Novas diretrizes para o Terceiro Setor
Ao estabelecer mecanismos para a criação das parcerias, a nova lei fixou as diretrizes fundamentais para sua aplicação São verdadeiros princípios programáticos que revelam a saudável preocupação de seus formuladores, mas encontram obstáculos para sua aplicação nos procedimentos adotados ao longo do conjunto de normasRubens Naves
Em 31 de julho foi promulgada a Lei n. 13.019, que estabelece o regime jurídico das parcerias entre a administração pública e as organizações da sociedade civil (OSCs). Desde sua tramitação no Congresso Nacional, o projeto de lei recebeu, nos meios de comunicação, a denominação de “Marco Legal do Terceiro Setor”. Isso porque as parcerias entre as entidades sem fins lucrativos e o poder público, em especial os antigos convênios, carecem há décadas de uma regulamentação que abranja todas as suas especificidades.
Estudo do IBGE e do Ipea indica que, em 2010, existiam no Brasil pouco mais de 290 mil fundações privadas e associações sem fins lucrativos.1 Esse conjunto de entidades subordina-se a vários regimes jurídicos. Além da nova lei que trata das parcerias, ora sob análise, que se aplica, no que couber, às entidades qualificadas como Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público (Oscips), nos termos da Lei n. 9.790/99, permanece em vigor, na sua íntegra, a Lei n. 9.637/98, que introduz as OSs no mundo jurídico, assim como a legislação em matéria tributária que confere incentivos fiscais na área de filantropia e assistência social, em especial a Lei n. 2.101/09, que dispõe sobre a certificação das entidades beneficentes da assistência social e normas complementares.
Diretrizes fundamentais
Ao estabelecer os mecanismos para a criação das parcerias (termos de colaboração e de fomento), a nova lei fixou as diretrizes fundamentais para sua aplicação no artigo 6o. São verdadeiros princípios programáticos que revelam a saudável preocupação de seus formuladores, mas encontram obstáculos para sua aplicação nos procedimentos adotados ao longo do extenso conjunto de normas. Destacamos: autonomia das OSCs, transparência das parcerias e maior segurança jurídica.2
Limitação da autonomia das OSCs
Embora o texto das diretrizes assegure “a promoção, o fortalecimento institucional e o incentivo à organização da sociedade civil para a cooperação com o poder público” (artigo 6o), a nova lei exige que o regulamento de compras e contratações seja previamente “aprovado pela administração pública”, abrindo oportunidade para uma equivocada interferência na natureza jurídica das entidades parceiras, ferindo sua autonomia e abrindo espaço para um regramento rígido e ineficiente. De igual forma, a boa possibilidade de atuação em rede submete-se a normas pouco flexíveis na escolha de subcontratados ou outros arranjos institucionais, deixando de comportar exceções à previsão da necessidade de três anos de experiência de atuação em rede.
A diretriz que prioriza o controle de resultados (estabelecida também no artigo 6o) conflita com dispositivos sobre o controle de procedimentos, meramente burocrático, como o extenso capítulo IV da prestação de contas é exemplo. Trata-se de retrocesso diante das leis das Oscips e OSs. A lei deixou de aprofundar o conceito de controle de resultados, comprometendo a capacidade das organizações da sociedade para colaborar na busca do melhor interesse do projeto da parceria.
Transparência
O estabelecimento de mecanismos que ampliem a gestão de informação, transparência e publicidade transcende o simples controle e deve ser entendido em consonância com outras diretrizes, como o incentivo ao uso de recursos atualizados de tecnologias de informação e comunicação, além da promoção de soluções inovadoras em benefício da população em geral (artigo 6o). A transparência deve estar a serviço de um permanente processo dialógico de aperfeiçoamento da parceria. Nesse sentido, o registro e a memória dos trabalhos desenvolvidos são essenciais para atestar o bom uso dos recursos públicos. Trata-se de capítulo desafiador para a regulamentação da lei que poderá incentivar trabalhos sobre formação de preços, bancos de dados e outros elementos necessários para uma boa gestão. Nesse contexto, o termo de fomento poderia ser um instrumento privilegiado para inovação, afastando-se a exigência de experiência prévia na realização do objeto da parceria (artigo 24) e permitindo-se até mesmo a experimentação com margens de erro.3 As informações dos órgãos públicos de controle deveriam contemplar orientação a partir da divulgação da jurisprudência sobre parcerias.
Segurança jurídica
Ao indicar como diretriz fundamental a “ação integrada, complementar e descentralizada de recursos e ações, entre os entes da Federação, evitando sobreposição de iniciativas e fragmentação de recursos” (artigo 6o), a lei deixa de buscar uma divisão de papéis e limites para atuação das inúmeras instâncias de controle (auditoria externa independente, conselho fiscal, gestor, comissão de monitoramento e avaliação pelo administrador público, Advocacia-Geral da União, Controladoria-Geral da União e outros).4
De igual forma, constituem aspectos polêmicos a extensão de princípios e regras da administração pública às OSCs, como aquelas contidas na Lei Geral de Licitações ou nas normas gerais de direito financeiro (Lei n. 4.320/64), além do “dever infinito” de prestação de contas imposto às OSCs, tendo em vista a demora na análise das contas e o fato de o decurso do tempo não produzir efeitos jurídicos, como a prescrição.5
A técnica legislativa adotada assemelha-se à da Lei n. 8.666/93, com normas gerais e especiais indistintamente relacionadas. Trata-se de um equívoco que gerará interpretações díspares.
O capítulo da responsabilidade e das sanções (artigo 73 e seguintes), em especial os novos ilícitos considerados atos de improbidade administrativa, pode caracterizar o modelo adotado como “corruptocêntrico”6 (“uma vez que toda concentração de esforços do sistema se dirige ao combate à corrupção, deixando os resultados e outras funcionalidades das contratações públicas à margem”),7 ligado na função redentora da lei, que pressupõe servidores públicos autômatos, persistindo a ineficiência e a corrupção. Os gestores das OSCs são responsabilizados em decorrência de condutas genéricas, como a celebração de parcerias sem “a observância das formalidades legais ou regulamentares aplicáveis à espécie” (artigo 77).
Conclusão
O estabelecimento da lei como norma geral aplicável a União, estados, Distrito Federal, municípios e respectivas autarquias, empresas públicas e sociedade de economia mista prestadoras de serviço público e suas subsidiárias deixa poucos espaços para que os demais entes da Federação possam legislar sobre a matéria de acordo com a realidade de cada um, o que suscitará intenso debate jurídico e impedirá possíveis soluções criativas no estabelecimento das parcerias.
A percepção de alguns juristas é que o excesso de procedimentos estabelecidos na lei provocará, no primeiro momento, uma retração na celebração dos termos de colaboração e fomento, a exemplo do que ocorreu na promulgação da Lei n. 8.666/93, norma geral de contratações e licitações. Resta ressaltar a importância do trabalho a ser desenvolvido para a regulamentação da lei e, especialmente, para a conciliação de suas diretrizes fundamentais com a rigidez dos procedimentos e controles estabelecidos. É uma oportunidade para pacificar o variado, e muitas vezes injusto, contencioso existente entre o Estado e as organizações da sociedade civil, prevendo inclusive instrumentos de mediação e ajustes de conduta.
Rubens Naves é professor licenciado do Departamento de Teoria Geral do Direito da PUC-SP, sócio titular de Rubens Naves, Santos Jr, Hesketh Escritórios Associados de Advocacia.