito na televisão”.4 Foi necessário então que Trump vencesse, aproveitando-se de um ressentimento popular contra as “elites” intelectuais, para que produtores e roteiristas saíssem de seu torpor criativo.
No entanto, esse tipo de lucidez dura pouco. Normalmente, as classes médias altas instruídas e urbanas, que votam nos democratas, em particular em Nova York e na Califórnia, insistem no argumento de que os brancos pobres e sem diploma apoiam cada vez mais Trump como desculpa para se desinteressar completamente por eles. De seu lado, o presidente se importa tão pouco com os pobres quanto os que o criticam. Nesse ponto, no mínimo imita o comportamento de seu predecessor: Obama se proclamou solidário ao proletariado afro-americano, embalou-o com símbolos e belas palavras, mas nunca combateu a ordem econômica que o destrói.
Preocupados em “tirar Trump”, milhões de norte-americanos se contentariam com qualquer um – e qualquer coisa – para atingir seu objetivo. Se Trump defende alguém, eles viram os procuradores; se combate alguma coisa, viram os advogados. A prova disso surgiu em 5 de fevereiro de 2017, quinze dias apenas após sua chegada à Casa Branca. Na Fox News, o novo presidente foi então interpelado pelo apresentador ultraconservador Bill O’Reilly, que o culpou por não condenar Vladmir Putin, “um assassino”, segundo ele. O presidente respondeu com calma: “Assassinos, há muitos. Nós mesmos temos muitos. O que você acha? Que nosso país é tão inocente?”.
Logo em seguida, a senadora democrata Amy Klobuchar, atual candidata às primárias de seu partido, se mostrou indignada pelo fato de o presidente dos Estados Unidos ter ousado comparar a malvada Rússia a seu virtuoso país. E o New York Times, que, com os canais CNN e MSNBC, faz papel de estação militante da fração centrista do Partido Democrata, proclamou seu temor em um editorial com patriotismo inflamado: “Afirmar a superioridade moral e política dos Estados Unidos sobre a Rússia não era até então uma tarefa difícil para os presidentes norte-americanos. Mas Trump, em vez de relembrar a excelência norte-americana, pareceu apreciar a brutalidade de Putin, sugerindo que a América se comporta da mesma maneira”.5 A analogia escandalizou tanto Nancy Pelosi, atual presidente democrata na Câmara dos Representantes, que ela pediu imediatamente ao FBI que investigasse as finanças do novo presidente para garantir que o governo russo não o havia chantageado. Embora muito inteligente, ainda hoje ela repete sem parar: “Com Trump, todos os caminhos levam a Putin”.
Embora não reste muita coisa do “Russiagate” desde que o procurador Robert Mueller entregou seu relatório, na primavera de 2019, a perseguição (infrutuosa) ao agente do inimigo emboscado na Sala Oval obcecou os democratas – e a mídia – durante os dois primeiros anos dessa presidência.6 Criou um clima paranoico que indiretamente fez o orçamento militar norte-americano (US$ 738 bilhões) não parar de aumentar, graças ao apoio de uma maioria esmagadora de parlamentares dos dois partidos (o senador Bernie Sanders constitui uma das raras exceções). E a ideia de uma “democracia norte-americana atacada por Putin” – um crime muitas vezes comparado ao ataque de Pearl Harbor pelo Japão imperial em 1941 – tornou-se a religião oficial para a maioria dos adversários de Trump. A democracia norte-americana teria, no entanto, problemas maiores que algumas contas falsas no Facebook de impacto irrisório: o atual presidente venceu em 2016 com 3 milhões de votos a menos que sua rival, e um de seus concorrentes declarados este ano é outro bilionário nova-iorquino, ainda mais rico do que ele: Michael Bloomberg.
A ala moderada do Partido Democrata e seus difusores midiáticos basearam sua cruzada antirrussa nos elementos mais militaristas e securitários da sociedade. Como salienta quase sempre o jornalista Glenn Greenwald, a quem devemos – tanto quanto a Edward Snowden, Chelsea Manning e Julian Assange – o fato de conhecermos melhor a extensão tentacular da espionagem norte-americana, “é quase impossível assistir à MSNBC ou à CNN sem ser importunado por ex-generais ou agentes da CIA ou do FBI, que trabalham agora como comentaristas contratados dessas redes, ou até como repórteres”.7 Os democratas moderados não têm mais nenhum escrúpulo em elogiar os serviços de informação que, todavia, ficaram famosos pelo assassinato de oponentes políticos e pela organização de golpes de Estado no exterior. Veem neles ilhotas de “resistência” contra um presidente autocrático. Fora isso, não foi um analista da CIA que, em agosto passado, vazou sua conversa telefônica com um chefe de Estado estrangeiro, no caso o presidente ucraniano? Submetido por essa razão a um procedimento de impeachment, Trump tem alguns motivos para criticar as tentativas de desestabilização política orquestradas pelo “Estado profundo”. Mas devemos nos alegrar ou, em vez disso, preocupar-nos com a ideia de que um eventual presidente Sanders não seria preservado disso?8
Não contentes em inculcar em seus partidários o amor pelos serviços de informação, os líderes do Partido Democrático não param de tecer elogios aos ex-presidentes republicanos, a fim de apontar o contraste entre estes e seu estranho sucessor. Joe Biden inclusive concedeu uma medalha ao casal Bush para saudar seu engajamento em favor dos ex-combatentes – ao menos aqueles que, imagina-se, voltaram vivos das guerras do Iraque e Afeganistão. Já Michelle Obama proclamou que adora George W. Bush, “um homem maravilhoso” (Today, NBC, 11 out. 2018). O termo “Trumpwashing” se generalizou desde então para evocar a glorificação pela esquerda dos elementos mais detestáveis da direita norte-americana, desde que tenham um dia criticado Trump ou que Trump os tenha atacado. Até a memória de Ronald Reagan está se aproveitando dessa disposição democrata de embelezar o passado, por mais paradoxal que seja o fato de a política externa norte-americana dos três últimos anos ter sido, até o presente, bem menos mortífera que a das décadas passadas.
Duas opções opostas
Uma estratégia de desengajamento internacional seria, contudo, popular em um país onde, após 11 de setembro de 2001, o “combate pela democracia” justificou a intervenção ou a manutenção em operação de 240 mil soldados em 172 países e territórios – com, como se viu, um orçamento militar anual que excede os US$ 700 bilhões. O fato de o assassinato do general iraniano Qassim Suleimani, embora executado sem dificuldades, não ter beneficiado o presidente Trump confirma a seu modo a rejeição da população norte-americana às “guerras sem fim”. Mas, quase sempre, os candidatos democratas se apresentam como os restauradores de uma ordem mundial, comercial e estratégica desordenada há três anos. Joe Biden, em particular, defende os tratados de livre-comércio, deseja a manutenção de um contingente norte-americano no Iraque e glorifica a Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan). E, em um artigo categórico, do tipo daqueles que líamos no auge da Guerra Fria, conclamou uma política frontal de oposição à Rússia, a fim de “defender a democracia contra seus inimigos”.9
Por que não ir ainda mais longe? Um editor do New York Times, próximo da direita israelense e partidário exaltado de todas as intervenções militares dos Estados Unidos – incluindo aquelas às quais haviam finalmente renunciado –, propôs que os democratas complementem as falhas da Casa Branca e se tornem o partido do império. Cultivando em certa medida o paradoxo, estimou que a política de “retirada” e de “ingenuidade” de Trump, em particular no Oriente Médio e no Extremo Oriente, teria aberto a seus adversários políticos a possibilidade de eles se tornarem os únicos profetas da pax americana contra a Síria, a Rússia e a Coreia do Norte.10
A fração progressista do Partido Democrata não parece desempenhar esse papel. Elizabeth Warren propõe, como Sanders, retirar todas as tropas norte-americanas do Oriente Médio e Afeganistão. E, longe de fazer sistematicamente oposição a Trump, o senador Sanders saudou há um ano seu reencontro com o presidente norte-coreano, Kim Jong-un: “Se Trump conseguir livrar esse país de suas armas nucleares, isso será ótimo, e desejo-lhe boa sorte” (CNN, 25 fev. 2019). Alguns meses depois, consciente de que a veemência sistemática da oposição deles ao presidente republicano permitiria aos amigos de Joe Biden dissimular sua recusa às transformações estruturais que a sociedade norte-americana pede, acrescentou: “Se passarmos nosso tempo atacando Trump, os democratas vão perder” (Town Hall, Fox News, 15 abr. 2019).
A questão que se coloca a eles hoje é mais saber o que podem ganhar. Os candidatos centristas justificam a moderação de suas propostas por meio do desejo de não assustar os eleitores desejosos de acabar com as excentricidades de Trump, mas não a ponto de virar a mesa. Consideram que o status quo cada vez mais aceitável diante dos resultados econômicos e dos rumos da Bolsa de Valores não parece advogar em favor de uma mudança de rumo. Sanders e, em menor medida, Warren estimam, pelo contrário, que o ódio ao presidente atual fará que, se vencerem as primárias, propostas radicais sejam aceitas por camadas sociais que as recusariam em tempos de normalidade. Ao mesmo tempo, esperam eles, outros eleitorados, desmobilizados porque não acreditam na política, talvez retornem às urnas se lhes for oferecida a perspectiva de uma verdadeira mudança (medicina socializada, dobro do salário mínimo, revolução ecológica), e não apenas a de um presidente que restauraria a América de três anos atrás. A escolha entre essas duas opções democratas é no mínimo tão importante quanto a da eleição do dia 3 de novembro próximo.
*Serge Halimi é diretor do Le Monde Diplomatique.
1 Debate democrata em Los Angeles, 19 dez. 2019.
2 Ler “Le petit peuple de George W. Bush” [O pequeno povo de George W. Bush], Le Monde Diplomatique, out. 2004.
3 Sabrina Tavernise e Robert Gebeloff, “They voted for Obama, then went for Trump. Can Democrats win them back?” [Eles votaram em Obama, em seguida em Trump. Conseguirão os democratas conquistá-los de volta?], The New York Times, 4 maio 2018.
4 John Koblin e Michael M. Grynbaum, “‘Roseanne’” reboot sprang from ABC’s heartland strategy after Trump’s victory” [Reboot de Roseanne floresce na estratégia central da ABC após a vitória de Trump], The New York Times, 29 mar. 2018.
5 “Blaming America first” [Culpando a América primeiro], The New York Times, 7 fev. 2017.
6 Ler Aaron Maté, “Un cadeau des démocrates à Donald Trump” [Um presente dos democratas a Donald Trump], e Serge Halimi e Pierre Rimbert, “Tchernobyl médiatique” [Chernobyl midiática], Le Monde Diplomatique, maio 2019.
7 Glenn Greenwald, “The Inspector General’s report on 2016 FBI spying reveals a scandal of historic magnitude: not only for the FBI but also the US media” [O relatório de inspetor-geral sobre a espionagem do FBI de 2016 revela um escândalo de magnitude histórica: não só para o FBI, mas também para a mídia dos EUA], The Intercept, 12 dez. 2019. Disponível em: <https://theintercept.com>.
8 Ler Michael Glennon, “Aux bons soins de la CIA…” [Aos bons cuidados da CIA…], Le Monde Diplomatique, jul. 2018.
9 Joseph R. Biden Jr. e Michael Carpenter, “How to stand up to the Kremlin. Defending democracy against its enemies” [Como enfrentar o Kremlin. Defendendo a democracia contra seus inimigos], Foreign Affairs, Nova York, jan.-fev. 2018.
10 Bret Stephens, “Will Democrats become born-again neocons?” [Os democratas vão se tornar neoconservadores renascidos?], The New York Times, 24 out. 2019.