Notas sobre o ressurgimento político da poesia
Diante do absurdo, da barbárie e da tirania, a arte sempre respondeu à altura, sempre gritou contra a opressão de Estado, seja colonial ou militar. Escritoras e escritores fizeram da poesia um espaço de enfrentamento e uma técnica de despiste. Não é de hoje que a poesia funciona como imaginário reativo, já que constrói imagens que reagem a imagens
Quando os pactos coletivos se rompem, o primeiro passo talvez seja reconhecer suas rachaduras. Por isso, comecemos por admitir nossa ocidentalidade baseada na visão, essa faculdade humana que a socióloga nigeriana Oyèrónkẹ́ Oyěwùmí definiu como um privilégio: “[o] termo ‘cosmovisão’, usado no Ocidente para resumir a lógica cultural de uma sociedade, capta o privilégio ocidental do visual”. Ninguém melhor do que uma pensadora africana para questionar as fragilidades do Ocidente, cujas bases continuam sendo – até hoje! – coloniais e neocoloniais. De fato, ainda precisamos nos esforçar para não ver o Outro a partir de uma imagem limitada e limitante, reduzida a personas enredadas em imaginários racializados, generificados, sexualizados, classistas e fronteiriços. Pensada dentro desse movimento hegemônico da História, a imagem é um mero produto do direito de ver (ainda que, como sabemos, ela não seja monopólio da visão).
A capacidade de produzir imagens, que fundou e ancorou o nosso pensamento, é a mesma que, agora, está gerando sofrimento e angústia diante das estampas de horror que temos visto surgir dentro da nossa democracia (e que nos chegam pelo jorro imparável das redes sociais): uma limpeza étnica na Faixa de Gaza, as vidas perdidas na Ucrânia e na Rússia, as ditaduras, guerras e matanças na África, a onda de extrema direita ocupando os parlamentos do mundo; um presidente dos Estados Unidos que demite e anula os seus opositores, que chantageia os países com que faz fronteira e persegue os estrangeiros em situação irregular, que sai de acordos globais e desativa órgãos fundados para o bem-estar coletivo, que intervém em guerras sem convocar o chefe do território invadido – e, completando a cena, uma Europa sem coragem para dizer o que deve ser dito, para fazer o que deve ser feito, uma Europa presa ao pacto tácito das economias imperialistas e protecionistas.

Diante do absurdo, da barbárie e da tirania, a arte sempre respondeu à altura, sempre gritou contra a opressão de Estado, seja colonial ou militar, levantou nomes como Yannis Ritsos (Grécia), Luandino Vieira (Angola), Maria Teresa Horta (Portugal), Ana Blandiana (Romênia) ou Ferreira Gullar (Brasil) – e destaco aqui alguns dos muitos exemplos de escritoras e escritores que fizeram da poesia um espaço de enfrentamento e uma técnica de despiste. Dito de outra maneira, não é de hoje que a poesia funciona como imaginário reativo, já que constrói imagens que reagem a imagens.
O fato novo talvez seja conjuntural e estruturante: estamos diante de uma tecno-opressão. O fenômeno é conjuntural porque está em franco desenvolvimento e estruturante na medida em que criações como a Inteligência Artificial e as próprias redes sociais chegaram para se entranhar na vida e redesenhar o futuro. Não me canso de pensar que o atual momento tecnológico, geopolítico e econômico estaria – e talvez esteja – estruturando uma arte tecnoexpressionista. Já veremos. Seja como for, o que me chama a atenção nesse panorama é o sintomático retorno do poético como linguagem de front nos ecossistemas digitais. Na última semana, pelo menos três intelectuais que acompanho resolveram voltar à poesia para confrontar as práticas e discursos neofascistas. E elas não tomaram essa decisão de forma impensada: há pessoas atentas ao despotismo tecnológico e plutocrático.
Uma dessas pessoas foi Márcia Tiburi. Atenta aos mecanismos digitais e percebendo a queda no alcance de suas postagens, a filósofa e escritora começou a fazer no Instagram o que ela denominou como “trânsito poético”: no lugar de vídeos com reflexões filosóficas contundentes, Márcia lê trechos de obras literárias que, com força poética, cifram a realidade e mandam uma mensagem ainda mais potente (porque camuflada e, ao mesmo tempo, escancarada). Isso me lembra o que fizeram, por exemplo, Chico Buarque, Cassandra Rios, Rita Lee e Gilberto Gil ao longo da Ditadura Militar brasileira. A diferença é que, agora, não há militares fardados avaliando os produtos da contracultura. Eles foram trocados por trabalhadores de camisa azul e calça jeans, profissionais descolados que passam horas no computador controlando funções matemáticas com base nos interesses de uma pequena tecnocasta. Sim, a poesia ressurge como arma contra os algoritmos, essa ‘tecnodivindade’ que, edificada fora do nosso controle, nos tem controlados e controladas todos os dias.
E vale lembrar: sem deixar de ser linguagem, a poesia também é imagem – e não é por acaso que ela ganha força nas redes sociais, um território que privilegia a expressão visual. Além disso, a poesia é imagem não apenas quando abre mão do signo verbal, como propuseram os movimentos concretista e experimental. Ela é imagética também quando instaura uma perspectiva e atiça, na mente de quem lê, um horizonte visual até então adormecido. Ao mesmo tempo, o fato de ser visual não significa que a poesia deixe de ser emocional. A imagem é parte fundamental e agenciadora das emoções que um poema evoca.
Uma das cenas líricas que mais me marcaram nesses tempos tenebrosos está no poema Congresso Internacional do Medo, de Carlos Drummond de Andrade: o eu lírico deixa de cantar o amor (e o ódio, que, aparentemente, não existe) e opta por cantar o medo de todas as pessoas e instituições diante de uma força tirana que, também por medo, não é nomeada no poema. Assim estão a Europa e outros países dependentes dos Estados Unidos, governos em cujos “túmulos nascerão flores amarelas e medrosas” .
Embora essa lógica pendular opressão-expressão seja tão antiga quanto causal, há uma pergunta importante a fazer: dentre tantas expressões estéticas, por que a poesia como linguagem? E esta questão desdobra-se em outra: o que pode a poesia diante de tudo isso?
Em uma entrevista – até então inédita – que deu à jornalista e escritora Rosa Freire d’Aguiar, Júlio Cortázar afirmou sem hesitar: “Nenhum poeta pode derrubar um tirano. O tirano tem que ser derrubado a tiros de canhão”. Mas, em seguida, o escritor argentino emenda esse raciocínio cético: “O poema ou o romance não servem. Mas são componentes que, por acumulação, por infiltração na consciência popular, contribuem para fabricar a pólvora que se colocará no canhão”.
O comentário de Cortázar é honesto e genuíno, sobretudo para um exilado político. Há quem – com razão – duvide do papel transformador da poesia. Entretanto, voltemos a Antonio Cicero, homem grande das nossas letras e cujos ensaios li recentemente, com grande prazer. Em O eterno agora, esse poeta e pensador nos lembra que duas das características mais basilares da poesia são a negociação e a insubmissão: “A poesia não pode nem simplesmente recusar a linguagem nem simplesmente submeter-se à linguagem prática ou cognitiva” (2024, p.71). Para empreender essa recusa do racional, o poético se faz em negociação com a linguagem verbal para desestruturá-la, para implodir os seus significados estabelecidos e, assim, reorganizar a cadeia do simbólico – uma cadeia que certos discursos iliberais querem nos meter goela abaixo. É nesse sentido que, para Jorge Luis Borges, “los versos son felices porque son ambíguos”, ou seja, a ambiguidade pode se construir com linguagem para, ao mesmo tempo, destruí-la a fim de instaurar novas formas de ver – eis a efetividade de um poema.
Também é Borges (1980) quem nos lembra: inventar e descobrir têm a mesma origem etimológica. Na poesia, esses verbos compõem a dupla face de uma só força: um bom poema inventa imagens que nos levam a descobrir e a confrontar outras imagens; ao mesmo tempo, o texto poético pode des/cobrir imagens até então adormecidas para inventar (em nós, leitores e leitoras) maneiras de meter o dedo nas feridas do mundo – que são também as nossas feridas, daí a dor que certos versos nos provocam.
Num outro nível do problema, poderíamos partir de uma leitura mais psicanalítica: da mesma maneira que o sonho, para se concretizar, precisa “enganar” a censura, a linguagem da poesia – porosa, ambígua e plástica – é das poucas que consegue atravessar os mecanismos de censura sem ser vista. E de quais cerceamentos estamos falando neste caso? Se lembrarmos que a singularidade da política neofascista está em atuar e crescer sobretudo no campo tecnológico, teremos que admitir a existência de uma tecnocensura: os algoritmos são manipulados para definir o que aparece e o que não, o que é lido e o que não, o que fica, por fim, no limbo do silêncio. Eu sinceramente me assusto ao escrever sobre estas questões e lembrar que o homem mais rico do mundo é também o ministro de um país poderoso – ele encarna o pior da extrema direita e, para piorar, detém poder triplicado: o capital tecnológico, o capital financeiro e o capital político.
O horror está posto. E nós olhamos para ele de pés e mãos atadas, incapazes de intervir significativamente. Seria transcendente se conseguíssemos organizar uma saída coletiva das plataformas sociais, mas essa proposta é utópica demais para a pulsão narcísica e as demandas de abandono que nos comandam. Diante da nossa impotência para frear os pactos da tecnotirania, a insubmissão da poesia nos permite gritar, as suas dobras e ambiguidades viabilizam uma leitura mais completa e complexa das contradições do mundo, as suas imagens possibilitam produzir a pólvora que colocaremos nos canhões.
Louvemos a tudo o que é oposto aos imperativos tecnológicos da celeridade, da certeza, do gozo contínuo, do reducionismo e do simplismo – a poesia abarca o contrário de tudo isso: ela é lentidão, ambivalência, gozo e não gozo, amplitude e complexidade, ela é alimento para o ataque. Por isso, a chave está nas nossas mãos: devemos ler poesia mais e mais, colocar a poesia no centro da nossa boca, do nosso debate, do nosso exercício de cidadania, convocar o poético para burlar, denunciar e ridicularizar a barbárie.
A morte está por todos os lados, mas, com a ajuda da poesia, manteremos a nossa artilharia em funcionamento.
Paulo Geovane e Silva é poeta, psicanalista, tradutor e editor. Tem doutorado em Literatura pela Universidade de Coimbra (Portugal). É autor dos poemários caída (Letramento, 2018) e o homem à espera de si mesmo (Mosaico, 2021), além de ter poemas, contos, crônicas e ensaios publicados em revistas brasileiras. Vive em Madri.
Recomendações:
Para melhor defender e falar de poesia, preciso convocá-la. Por isso, deixo aqui algumas recomendações de leitura:
- Poema “Congresso Internacional do Medo”, de Carlos Drummond de Andrade.
- Memorial Poético dos Anos de Chumbo, acervo digital com uma vasta coleção de poetas e poemas escritos na e sobre a Ditadura Militar brasileira.