Nosferatu: quando o Mal é o outro
Resenha crítica da releitura da obra Nosferatu, do autor Robert Eggers
Ler Drácula é como ler a síntese da angústia e do medo. Nosferatu (2024), releitura do romance realizado por Robert Eggers, que honra o legado dos filmes que o precederam e da obra de Bram Stoker ao apresentar um vampiro monstruoso e ameaçador, além de paisagens escuras e cinzentas, evocando morte e doença.

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Mas há um subtexto no livro de Stoker presente em todas as adaptações da obra que quase sempre passa desapercebido pelos leitores e telespectadores: a forma como as sociedades ocidentais enxergam o mal e como este é relacionado ao outro, o estrangeiro, aquele que vem de um lugar distante e que pode destruir todos os valores da sociedade.
Quando Stoker escreveu Drácula no final do século XIX, a Inglaterra alcançava o ápice do desenvolvimento econômico como líder da Revolução Industrial. O capital espalhava-se por todo o mundo sob a forma imperialista repartindo o globo em possessões sob tutela das grandes potências ocidentais. Lênin explicou esse processo no seu famoso panfleto Imperialismo: etapa superior do Capitalismo e Hobsbawm aprofundou suas causas e consequências em A Era dos Impérios. A indústria automobilística dava seus primeiros passos e a demanda por borracha alcançava cifras enormes. Isso fez com que regiões periféricas como a Amazônia se tornassem um ponto na grande teia do capitalismo imperialista ao fornecer látex para a famigerada indústria da borracha, à custa da morte de centenas de milhares de nordestinos, ribeirinhos e indígenas.
Isso causou uma mudança completa em todo o panorama mundial. Populações inteiras viram-se forçadas a migrar para as chamadas regiões centrais do capitalismo: Canadá, EUA e Europa Ocidental. Essa leva de imigrantes pobres tornava-se mão de obra barata para as indústrias e aumentava a pressão urbana nas grandes cidades. Tais imigrantes também eram vítimas da desconfiança e preconceito das classes medias e altas dos países que os recebiam. Portadores de uma cultura vista por estas elites como inferiores, e como possíveis sublevadores da ordem social constituída. Se durante o capitalismo escravagista esse estigma de inimigo público era direcionado aos escravos, com o industrialismo essa marca de possíveis destruidores dos valores e da ordem era direcionada aos trabalhadores pobres vindos das zonas rurais ou de regiões periféricas.
É dentro desse horizonte de eventos que podemos compreender a figura de Nosferatu, ou Drácula, de Stoker: vive em regiões distantes, muito mais próximas da Ásia que da Europa ocidental, é habitada por um povo supersticioso, cuja cultura é indecifrável para a mentalidade racionalista dos heróis do livro — ingleses de classe média, protestantes anglicanos e instruídos. A figura de Orlock ou Drácula é uma monstruosidade que tenta migrar para a Inglaterra e subverter toda a ordem social, trazendo o mal, a peste e o caos.
Tudo o que as elites dirigentes inglesas temiam. Tudo o que as elites dirigentes ocidentais ainda temem dos imigrantes pobres ao redor do globo terrestre.
O Mal é sempre o outro.
Ricardo Kaate Lima é doutor em Ciências Sociais pela UNESP (Interpretações da Amazônia: o pensamento conservador em Arthur Cézar Ferreira Reis e Leandro Tocantins), autor de O Fim de Todas as Coisas (Porto de Lenha, 2021), vencedor do Prêmio Cidade de Manaus em 2022 e autor de A Lança de Anhangá (Cachalote, 2024).