E, agora, o Ucraniagate!
Hillary Clinton recentemente acusou Tulsi Gabbard, parlamentar democrata candidata nas prévias para as eleições presidenciais de 2020, de ser uma agente russa… É nesse clima que o Congresso iniciou um processo de impeachment contra o presidente Donald Trump. Uma conversa dele com seu homólogo ucraniano serve de prova de acusação
O descanso durou apenas um dia. Vinte e quatro horas depois de o promotor Robert Mueller ser ouvido pelo Congresso, encerrando o Russiagate, Donald Trump reavivou as esperanças de seus adversários democratas de destituí-lo do poder. Em 25 de julho, em uma conversa por telefone, ele pediu a seu homólogo ucraniano, Volodymyr Zelensky, que cooperasse na investigação lançada pelo secretário de Justiça, William Barr, para determinar as origens do Russiagate – o qual teria, segundo Trump, “começado na Ucrânia”. Ele também recomendou debruçar-se sobre o caso de Joe Biden, ex-vice-presidente dos Estados Unidos (2009-2017), que se tornou um concorrente sério desde que foi indicado à investidura democrata para a eleição presidencial de 2020. Tratava-se de determinar seu papel na demissão, em 2014, de um promotor ucraniano encarregado de investigar uma empresa de gás que empregava seu filho, Hunter Biden, pela sedutora quantia de US$ 50 mil por mês.
A troca entre Trump e Zelensky sobreveio logo após o congelamento da ajuda militar norte-americana à Ucrânia. Também coincidiu com manobras do advogado pessoal do presidente, Rudolph Giuliani, naquele país. Altos funcionários da Casa Branca e de seus serviços secretos se apropriaram dessa combinação de circunstâncias para concluir que Trump estava tentando negociar ajuda militar em troca de um favor político. Eles expressaram seus receios a um funcionário da CIA, que os denunciou. A agência entrou com uma queixa contra o presidente, desencadeando a investigação em vista de um processo de impeachment que atualmente assombra Washington.
O Ucraniagate compartilha muitas características do Russiagate. Mais uma vez, as recriminações contra o presidente emanam do aparato de segurança nacional. Mais uma vez, o caso se desenrola nos círculos do poder, com Trump e seus aliados republicanos de um lado e, do outro, uma aliança poderosa que reúne líderes democratas, grandes grupos de imprensa, chefes da segurança nacional e neoconservadores, todos considerando Trump um mau administrador do império norte-americano no mundo. Mais uma vez, uma mentalidade de Guerra Fria domina. Em 2016, os detratores do presidente acusavam os russos de ter conspirado para instalá-lo na Casa Branca; em 2019, eles suspeitam que ele tenha manobrado para favorecer sua reeleição, abandonando o aliado ucraniano à mercê do inimigo russo.
Mais uma vez, os democratas fazem uma aposta arriscada. Três anos atrás, o Russiagate prejudicou a campanha de Hillary Clinton, chamando a atenção para e-mails roubados dos democratas que expunham as torpezas de seu comitê nacional. Este ano, a queixa do denunciante incentiva o interesse pela probidade da família Biden. E, mais uma vez, um conflito interno às elites monopoliza o espaço político e midiático, eclipsando quase todo o resto, sobretudo uma primária democrata promissora.
Os dois casos se distinguem, no entanto, em um ponto crucial. Enquanto o Russiagate se baseava em uma conspiração imaginária, no caso ucraniano o presidente norte-americano agiu mesmo de forma antiética. Ainda que a família Biden tenha se envolvido em negócios obscuros na Ucrânia, ele não tem de pedir ao presidente do país que descubra mais a respeito. A acusação do denunciante de que Trump teria tentado “abusar de sua posição para servir a interesses pessoais” de fato merece uma investigação.
Uma conversa telefônica desconexa
Isso não justifica, porém, dar início a um processo de impeachment. Por enquanto, não há evidências de que o presidente tenha exercido pressões sobre a Ucrânia, adiando a ajuda militar para forçá-la a investigar os Biden. Trump já havia congelado essa ajuda no momento da ligação telefônica, mas o assunto não foi discutido durante a conversa com Zelensky. O governo ucraniano, aliás, só tomou essa decisão um mês depois. O senador democrata Christopher Murphy, que se encontrou com Zelensky em setembro, explicou à CNN (26 set. 2019) que o presidente ucraniano “não estabeleceu nenhum vínculo entre a interrupção do auxílio e os pedidos feitos por Giuliani”. Será difícil provar chantagem se a vítima alegar não ter conhecimento da conspiração nem do resgate.
A transcrição da ligação telefônica da Casa Branca não estabeleceu claramente o que Trump exige de Zelensky, com seu discurso desconexo abrindo a porta para a ambiguidade. Sobre os Biden, ele declarou ao seu homólogo: “Tudo que você puder fazer com o secretário de Justiça [William Barr] será muito apreciado”. Depois ele lhe pediu que “se debruçasse sobre a questão”. Mas Barr disse que nunca discutiu com o presidente a possibilidade de investigar Biden ou de entrar em contato com a Ucrânia,1 e Zelensky nega ter sido objeto de pressões para investigar Biden. Quanto à expressão “debruçar-se sobre a questão”, ela pode ser interpretada de diferentes maneiras, da mais benigna à mais condenável.
Além disso, o “favor” solicitado por Trump não diz respeito à família Biden, mas à colaboração do presidente ucraniano com as pesquisas de Barr sobre as origens da investigação russa. Por mais incoerente e desconexo que seja, Trump tem o direito de solicitar essa cooperação, tendo-se em mente que líderes ucranianos intervieram na eleição de 2016 para minar sua candidatura, revelando informações comprometedoras sobre seu diretor de campanha, Paul Manafort.
Vários cenários podem ser, portanto, vislumbrados. Talvez Trump tenha tentado chantagear a Ucrânia, talvez não. Talvez ele quisesse uma investigação sobre a interferência ucraniana na votação de 2016, ou sobre Biden, ou sobre ambos ao mesmo tempo. Um pedido referente a Biden seria incontestavelmente antiético, mas um pedido que tivesse a ver com o papel da Ucrânia seria legítimo. Se Trump quisesse usar a ajuda militar como um meio de pressão – sendo forçado a concedê-la por meio do Congresso –, ele certamente seria culpado de abuso de poder. Mas se ele tentou negociar um encontro que desejava (uma prerrogativa da Casa Branca), sua providência seria mais justificável.
Pode-se perguntar por que, em bases tão frágeis, os democratas optaram pela resposta mais extrema, a do impeachment. Dados todos os atos imorais e destrutivos cometidos diariamente por Trump, pode-se igualmente questionar as afirmações de Adam Schiff, eleito democrata na Câmara dos Deputados, que considera esses pedidos feitos por telefone como “a falta mais grave já cometida [pelo presidente]”.2
A explicação é simples. As elites de Washington raramente sofrem as consequências dos danos que causam à população. A situação é diferente quando os danos atingem outros membros do clube. Essa regra apareceu cruamente durante o escândalo de Watergate (1972-1974): o presidente Richard Nixon não foi vítima de um processo de impeachment por causa dos assassinatos em massa que ordenou no Vietnã, no Camboja e no Laos, mas por ter atacado o campo rival e ter tentado esconder isso. George W. Bush provavelmente poderia ter sofrido impeachment por ter invadido o Iraque se o crime contra a humanidade não tivesse recebido o apoio dos dois partidos.
Na era Trump, jornalistas e líderes democratas justificam sua “resistência” por imperativos de segurança nacional. Assim nasceu o Russiagate: por considerá-lo complacente com a Rússia, agentes de inteligência norte-americanos acusaram Trump de estar a serviço do Kremlin. O Ucraniagate também se origina no aparato de segurança nacional: o denunciante trabalha na CIA e suas fontes operam nas administrações irmãs, inclusive na Casa Branca. Uma das figuras-chave no caso não é outro senão o neoconservador John Bolton, demitido por Trump em setembro de 2019 do posto de conselheiro de Segurança Nacional. Bolton teria “ficado nervoso” ao saber do envolvimento de Giuliani em discussões com a Ucrânia, relata o Washington Post.3 Ele teria pedido a um de seus colaboradores que comunicasse suas preocupações aos advogados da Casa Branca.
Os temores não têm a ver apenas com a corrupção hipotética de Trump. É possível que “a Rússia tenha algo a ver com tudo isso”,4 preocupa-se Nancy Pelosi, presidente democrata da Câmara dos Deputados. Seu raciocínio? Ao suspender a ajuda militar norte-americana, Trump teria colocado a Ucrânia em perigo e, assim, encorajado a Rússia. Mas Barack Obama, ansioso por não embarcar em uma guerra desastrosa por procuração, também havia resistido às pressões dos altos líderes que o intimavam a fornecer ajuda militar à Ucrânia. Trump enfrentou as mesmas pressões, às quais foram acrescentadas acusações de indulgência e até de cumplicidade com a Rússia.
Ao optarem por atacar o presidente com um “escândalo” militar com cheiro de Guerra Fria, os democratas colocam em perigo a Ucrânia, a Rússia e suas próprias esperanças para 2020. Todos viram como a tentativa anterior terminou: três anos de rumores, falsos furos jornalísticos e uma investigação que finalmente desmentiu qualquer ideia de uma conspiração com Moscou. No entanto, seria necessário aprender com o Russiagate para poder esperar derrotar Trump em 2020. A publicidade midiática exagerada em torno desse pseudoconluio desviou a atenção das consequências desastrosas de seu mandato, tanto em âmbito nacional quanto internacional. E, quando o caso entrou em colapso, Trump pôde se pavonear de que estava certo desde o início.
Classes populares estão indiferentes
O Ucraniagate ainda poderia beneficiá-lo. Não se sabe se as suspeitas em relação a Trump e Giuliani são justificadas, mas o que foi comprovado até o momento é esmagador. Hunter Biden teve assento no conselho de uma empresa de gás ucraniana, apesar de não possuir experiência nesse país, e isso apenas alguns meses após o governo de seu pai ter apoiado um golpe que permitiu derrubar o governo de Kiev. Além disso, quando os democratas acusam Trump de usar o Salão Oval para fins pessoais, o presidente tem a faca e o queijo na mão para evocar a postura dupla deles. Para piorar a situação, a primeira aparição de Hunter Biden na mídia foi catastrófica: ele disse não ter feito nada de errado, embora reconhecesse que devia seus lucrativos envolvimentos profissionais a seu nome. Seu único arrependimento, explicou, foi ter avaliado mal os riscos que isso representava para as ambições políticas de seu pai. Os senadores republicanos passarão os próximos meses examinando a família Biden e denunciando a hipocrisia dos democratas. Depois provavelmente votarão pela absolvição do presidente – uma absolvição que Trump não deixará de apresentar como uma nova prova de sua magnificência e das manobras do “Estado profundo” democrata para criar barreiras a seu projeto de “fazer a América grande outra vez”.
Ao longo de todo o Russiagate, os interesses dos chefes da segurança nacional convergiram com os dos democratas neoliberais derrotados por Trump em 2016. A obsessão por uma teoria da conspiração permitiu que os caciques democratas evitassem a transformação de seu partido, uma transformação, no entanto, indispensável após a derrota de seu candidato contra um bilionário que afirma defender as classes populares. O Ucraniagate poderia produzir os mesmos efeitos e poluir a primária democrata. Em vez de falar sobre cobertura universal de saúde, educação, mudança climática, militarismo ou desigualdades sociais, o país corre o risco de se ver envolvido em um confronto que relega os cidadãos e suas preocupações a segundo plano. Portanto, os democratas correm o risco não apenas de se afastar dos eleitores, mas também de estragar suas melhores chances de alcançá-los.
Aaron Maté é jornalista.
1 “House launches Trump impeachment inquiry” [Câmara lança inquérito sobre impeachment de Trump], CNN, 26 set. 2019. Disponível em: <www.cnn.com>.
2 CNN, 25 set. 2019.
3 Greg Jaffe e Greg Miller, “At least four national security officials raised alarms about Ukraine policy before and after Trump call with Ukrainian president” [Pelo menos quatro chefes da segurança nacional dispararam alarmes sobre a política da Ucrânia antes e depois de Trump ligar para o presidente ucraniano], The Washington Post, 11 out. 2019.
4 MSNBC, 27 set. 2019.