Nova Guanabara ou a linearidade fractal da black music brasileira
Rascunhos para uma história das disputas políticas travadas em frequências graves, de Oberdan Magalhães a FBC
O título é imperativo – Baile. Menos do que uma palavra de ordem, o álbum lançado pelo cantor FBC no final de 2021 sugere o convite. Após a inundação de transmissões ao vivo em plataformas digitais, eventos online e necessidade de distanciamento, o disco em conjunto com o produtor e DJ VHOOR reconstrói a intensidade das noites de um passado àquela altura distante. Não havia subterfúgios para escapar de um Brasil despedaçado, então que o rearranjo do pouco que sobrou fosse ao som de um ritmo familiar.
A reação de pavor à detonação do miami bass e de sua famosa expressão brasileira, o funk carioca, por parte das famílias nos anos 1980 e 1990 havia ficado para trás. A nova variação não seria recebida com tanta ferocidade. Afinal, desde então houve a popularização de nomes como Claudinho e Buchecha, fronteiras se encurtaram e a cultura hip-hop se aproximou do batidão dos bailes. O preconceito de classe foi mantido, mas a repulsa à estética que FBC e VHOOR manejavam era menor.
O álbum Baile é uma ópera rock com personagens que são apresentados e retornam à cena, comum das cidades brasileiras – uma festa monitorada pela polícia e sob a tensão da violência urbana. Curiosamente, o enredo não se rende ao proselitismo ou a visões estreitas a respeito da política. Como no dia a dia, a insegurança no amor convive com os desafios sociais. Nada é isolado ou estável, o que não equivale no trabalho de FBC ao relativismo insosso: o disco relata com crueza a agressividade policial e a corrupção.
A desenvoltura também se reflete na forma como o trabalho de FBC e VHOOR se espalhou depois do lançamento. A densidade narrativa, com diferentes atos e harmonia entre as partes, conviveu com a explosão de vídeos curtos com a trilha sonora “Se tá solteira”. Ao mencionar o visual da periferia, com chinelo de dedo e uniforme de clube de futebol, “De Kenner” seguiu o mesmo rumo e viralizou. A velocidade com que as execuções dispararam não ameaçou a integridade de Baile.
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Rupturas deixam as palavras em suspenso. Se a linguagem diariamente não comporta o cotidiano – dores, glórias ou mesmo o habitual –, quando maciças fraturas se impõem a impressão é a de que nada que for dito, escrito ou murmurado vai dar conta do maravilhamento ou, com mais frequência, do absurdo diante dos olhos. Na tentativa de remendar alguma expressão, podem surgir termos desajeitados, que por fim ainda assim giram em falso na tentativa de manifestar tamanho incômodo.
Luto rachado, silêncio inevitável, sofrimento sufocado: a necessidade de garantir condições mínimas para sobreviver no agora ao mesmo tempo simplifica o passado e encomenda para o futuro ansiedade, melancolia e um longo retorno de interditos. É um engano imaginar que essa inquietação é subjetiva especialmente quando os efeitos são sistêmicos, têm escala nacional ou dimensão global. Experiências recentes integraram os aparentemente fracionados sentimentos amargos.
A pandemia: nada a céu aberto foi edificado por sua memória. Não é exagero creditar a derrota da campanha presidencial à reeleição, em 2022, aos acenos antivacina, endossos a tratamentos sem comprovação, defesas de aglomerações – nem assim o governo seguinte construiu ou pelo menos propôs um monumento em espaço público em memória das vítimas do vírus. Predominou a desconfortável sensação geral de que era necessário seguir. Inclusive na oposição ao negacionismo mais tacanho.
Diante dessas fissuras, olhar para trás proporciona uma difícil continuidade, porque são vários os motivos a dissipar coesões. Linearidade fractal, estranha expressão, talvez seja o modo pelo qual tratar desses descaminhos. Principalmente porque a noção de cultura popular sempre é política: para endossar uma perspectiva conservadora, de supostos homens comuns e de seus fantasiosos valores fixos, ou com o intuito de estimular o enfrentamento de desigualdades.
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Às margens da baía de Guanabara, a edição de 2024 do festival Vozes foi inaugurada pelo encontro entre a Banda Black Rio e FBC. A proposta de colocar diante do público, juntos, artistas diferentes não é inovadora e, na maioria dos casos, leva a apresentações desengonçadas ou cansativas. Mas a abertura foi incomum. Quatro décadas separavam a reunião à beira-mar da morte do comandante do conjunto, Oberdan Magalhães, em 1984. Desde a partida do arranjador seu filho, William, é o responsável pela liderança.
Marcos da música popular da década de 1970 tem a assinatura da formação histórica: do álbum de estreia, Maria Fumaça em 1976, à parceria com Caetano Veloso a partir do repertório do disco Bicho, dois anos depois. O conjunto representa a geração do soul carioca lado a lado com artistas como Gerson King Combo e Carlos Dafé, Hyldon e Cassiano. À frente do movimento, Tim Maia: constantemente no topo das listas de mais vendidos, o cantor colaborou com muitos desses músicos e, assim, conduziu a cena à visibilidade nacional.
Depois da reformulação, a Banda Black Rio continuou a mobilizar a música negra – seja em canções como “Nova Guanabara” ao lado do mesmo Cassiano e de Claudio Zoli; seja na presença de William Magalhães no disco solo de Mano Brown. Para além da ocasião para presenciar o peso da orquestração dos metais, a reunião com FBC, em público, conjugou esse legado com os relances mais recentes de uma comunidade que, a despeito da passagem do tempo, ainda se depara com semelhantes crises.
Entre uma música e outra, foi anunciada uma canção inédita, de estúdio, de FBC com a Banda Black Rio. O encontro selou uma conexão hesitante que vincula o som eletrônico e a execução pesada dos sopros. Assim, congregou soul, funk, miami bass, batidão carioca, rap e r&b. Quando levados em consideração os arranjos invocados dos metais para gafieira, o samba também recompõe o traçado trêmulo que, através da história, acoberta densos conflitos desde o século XX no Brasil.
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FBC é um dos representantes da cena do rap que surgiu nos anos 2010 em Minas Gerais. Os artistas chegaram a se reunir no coletivo DV Tribo, do qual despontaram o duo Hot e Oreia, o beatmaker Coyote Beatz, a cantora Clara Lima e o rapper Djonga. O idealizador de Baile, contudo, realizou uma jornada própria com aproximações e afastamentos da configuração mais tradicional do hip-hop. O vão entre os gêneros se tornou confortável para o músico, que transitou da disco music ao drill.
A equilíbrio para oscilar entre expressões quase diametralmente opostas na canção radiofônica talvez venha da capacidade de se adaptar. FBC viveu em ocupações de sem-teto e lidou com as dificuldades de um artista de periferia até que seus primeiros hits fossem incorporados às paradas de sucesso. Conflituosamente, o pop não foi um ambiente acolhedor – desde o álbum de 2021, o cantor fez movimentos em vários sentidos até fincar os pés no disco O amor, o perdão e a tecnologia irão nos levar para outro planeta.
A atmosfera clubber do álbum, lançado em 2023, não é inédita para a black music brasileira e o caso do vinil Tim Maia Disco Club, de 1978, é o mais paradigmático. Ainda que debaixo do globo espelhado e da fumaça de gelo seco, FBC consegue aflorar as tensões sociais com a ótica fincada em cicatrizes próprias. Em determinado sentido, recupera os conflitos do patriarca do groove no rádio: como para os Racionais MC’s, a gravidade da experiência de prisão foi crucial para as composições de Tim Maia.
No território do antigo estado da Guanabara, durante as décadas de 1960 e 1970, os bailes soul e os seus artistas foram perseguidos pela repressão a partir do golpe que derrubou o presidente João Goulart. Cantores simbólicos do movimento, Hyldon e Cassiano foram presos sob acusação de serem subversivos. Eram, de fato. O naipe de metais violentava a disciplina militar, a presença negra na cena pública repelia os ideais do regime. Linearidade fractal – FBC foi hostilizado em 2022 por atacar a extrema direita em show no bairro carioca da Barra da Tijuca.
Helcio Herbert Neto é autor do livro Palavras em jogo (2024). Atualmente, realiza pesquisas sobre cultura popular em âmbito de pós-doutorado no Departamento de Estudos Culturais e Mídia da UFF, instituição pela qual também se tornou mestre em Comunicação. Formado em Filosofia (UERJ) e Jornalismo (UFRJ), é ainda professor e doutor em História Comparada pela UFRJ.