Nova edição de “Cartas a Theo” expande mundo de van Gogh
Livro com cartas do pintor holandês ajuda a desconstruir o mito de artista torturado e apresenta van Gogh mais humano
“O pintor do futuro é um colorista como ainda não houve”
Vincent van Gogh, Cartas a Theo (Editora 34)
Vincent van Gogh é um dos artistas mais famosos da história. Agora, 134 anos depois de sua morte, seus fãs brasileiros podem ter contato com um novo van Gogh, para além das pinturas, por meio de cartas que ele escreveu e que foram compiladas em “Cartas a Theo” (R$ 119,00), lançamento da Editora 34.
“Cartas a Theo” não é, exatamente, uma obra inédita. Algumas das cartas de Vincent a seu irmão, Theo, foram publicadas pela primeira vez em 1914, e já chegaram ao português em diversas outras versões. Essa nova edição “ampliou o leque de correspondentes, e teve o projeto de constituir a trajetória de vida de Vincent van Gogh mesclada à de sua criação artística”, explica Jorge Coli, professor emérito da Unicamp, biógrafo de van Gogh e um dos organizadores do novo livro. Agora, as cartas não são só destinadas a Theo, mas também à sua cunhada, Johanna van Gogh-Bonger, ao seu pai e ao pintor Paul Gauguin, entre outros. Acompanhando as correspondências, notas de rodapé abrangentes contextualizam os textos de acordo com os acontecimentos da vida do pintor.
A seleção de 150 cartas entre as mais de 900 que foram preservadas é inédita “não só em português, mas também em outras línguas, como o inglês”, explica o organizador e tradutor das cartas Felipe Martinez, que defendeu sua tese de doutorado na Unicamp com um trabalho sobre os irmãos van Gogh. Esse não é o mesmo “Cartas a Theo” que você pode ter lido: “o nosso livro é uma seleção em grande parte inédita”, afirma Coli depois de sugerir que o volume poderia se chamar só “Cartas”, sem confundir com outras versões.
Ineditismo não é o único motivo para publicar esse livro. Os últimos anos viram uma avalanche de material sobre van Gogh no campo cultural: filmes, biografias, exposições interativas rodando o mundo e apresentando a obra do holandês para o público geral. Vincent van Gogh é uma super-celebridade. Esse personagem que é facilmente comercializado como um artista louco, desequilibrado e torturado se distancia do que é possível conhecer sobre quem realmente foi o pintor de “Noite Estrelada” e tantas outras obras-primas. Para Martinez, a missão do livro envolve trazer uma visão “menos ligada ao mito” e “menos superficial” de van Gogh.
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As cartas escritas pelo pintor podem mostrar, às vezes, um gênio depressivo, mas não param no estereótipo. Os escritos de van Gogh, “um dos grandes textos do século XIX, sobretudo no que diz respeito às artes visuais”, de acordo com Martinez, trazem perspectiva e profundidade à pintura que muitas vezes é feita da vida do holandês. Até os detalhes mais mundanos podem ser importantes, tirando o artista do Olimpo das artes para ser visto como o ser humano genial que foi.
“Seu espírito analítico, que ele aplica sobre si, sobre os outros, sobre as artes de seu tempo e sobre a sua própria, revelam uma lucidez espantosa”, afirma Coli. Em um período de cerca de nove anos, van Gogh produziu quase mil obras, sem “pintura desordenada e irrefletida”. As cartas a Theo e aos outros correspondentes mostram um pintor determinado, que examina suas intenções e sua produção.
Van Gogh não foi esse pintor que Coli descreve desde sempre. Na verdade, até os 28 anos, ele nem tinha certeza se seguiria ou não o caminho da arte. Suas correspondências em “Cartas a Theo” mostram a formação do artista que conhecemos.
Clássico da literatura
Além de funcionar como uma espécie de biografia, que conta detalhes da vida do artista em uma intimidade rara, sobretudo quando se fala em um artista que viveu há mais de cem anos, a obra também tem seu valor literário enquanto clássico da literatura, como defende Martinez. “Não é um romance como um livro de Victor Hugo, mas, como outros textos de personagens formadores da cultura do século XIX, é importante reeditá-lo e falar sobre ele.”
De fato, a habilidade de van Gogh com as palavras é surpreendente, capaz de pintar paisagens tão belas quanto as que fez com tinta por meio de suas cartas. Logo antes de decidir se dedicar integralmente à arte – e após a desilusão com a carreira de marchand, que tentou seguir na juventude e à qual seu irmão se dedicou durante toda sua vida –, Vincent van Gogh tentou seguir os passos do pai ao se tornar pastor. Rapidamente, o fracasso o levaria à pintura. Mas, durante esse período, já é possível ver a paixão do futuro pintor pelas imagens que o cercam. Em uma carta datada de 1876, van Gogh se despede de Theo após um período que haviam ficado juntos. Nas suas palavras, “e não foi como se a natureza se compadecesse de nós? Estava tudo muito cinza e um tanto lúgubre algumas horas atrás. Agora olho para vastas paisagens onduladas, e tudo é muito silencioso, e o sol se põe atrás das nuvens cinzentas e lança um brilho dourado sobre a terra.”
Já no que diz respeito à biografia do autor, o livro é como um guia pela mente do artista – tão frequentemente distorcida por mentiras que atravessam décadas e interpretações sensacionalistas de suas obras. É interessante colocar a obra de van Gogh em contexto, pensando sua condição material e psicológica a cada fase de sua pintura. Uma marca que transpassa toda a obra, por exemplo, é a frase “acredite em mim sempre”, repetida ao final de diversas cartas do pintor ao irmão. Há uma positividade e esperança em van Gogh, uma crença de que, finalmente, a arte será sua salvação e uma satisfação em experimentar com suas cores e formas.
Durante o tempo que passou em Arles, no sul da França, por exemplo, é com entusiasmo que van Gogh fala da cooperativa de artistas que queria criar na famosa Casa Amarela, onde recebeu Paul Gauguin durante alguns meses. O tom das cartas muda pouco após a crise que culminou na mutilação da orelha esquerda de van Gogh, na ocasião da partida definitiva de Gauguin em direção a Paris: é em uma tentativa constante de tranquilizar Theo quanto ao seu bem-estar que Vincent diz lidar com situações como a sua expulsão da Casa Amarela – movimentada por uma petição dos habitantes da cidade – e sua internação no asilo de Saint Paul de Mausole, em Saint-Rémy-de-Provence.
Contexto histórico
Uma constante nas cartas apresentadas são as notas de rodapé, trazendo contexto adicional para os escritos de van Gogh e mostrando uma pesquisa impressionante para checar a veracidade das informações que o pintor escreveu e para entender seu lugar no ecossistema da arte europeia do século XIX. Fugindo de teorias conspiratórias difundidas em obras recentes sobre o artista, como a ideia de que ele teria sido assassinado, os organizadores fazem uso do melhor da fortuna crítica disponível sobre o pintor.
Enquanto van Gogh pode dizer que viu um Rembrandt em um museu na Antuérpia, os pesquisadores mostram que não havia nenhuma pintura do mestre holandês do barroco naquele museu, e sim que van Gogh poderia estar se referindo a outra pintura, com estilo parecido ao do pintor. Isso pode parecer mínimo ou desnecessário, mas é o tipo de trabalho de pesquisa em história da arte que ajuda a compreender melhor um artista e o contexto que ele habitou.
O livro se propõe, então, a mostrar para o público brasileiro aquilo que se produz de melhor nas universidades do mundo sobre van Gogh. Essas informações adicionais trazem um peso ao texto que o leva além de uma mera coletânea de cartas, servindo como relato biográfico e crítico do pintor, trazendo detalhes pouco conhecidos mas extremamente importantes para entender a vida do artista.
A coleção de cartas, por exemplo, é marcada pela dificuldade material de van Gogh e sua dependência financeira em relação ao irmão, que lhe mandava dinheiro e materiais de pintura regularmente – de início, recebidos com algum embaraço, mas logo incorporados na rotina dos irmãos. Jorge Coli destaca dois focos da questão de dinheiro em “Cartas a Theo”: “o de como sustentar um artista que não vendia suas obras e o do que fazer com essas telas produzidas, que ninguém comprava. Um dia as minhas telas valerão mais do que a tinta que ponho nelas, para citar de memória Vincent van Gogh. Essa convicção ele próprio tinha, assim como seu irmão, que era marchand. Mas é Johanna Bonger, a esposa de Theo que, depois da morte dos dois, soube dar o impulso dentro do mercado das artes e logo inserir as telas do cunhado num patamar muito elevado.”
Johanna Bonger, responsável pela publicação da primeira edição de “Cartas a Theo”, é citada diversas vezes no livro – tanto nas cartas quanto nos textos dos organizadores. Martinez define que “sem o trabalho dela, não haveria essa ideia de van Gogh que temos hoje. O ‘mito van Gogh’ envolve três pessoas: além do próprio pintor, Theo, que sustentou e incentivou ele, e Johanna, que promoveu sua arte e história.” Com a morte de Theo poucos meses depois do irmão, foi a cunhada do artista tomou conta da tarefa de vender parte de seu patrimônio em obras de Vincent e divulgar a história de sua vida. Em pouco tempo, sua obra começou a chamar a atenção de marchands na Alemanha – e o resto é história.
No Brasil, a obra de van Gogh está concentrada no Masp, que tem em seu acervo as obras A arlesiana e O escolar, ambas pintadas durante seus últimos anos, entre Arles e Saint-Rémy-de-Provence. Utilizando Marie Ginoux, que administrava o café frequentado por van Gogh em Arles, A arlesiana é citada em diversas ocasiões a partir da finalização de sua primeira versão – que o artista diz ter feito em uma hora em carta ao irmão. Similarmente, as cartas em que O escolar é citada também foram mantidas na seleção, além de relatos que citam pinturas celebradas no mundo inteiro, como Os Girassóis e Noite Estrelada. A nova edição de “Cartas a Theo” é um convite para conhecer o artista para além do mito do artista torturado – e, é claro, para ver de perto e sentir a emoção que perpassa suas obras em solo brasileiro.
Carolina Azevedo e Eduardo Lima fazem parte da equipe do Le Monde Diplomatique Brasil.