Nova velha ordem internacional e as interpretações da invasão
O que motiva mudança no relacionamento entre as nações, ou o ordenamento das relações internacionais não é, de fato, a superação da situação de conflitos, mas a natureza dos conflitos em sua expressão real
Este artigo busca, a partir da invasão da Ucrânia pelo Estado da Rússia, refletir brevemente sobre três questões relativas à forma como vem se desenvolvendo o evento e vem sendo encaminhadas suas análises, relevando alguns elementos teóricos do pensamento em relações internacionais. Dado o caráter prescritivo e interdisciplinar dessa área de conhecimento, uma multifacetada leva de opiniões tem se apresentado de forma a criar dificuldades e problemas não só para o entendimento da situação, como o encaminhamento de sua solução.
Uma primeira questão diz respeito ao fato em si que, embora venha sempre como versão, se justifica por elementos de racionalização que, mesmo que induzam a percepções e perspectivas distintas de compreensão do problema, não podem deixar de se apoiar em elementos concretos da realidade.
Nesse sentido, assim como a Terra é redonda, Putin e o Estado russo, sob sua autoridade, são agressores no conflito deflagrado contra a Ucrânia. Tal juízo, fundamentado em princípios morais relativos à legitimidade e justiça encontram amparo em leis internacionais resultantes da constituição de uma ordem internacional que, apoiada na criação de instituições suportadas, senão pela totalidade, pela grande maioria dos países que compõem a comunidade internacional, incluindo-se aí o próprio Estado russo, visaria a harmonia no relacionamento entre as nações. Não há, portanto, como desprezar esse elemento da realidade em qualquer avaliação da situação atual.
As motivações de Putin, então, merecem reflexão na medida em que se baseiam numa série de argumentos históricos estruturais, mas também conjunturais, de caráter interno e externo à sociedade russa, que podem lhe conferir justificativa ou condenação.
O primeiro deles diz respeito à ameaça que a expansão das forças da Otan significa para a Rússia, o que faria sentido, considerando ser essa a questão que motivaria a invasão da vizinha Ucrânia. Contudo, não há como esquecer que as primeiras manifestações daquele país num sentido próximo à interpretação de Putin, em 2004 e 2005, se davam relativamente a uma possível adesão do país à União Europeia. Denegando, já à época, a independência da Ucrânia, Putin apoiava explícita e decididamente a eleição de Victor Yanukovych, personagem corrupto e autoritário, para presidência da Ucrânia, na perspectiva de construir um governo sob seu comando. Nessa quadra, também não há como deixar de lembrar que ações nesse sentido por parte de Putin se manifestariam na Georgia.
Em grande parte, esse posicionamento da parte de Putin aconteceria como resultado do desfecho dos conflitos nos Bálcãs que, de fato, implicaram o envolvimento da Otan e motivaram sua expansão para o Leste Europeu. Contudo, no que se refere ao caso da Ucrânia, conforme Popova; Shevel (2022), antes de 2014, menos de 25% da população da Ucrânia era favorável à adesão à Otan. Somente a partir de 2021, 58% (número que não reflete maioria absoluta) passariam a se declarar favoravelmente à essa moção. O entendimento dessa mudança passa pelos eventos decisivos de 2014, quando apelando para questões de ordem geopolítica histórica a Rússia anexou a Crimeia.
Além disso, e principalmente, a Ucrânia foi signatária do Memorando de Budapeste que, no início dos anos 1990, como forma de selar o fim da Guerra Fria implicou a renúncia do país às armas nucleares, consignada na assinatura do Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares em 1994 e na entrega de seu arsenal nuclear até 1996. É importante lembrar, conforme tem noticiado a imprensa, que a Ucrânia contava com o segundo maior arsenal de armas desse tipo na União Soviética, correspondendo ao terceiro maior arsenal nuclear do mundo.
Isso resultou do acordo entre Rússia, Estados Unidos e Reino Unido com o objetivo, como se disse, de dar fim da Guerra Fria prevendo a não expansão da Otan para os países da esfera de influência soviética. Naturalmente, após o acordo, algumas ex-repúblicas soviéticas não se submeteram a esse desígnio por medo de uma repetição da história vivida como parte integrante do império soviético. Buscando atingir um novo patamar de desenvolvimento econômico e social, esses países em sua maioria viriam se inserir na União Europeia o que, do ponto de vista político e militar, implicou o consequente abrigo ao guarda-chuva da Otan. Nessa perspectiva, pode-se até considerar que a virtual aproximação da Europa por parte da Ucrânia, dada sua experiência histórica e sua realidade geográfica, seja motivo de temor por parte da Rússia. O descuidado tratamento dado pelos Estados Unidos, motivado por razões variadas, seguramente teve sua parte no desenvolvimento da situação atual.
Por sua vez, é importante destacar, como faz Kotkin (2022), que o fim da União Soviética, além de significar uma derrota, implicou para a Rússia a perda algo em torno de 2 milhões de milhas2 em territórios. Sua economia, a despeito dos esforços recentes, característicos de governos autoritários, teve seu processo de crescimento concentrado em setores industriais, com maior destaque no setor militar. O maior êxito nesse processo se deu de forma significativa nesse último setor. Não por acaso, a Rússia contribui com somente 1,5% do PIB mundial, tendo como principal vetor da economia a importante produção de matérias-primas ou produtos primários. A Rússia, não é, nesse sentido, uma potência econômica. Isso explica sua inserção na realidade dos Brics e sua aproximação cada vez maior da China.
Com isso se manifesta um aspecto da natureza do argumento fundamental utilizado por Putin para a invasão da Ucrânia e que torna sua decisão dificilmente justificável. Ainda que a eventual necessidade de construção de um cinturão de defesa pela Rússia, motivando a construção de uma espécie de “doutrina de contenção” às avessas, é necessário lembrar que desde Pedro, o Grande, passando por Alexandre I, Nicolau I e Stalin, a necessidade de controle absoluto do Mar Negro tem sido um imperativo da nação russa. Acrescendo-se a isso o desejo manifesto por Putin de resgatar a condição do país, ao tempo da União Soviética, de protagonista e interlocutora privilegiada no sistema internacional, isto é, de restaurar a posição de potência mundial, por meios militares, fica ressaltada a percepção do ímpeto expansionista do país.
Dessa maneira, por mais que parte dos argumentos apresentados por Putin na crise atual estejam fundamentados na história da Rússia e tenham sua legitimidade, a invasão da Ucrânia não encontra justificativa legal, nem aceitação da opinião pública, ao se basear em afirmações no sentido de desqualificar a Ucrânia enquanto nação soberana, desautorizando os acordos internacionais ao abrigo da ONU e promovendo ameaças à Europa, mais do que à Otan e aos Estados Unidos. É assim que a dimensão da propaganda passa a jogar um importante papel no desenvolvimento de um conflito internacional.
Entra a partir daqui outro elemento a se considerar que, fugindo à lógica de Estado, indica a importância da compreensão do papel do indivíduo enquanto ator nas relações internacionais, que, conforme a reflexão clássica de Renouvin e Duroselle (1967) pode assumir relevância para o desenvolvimento e a explicação dos problemas internacionais. Naturalmente, o entendimento do papel do indivíduo na crise atual passa pela consideração dos aspectos psicológicos pessoais inerentes ao governante russo e, também, das condições sociais a que se encontra ligado.
Putin, assim como os que o precederam no papel de líderes na condução de um projeto russo, enfrenta algum tipo de resistência por parte de segmentos expressivos da sociedade. Parte dessa resistência pode ser motivada pela rejeição a um projeto imperialista. Esse talvez seja o motivo para a argumentação oficial fortemente centrada na necessidade de colocar a Rússia como vítima de agressões que importam a necessidade de defesa de um espaço vital russo (categoria originada na geopolítica clássica, fazendo valer, inclusive, a identificação por parte da opinião pública da movimentação russa com a movimentação de Hitler em direção à Polônia em 1939).
Não que o sonho ancestral do Império Russo não alcance boa parte da sociedade ou que se diferencie de outros arroubos imaginários desse tipo levados a efeito por parte de outras nações. Contudo, o que parece fazer rejeitar esse argumento é o que está insinuado na política interna do país e a forma como ela tem sido imposta. Ao que tudo indica, ela encerra o objetivo de Putin de se perpetuar no poder, sendo que, para tanto, ele tem utilizado qualquer justificativa para minar resistências à sua pessoa e, buscando conter a oposição política, tem recorrido a meios brutais de repressão que não se coadunam com as pretensões de grandeza de um país moderno e civilizado. Nesse sentido, o líder russo passa a estar sujeito a julgamentos de ordem não só psicológica quanto jurídica relativamente a seu padrão desviante de comportamento.
Vale lembrar que a tentativa de Putin no sentido de impor ao mundo mais do que sua visão, sua vontade, é tomada como a expressão de uma manifestação ideológica que encontra identidade em outros líderes nacionais, no mínimo, “excêntricos”. Já, por si, essa concepção de ideologia empregada no atual cenário da política pode ser condenada em sua raiz na medida em que, entendendo-se ideologia como um conjunto ordenado de ideias, a visão de mundo de tais personagens é eivada de juízos aprioristas infundados e preconceituosos, não encontrando sustentação lógica ou amparo em evidências no mundo real. E essa forma de enxergar o mundo compartilhada por um grupo muito especial de “líderes” se articula em torno de um arco radicalmente autoritário e imensamente contraditório na política mundial. Só para exemplificar, destacam-se nesse grupo figuras tais como Trump, Kim Jong-un, Modi, Maduro, Ortega, Duterte, Xi Jinping, Orban, Bolsonaro (estes dois últimos, inclusive, orientaram votos a favor da resolução de condenação da Rússia na ONU), além de governantes de ex-repúblicas soviéticas ainda satélites da Rússia em sua federação.
Uma alternativa a essa avaliação do problema atual nessa direção recomenda uma rigorosa reflexão crítica no campo marxista que releve as relações entre classes ou frações de classes na construção da liderança de Putin para a conformação da realidade social atual da Rússia. Tudo indica que o papel dos oligarcas russos passaria a ter então o merecido destaque na elucidação do comportamento de Putin. Essa situação, não por acaso, motivou uma das medidas de sanção do “ocidente”. Infelizmente, uma análise na linha sugerida ainda não se apresentou à opinião pública. As parcas interpretações nessa direção oferecidas por alguns segmentos no campo marxista brasileiro têm, por sinal, dado conta de legitimar a ação de Putin, uma vez que, na opinião desses grupos, colocada numa perspectiva histórica a ação daquele governante significa um passo na luta contra o capitalismo ou sua maior representação imperialista, o “ocidente” europeu e, principalmente, os Estados Unidos.
Uma segunda questão sobre o problema para efeito deste artigo diz respeito à profusão de análises perpetradas por profissionais de relações internacionais, particularmente no caso brasileiro, carregadas de afirmações que suscitam uma variada gama de questionamentos.
Chama a atenção a quantidade de vaticínios definitivos sobre a situação e seus desdobramentos, insinuando certa deficiência ou incipiência no processo de formação de profissionais com a tarefa de compreender e explicar os problemas internacionais, revelando mesmo certo desconhecimento ou desconsideração do dilema fundamental na construção teórica do campo, qual seja, o da autonomia do conhecimento na área da teoria de relações internacionais.
Dada a multiplicidade de aspectos que envolvem os fenômenos internacionais, seu entendimento assume um caráter mais do que multidisciplinar, interdisciplinar, e sua compreensão depende de domínio de conhecimentos variados tais como história, direito internacional, economia internacional e cultura, além de teoria política internacional, particularmente no campo militar.
O primeiro grande problema nas análises internacionais sobre a situação em pauta, na realidade um problema de fundo, remete ao fundamento da compreensão e descrição da realidade numa perspectiva histórica. Nesse sentido, assumindo a tarefa de exercitar em algum grau a futurologia, os analistas das relações internacionais, em momentos de crise como o atual, muitas vezes esquecem-se de que a história não se faz a priori.
No que respeita, por exemplo, à guerra em si, uma parte das análises no início da situação atual apostava num rápido desfecho da ação russa, o que, talvez, correspondesse em parte ao planejamento militar inicial daquele país. Contudo, para quem lida com questões estratégicas no campo militar, é mister lembrar sempre que o planejamento espelha um provável quadro futuro e, nesse sentido, deve considerar uma série de variáveis que podem impedir sua realização. Como consequência, são considerados planos alternativos que podem, eventualmente, modificar táticas levadas a efeito no campo militar, mudando o desenvolvimento dos acontecimentos e alterando tempo e cenário no teatro de operações. Assim se coloca um problema comum numa guerra, até então, convencional relativo à logística para manutenção de forças, expressivas em tamanho, em solo estrangeiro.
Nesse sentido, a reação ucraniana parece ter surpreendido parte dos analistas internacionais indicando um possível desconhecimento da capacidade de resistência do povo ucraniano. Por sua situação geográfica os ucranianos têm historicamente enfrentado invasões e sido objeto de violentas agressões. Isso os qualifica militarmente, o que, inclusive, motivou sua importante participação aparato militar do sistema de defesa soviético. No conflito atual, tendo ou não recebido material bélico da Otan ou dos Estados Unidos e mesmo sem chance de vencer a guerra contra a Rússia, a Ucrânia tem condições de retardar a derrota, o que significa diferentes desdobramentos para a situação.
A surpresa para os responsáveis por tais análises leva a pensar na ausência da necessária conexão entre os fatos militares e os políticos expressos na teoria fundamental da guerra. Com raríssimas exceções, se viu alguém conclamar a máxima de Von Clausewitz, segundo a qual “a guerra é a continuação da política por outros meios”, na explicação para o retardo na ação russa. Esse retardo tanto pode gerar o recrudescimento da violência, como parece acontecer, como a abertura de oportunidades para negociações cuja natureza também pode assumir possibilidades diversas. Nada é certo antes que se realize. Não à toa se desenvolvem, a partir dos argumentos iniciais, todo um complexo de alegações que vai variando e se retroalimentando em outra dimensão da guerra, o campo das informações. Essas são de avaliação e controle muito difícil para análises com maior imparcialidade e precisão.
Por outro lado, a ideia de uma fraca resistência por parte do “ocidente”, ainda que sustentável por razões da história recente e em que parece Putin se apoiar, tem se transformado em quase certeza em grande ou maior parte das análises internacionais. E o relativo desprezo no que se refere às sanções adotadas contra a Rússia indica um certo desconhecimento das questões mais básicas que objetivam a ciência econômica, referindo-se às relações fundamentais entre os agentes econômicos, as trocas. Estas se realizam, além de entre empresas, entre consumidores e comuns mortais. São universais, conferindo uma das características essenciais ao capitalismo na demanda do desenvolvimento dos meios de troca. Num mundo economicamente globalizado ou interdependente essas trocas se avolumam de forma a exigirem a substituição da moeda tradicional o que, a partir do desenvolvimento tecnológico, se faz com a criação de sistemas de pagamento, por exemplo, eletrônico. O sistema SWIFT é, nessa medida, o mais avançado recurso desse tipo no mundo.
Atualmente, para quem faz transações com o exterior, seja no ambiente empresarial, seja no ambiente pessoal, esse sistema se tornou crucial. As transferências mais simples entre agentes individuais por esse meio, particularmente no âmbito europeu, são parte do cotidiano. A suspensão da possibilidade de operação desse sistema causa desastroso entrave ao desenvolvimento de atividades econômicas básicas de compra e venda, criando seríssimos problemas para todos os segmentos e extratos da economia e da sociedade. Parece óbvio que os revezes se distribuem por ambos os lados do contencioso atual. Por isso, a preocupação com setores sensíveis particularmente da Europa. Esta, junto com seus parceiros, sofrerá, mas o isolamento severo da Rússia permite vislumbrar prejuízos muito maiores para este país. E, diferentemente do que se tem apregoado, seus efeitos podem ser imediatos.
Para muitos, o apoio da China pode ser considerado uma segura válvula de escape para a economia russa. Mas isso implica reconhecer a disposição por parte da Rússia em se submeter a certa dependência daquele país, o que parece impensável frente à motivação de Putin. Além disso, é importante salientar que o projeto de ascensão chinês ainda se desenha em torno do conceito de ascensão pacífica. Como meio para ampliar seu poder, esse projeto tem como objetivo primário alcançar riqueza e autossuficiência, ainda incompleta, e é, em função disso, sustentado por um pragmatismo que acaba por definir posições chinesas ambíguas e cambiantes no sistema internacional.
Nessa perspectiva se insere outro questionamento, quanto à ideia de dependência na interpretação do quadro internacional atual. Muito se tem falado da dependência energética da Europa em relação à Rússia, o que é uma verdade. Contudo, a dependência é uma via de mão dupla no atual estado da economia mundial. A eventual suspensão de fornecimento de energia para o “ocidente” por parte da Rússia, por um lado, constrange a economia ocidental, mas por outro, corta uma importante fonte de receitas russas. Esse fluxo não pode ser substituído com facilidade em ambos os lados. Nessa medida, inclusive, grande parte das análises tem descuidado de mencionar o problema que a falta de pagamento de dívidas russas pode gerar para os balanços de pagamentos dos países ocidentais, o que obviamente também significa excluir uma contraparte na situação.
Na realidade, o que parece acontecer com boa parte das análises em curso é um esquecimento ou desprezo dos tradicionais modelos de conflitos (RAPOPORT; 1998) que, representativamente, possibilitariam melhor exploração da situação, uma vez inserida num quadro de disputas. Assim, a realidade, nem sempre correspondendo aos modelos que a descrevem, ao mesmo tempo em que apresenta atualmente uma situação de “luta” real, também apresenta uma situação de “jogo”. No primeiro caso, dado o envolvimento de atores e poderes de maior expressão na comunidade internacional, a ameaça e a dissuasão passam a ser elementos presentes na condução do processo.
Putin tem utilizado esses elementos com alguma competência. Mas, a despeito da descrença numa possível convergência e união dos países europeus e sua maior aproximação dos Estados Unidos, levam a crer que a resposta a Putin parece muito bem dirigida também. O conceito Minimax, conforme descrito por Deustsch (1982), e segundo o qual os contendores procuram maximizar seus ganhos, isto é, promover seus objetivos minimizando seus custos, representa bem o cenário atual. Esse conceito, por sua vez, encerra outros conceitos tais como custo de oportunidade ou razão custo-benefício, além da vulnerabilidade, tomado pelos economistas como uma medida de poder e caríssimos à ciência econômica. Sem entrar no mérito dos custos e ganhos do quadro atual, o que se pode afirmar é que as sanções à Rússia são elemento substantivo da capacidade estratégica do “ocidente”, não sendo essa capacidade uma exclusividade de Putin, opinião muitas vezes geralmente subjacente às análises oferecidas.
Nessa mesma linha, o congelamento de ativos das reservas russas em poder do “ocidente” deve assumir importante papel na definição futura do conflito na medida em que em boa parte desses recursos não se encontra em poder efetivo do governo russo, estando lastreados em moedas fortes de seus principais contendores. O montante expressivo de reservas acumulados pela Rússia, talvez inserido no processo de planejamento da ação na Ucrânia, não parece ser suficiente para a manutenção a longo prazo de uma guerra cara e nem mesmo de uma situação de suspensão do suprimento dos bens e serviços para a sociedade russa, fato minimizado pelo apressado aferimento dos resultados imediatos da reação da Europa e dos Estados Unidos à ação de Putin, implícito em algumas análises da situação.
Assim, também, a captura dos bens e riquezas dos oligarcas russos, na realidade os oligarcas vinculados a Putin, constitui uma sanção que fala por si. O apoio desses potentados ao líder russo é fundamental para sua manutenção no poder. Na medida em que se sintam ameaçados em suas condições nada os impede de mudarem de humores, situação que pode provocar diferentes resultados. Seria desejável um aprofundamento das informações e reflexões sobre esse aspecto do problema, coisa pouco vista nas análises até então.
Outra coisa notável, para encerrar a questão ora colocada, diz respeito a manifestações em parte importante do esforço analítico sobre a guerra, no sentido da condenação, embora entre linhas, da falta de engajamento de Otan e Estados Unidos na situação. Parece haver aí um certo descuido com o fato de que, mesmo num cenário de conflito real, certa racionalidade deve sustentar as decisões quanto ao desenvolvimento dos acontecimentos. Dessa maneira, a justificativa original para uma ação ou reação violenta no sistema internacional deve se apoiar em uma certa lógica regida por princípios baseados na ideia de justiça e expressos no direito internacional.
É preciso repetir que a invasão da Ucrânia promovida por Putin busca justificativa no direito à legítima defesa contra uma ação expansiva da Otan, obviamente capitaneada pelos Estados Unidos. Mesmo que não correspondendo totalmente à verdade, esse argumento tem contido a Otan no conflito, o que torna fraca a justificativa de Putin. Nessa perspectiva, inclusive, ao contrário do que parecia pretender, o movimento realizado por Putin está promovendo efeito inverso de tal modo que a Otan tem passado a se fortalecer, encontrando motivo para sua sobrevida.
Para além disso, a ação de Putin endereçada à Otan tem na realidade atingido a Europa e a ONU, o que, ao contrário do que muitas análises imaginavam, vem provocando uma forte união do continente, reforçando a importância da União Europeia e das Nações Unidos, além de justificar a participação dos Estados Unidos no evento.
Finalmente e como resultado do que se disse anteriormente, a última questão a ser tratada nesta singela reflexão pode ser tratada de forma concisa, pois refere-se a uma postulação lógica simples. Trata-se da ideia insistentemente veiculada sobre a constituição de uma nova ordem internacional a partir desse evento.
O fim da Guerra Fria pareceu, de fato, dar início a uma nova ordem internacional na medida em que o recurso aos meios militares para a definição de contenciosos se exauria. No entanto, do ponto de vista econômico, a situação que permitiria a conclusão daquele conflito começava a se desenhar com o fim do sistema Bretton Woods, resultante de rupturas, particularmente no sistema ocidental.
Para muitos, o fim da Guerra Fria significava a constituição de uma ordem de relacionamentos baseada numa unipolaridade. Essa interpretação da realidade, entretanto, não parece corresponder à realidade na medida em que a percepção da supremacia norte–americana se apoiava somente no poder militar daquela nação. No campo econômico, o que se observava nas relações internacionais era uma multipolaridade bem representada pela assim chamada trilateral. Essa multipolaridade correspondendo a uma verdadeira estrategização da economia, conforme dão a entender grandes teóricos dessa nova realidade, Keohane e Nye (1989) seria, inclusive, o motivo para o desenvolvimento da internacionalização econômica da produção, vulgarmente conhecida como globalização. Essa interpretação da realidade encontra, inclusive, paralelos na explicação do processo pela ótica marxista, conforme Harvey (2007).
O que se quer dizer com isso é que, consideradas à moda clássica de Merle (1982), as três grandes vertentes de interpretação das relações internacionais (realismo, idealismo e marxismo), principalmente em sua configuração atual (neorrealismo, neoliberalismo e marxismo), jamais desprezaram o conflito, em diferentes manifestações, como um elemento efetivamente presente no sistema internacional.
Assim, pode-se compreender que o que motiva mudança no relacionamento entre as nações, ou o ordenamento das relações internacionais não é, de fato, a superação da situação de conflitos, mas a natureza dos conflitos em sua expressão real, como bem demonstra a invasão russa da Ucrânia. É óbvio que esse acontecimento implica um redesenho das relações no mundo. Talvez se presencie a constituição de um sistema bi ou tripolar, a partir de uma reconfiguração do poder mundial, mas o que ainda e sempre caracteriza o relacionamento internacional é a disputa entre as nações. Nesse sentido, a atual crise internacional faz valer a máxima de Marx segundo a qual a história se repete como farsa e, nesse sentido, como conclusão, não há como não condenar qualquer ação que invariavelmente traga como consequência para o povo o sofrimento da guerra.
Joaquim C. Racy é economista, mestre e doutor em História (Relações Internacionais do Brasil), professor dos cursos de graduação e mestrado em Economia na Universidade Presbiteriana Mackenzie (UPM) e da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP); líder do Núcleo de Análise da Economia Contemporânea (NAEC) da UPM; e vice-líder do Núcleo de Análise da Conjuntura Internacional (NACI) da PUC-SP. [email protected].
Referências bibliográficas
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