Nós, mães e familiares de vítimas de terrorismo do Estado, dizemos não às audiências por videoconferência
“Jamais um torturado vai denunciar o seu torturador longe de autoridades competentes. A tortura não entra nas telas.” Veja a posição dos familiares de pessoas presas e sobreviventes do cárcere no terceiro artigo da série especial sobre a realização de audiências de custódia por videoconferência
Colocada em prática em todos os estados brasileiros em 2015, a medida que estabelece as audiências de custódia prevê que a pessoa acusada se apresente a um juiz ou uma juíza em até 24 horas do momento da prisão em flagrante. Com a proposta de redução das prisões provisórias e o combate e prevenção à tortura e violência policial, a audiência de custódia surge como um potencial meio de verificar quais foram as condições em que se deram a prisão em flagrante, identificando padrões de violência e seletividade criminal nas abordagens policiais.
A audiência de custódia gerou mudanças no encarceramento durante os cinco anos de sua aplicação, mas ainda precisa de aperfeiçoamento. Principalmente no contexto da pandemia do Covid-19, que contribuiu para o aprofundamento das diversas violações de direitos impostas às populações indígenas, negras, comunidades tradicionais e quilombolas e àquelas localizadas em territórios alvos preferenciais de terrorismo do Estado, bem como para a continuidade da seletividade penal. Além disso, favoreceu o fortalecimento da mobilização de atores institucionais que apoiam a realização das audiências de custódia por videoconferência.
A Iya Batia de Oxum do Ile Ase Opo Iya Olodoide, membra do Coletivo Nós por Nós, Amparar e Frente Estadual pelo Desencarceramento de SP relata: “Quem mora na periferia conhece bem como o Estado e a polícia nos violenta e nos exclui, nos mata, mata nossas crianças, mata nossos jovens, com a bala perdida ou aos poucos quando tira nossa oportunidade por causa da cor. Nos colocam como suspeitos por causa de onde moramos. Dentro do cárcere é ainda muito pior. Todo problema construído pela nossa sociedade aqui fora, está dentro do cárcere. O primeiro direito e princípio do homem que é a liberdade e defesa dele é tirado no ato da sua prisão. Porém, é tentado conservar o mínimo, a base para sobrevivência: que é o contato e a comunicação com os familiares, que é saúde, a saúde emergencial, que é a alimentação, a água. E isso em tempo de pandemia está sendo tirado, isso é tortura. Não podemos aceitar que o direito que nós temos de uma audiência presencial, como é a audiência de custódia, seja diferenciada. Porque jamais um torturado vai denunciar o seu torturador longe de autoridades competentes. A tortura não entra nas telas, a tortura não se vê na tv”.
Um instrumento a ser protegido no combate à tortura e ao racismo
De acordo com Priscila Serra, familiar de preso e membra da Frente Estadual pelo Desencarceramento do Amazonas, as audiências de custódias são um direito de toda pessoa presa, principalmente num país em que as abordagens policiais se caracterizam como violentas: “A gente vive num país onde as abordagens policiais são extremamente violentas, aqui no Amazonas, em qualquer outro lugar do país (e do mundo). A audiência de custódia é um direito de toda pessoa presa. Estar na frente de um juiz após sua prisão é extremamente importante. Toda pessoa tem o direito à defesa, e por mais que a pessoa não possa dizer, ou não possa dizer que foi agredida, que foi espancada, que foi torturada, com certeza um juiz consegue identificar um braço quebrado, um hematoma a mais ou se a pessoa tem problemas mentais. Estar na frente de um juiz é importantíssimo para esse combate às práticas torturantes. É importantíssimo para garantir o direito de defesa da pessoa. Nós não vemos como uma pessoa por vídeo possa dizer”.
Dessa forma, em nossa percepção, um objetivo não declarado das audiências de custódia é fazer com que o juiz e o promotor de “justiça” percebam que existe uma pessoa por trás daquele relato feito pela polícia militar no boletim de ocorrência e por trás do auto de prisão em flagrante delito produzido pelo polícia civil.
Além disso, em pesquisa realizada pela Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro foi revelado que entre os meses de setembro de 2017 e setembro de 2019, 38,3% das pessoas presas em flagrante relataram terem sofrido agressões por ocasião da prisão. Nesse quadro, 78,55% das pessoas que alegaram ter sofrido agressões se autodeclararam pretas ou pardas. De acordo com o Anuário da Violência elaborado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 75% das vítimas de letalidade policial são negras, no país onde 56% da população se declara negra. Para entender a importância da realização das audiências, ressalte-se que 80% (oitenta por cento!) das denúncias de tortura recebidas pela Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro no período de agosto de 2018 a maio de 2019 foram por meio das audiências de custódia.
Enquanto corpos negros são os alvos das prisões em flagrante e operações policiais e portanto os maiores usuários das audiências de custódias, por outro lado, temos um Judicário composto na sua quase totalidade por pessoas brancas. De acordo com pesquisa do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) de 2018, apenas 18% dos magistrados no Brasil se identificam como negros, em contrapartida aos 82% autoidentificados como brancos. Assim, o Judiciário pode ser considerado um dos espaços de preservação e ampliação das hierarquias raciais como pacto entre iguais, um dos lugares de maior poder exercido pela branquidade em nosso país.
Sobre as percepções do Judiciário em relação às audiências de custódia, para além da pandemia, sabe-se do desejo da magistratura de pôr fim às audiências de custódia. Os juízes não veem sentido em sua realização, e atuam no desenrolar das mesmas como se estivessem diante de um momento apenas para referendar a prisão realizada pela polícia militar e transformada em flagrante delito pela polícia civil. Prova inequívoca desse desejo e dessa percepção é a Ação Direta de Inconstitucionalidade ajuizada pela Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) contra o art. 19 da Resolução n. 329/2020 do CNJ, que veda a realização da audiência de custódia por meio de videoconferência. Concluímos que nada causa mais horror à alva e pura magistratura brasileira do que a hipótese de que aquele ser “encardido ou escuro” seja pessoa, assim como ele/ela, o juiz ou a juíza.
Nesse sentido, em junho de 2020, ativistas, coletivos e entidades vinculadas à Agenda Nacional pelo Desencarceramento, após ter tido notícia de que iria à votação no CNJ uma resolução para estabelecer as medidas a serem praticadas na realização de audiências e atos processuais virtuais, iniciaram a campanha: “Tortura não se vê pela TV” (#TorturaNaoSeVêPelaTV), em que especialmente familiares de presos, por meio das Frentes Estaduais pelo Desencarceramento, mobilizaram vários atores sociais para impedir que as audiências de custódia pudessem ser realizadas de forma virtual. Resultado de toda a pressão produzida foi o CNJ publicar, em 30 de julho de 2020, a Resolução 329, que não contemplava a realização de audiências de custódia virtuais.
Por que somos contra as audiências de custódia por meio virtual
Consideramos que abrir a possibilidade para a realização de audiências de custódia virtuais, ainda que durante a pandemia, configura grave retrocesso ao enfrentamento à tortura e ao racismo institucional no Brasil.
De acordo com D. Tereza, presidenta da Associação de Familiares e Amigos de Pessoas Privadas de Liberdade de Minas Gerais, articuladora da Frente Estadual pelo Desencarceramento de Minas Gerais e integrante da Rede Nacional de Mães e Familiares Vítimas de Terrorismo do Estado, para as audiências de custódia: “há uma resolução 213 do CNJ, que fala as perguntas que o juiz tem que fazer para o preso. Entre elas, perguntar à presa se ela está grávida, perguntar ao preso se foi dado a ele o direito de ligar para a família, para um advogado, se foi informado que ele poderia ficar em silêncio, dentre outras coisas. Mesmo lá com o preso presencial, muitas dessas perguntas não são feitas. As audiências de custódia servem também para o juiz ver que o preso foi torturado, que às vezes ele está machucado, para garantir que ele faça um exame de corpo de delito”.
Mesmo nas audiências de custódia presenciais a pessoa acusada, não é escutada efetivamente, e nem mesmo são feitas as perguntas previstas na Resolução 213/ 2015 CNJ. Afirmamos isso a partir da vivência e escuta dos infindáveis relatos de abusos e violências realizadas pelas polícias, simplesmente ignorados pelo Judiciário nas audiências de custódia presenciais, com uma pessoa sentada exatamente na frente do juiz ou juíza. Se não faltar à pessoa um braço ou uma perna, não houve tortura ou abuso assim como apertar as algemas a ponto de cortar ou marcar os braços, deixar por horas dentro do camburão, permanecer em uma carceragem imunda sem banheiro ou acesso à comida.
Temos uma cultura tão punitiva que é consolidado no imaginário social das pessoas que são submetidas ao sistema de justiça criminal que denunciar tortura é prejudicial ao réu ou ré no processo, e infelizmente é bem verdade. Os juízes e juízas em regra se alteram e tomam a defesa do testemunho indubitável da polícia em sua atuação e até chegam a atribuir o relato a uma mera estratégia para se livrar da acusação penal.
Efetivamente em nosso país, nenhuma garantia fundamental no processo penal é respeitada, e ainda, quando se alega qualquer violação, há que se demonstrar prejuízo, como se o fato de uma pessoa ser submetida a um processo penal não fosse por si só um imenso prejuízo.
As Recomendações nº 62 e nº 78 emitidas pelo CNJ relativas a condutas que deveriam ter sido adotadas para reduzir a aglomeração foram interpretadas de forma restritiva, e como se não bastasse já se desenha um entendimento de que aqueles que alcançaram a prisão domiciliar em virtude da pandemia deveriam retornar à unidade prisional, pois o momento mais agudo já havia terminado e está tudo sobre controle.
É possível garantir os direitos das pessoas presas durante a pandemia
Outra ressalva apresentada na votação do pleito na reunião do CNJ no dia 24 de novembro de 2020 foi em relação aos estados em que os tribunais retomaram suas atividades. No entanto, ainda assim, a preocupação com um eventual retrocesso permanece, “porque papel aceita tudo”, e não há nada que não possa ser justificado por juízes que não possuem apreço pelos direitos e garantias do processo penal.
Precisamos lembrar que nove estados já estavam realizando audiências de custódia presenciais, seguindo todas os protocolos de segurança, como pontuou Sylvia Dias, representante da Associação para a Prevenção da Tortura no Brasil, na 322ª Sessão Ordinária do CNJ, onde foi votado – presencialmente – que as audiências de custódia poderiam ser realizadas virtualmente. Isso muito nos informa sobre como o Poder Judiciário pensa sobre si mesmo, tratando a Justiça como função essencial apenas quando se trata de garantir os “interesses da magistratura”, operacionalizando discursos “jurídicos” para desconsiderar certas humanidades, e engendrar a lógica supremacista branca que funda o sistema de Justiça.
A experiência de estados que já retomaram as audiências presencialmente foi retratada em matéria publicada pelo Escritório das Nações Unidas de Drogas e Crime, que reconhece a importância da realização presencial das audiências, lembrando que estas devem ser realizadas mediante a adequação de salas, garantia de distanciamento e adoção de medidas sanitárias, como aferição de temperatura e uso de máscaras. Um dos exemplos dados pela reportagem é o do Pará, no qual o Tribunal de Justiça regulamentou a atividade, proibindo que essa fosse realizada virtualmente. Em Marabá foi criada a chamada “sala limpa”, um ambiente preparado justamente para a audiências de custódia, que passa por desinfecções frequentes.
Assim, o único sentido que alcançamos encontrar no pleito pela virtualização das audiências de custódia é o absoluto desprezo do Judiciário de nosso país aos negros, indígenas, migrantes e pobres que lotam as cadeias sem sequer terem sido sentenciados, e ainda, a certeza de que não se tratam de “pessoas humanas” e portanto não são alcançados pela proteção da lei em relação à sua vida, integridade física e demais direitos e garantias fundamentais, pilares de uma democracia.
Por isso, Alessandra Felix, familiar de preso e articuladora da Frente Estadual pelo Desencarceramento do Ceará e integrante da Rede Nacional de Mães e Familiares Vitimas de Terrorismo do Estado, afirma: “CNJ, de todos os retrocessos pelos quais nosso país atravessa, não sejam vocês, os conselheiros das leis a apoiar a tortura moderna, ou seja, as audiências por videoconferência. A violência do castigo cruel submetido ao corpo dos internos, a subnutrição e o desesperançar nas leis, talvez não fique visível ao olho digital. No entanto, as doenças internas, a fome, a sede e o direito a manifestar algo que não pode ser dito do lado de policiais penais nunca serão identificados por uma audiência virtual. Nunca serão identificados por uma audiência virtual. Repito, nunca serão identificados por uma audiência virtual”.
Eliene Vieira, vítima e mãe de vítima de terrorismo do Estado, integrante da Rede Nacional de Mães e Familiares Vítimas de Terrorismo do Estado, familiar de preso, articuladora da Frente Estadual pelo Desencarceramento do Rio de Janeiro e das Mães de Manguinhos reitera:
“Os efeitos físicos e psicológicos da tortura são imensuráveis. Os sobreviventes e suas famílias ainda sofrem com os impactos dos maus tratos. Esses sofrimentos se estendem à mães, esposas, filhos e outros parentes. E essa prática histórica, violenta e racista por parte dos agentes do Estado é comum nas favelas e periferias do Rio e do Brasil. E a não responsabilização dos mesmos e suas respectivas cadeias de comando faz com que as pessoas não denunciem. Nós, mães e familiares de vítimas de terrorismo do Estado dizemos não às audiências por videoconferência”.
Agenda Nacional pelo Desencarceramento (AGENDA) é uma articulação nacional composta de centenas de coletivos e organizações que atuam na defesa dos direitos de pessoas privadas de liberdade. A AGENDA se articula por meio das Frentes Estaduais pelo Desencarceramento, elas articulam movimentos e têm como protagonistas as familiares de pessoas presas e sobreviventes do cárcere. Para saber mais, acompanhe as redes sociais da AGENDA: @desencarcerabrasil.