Novos protagonismos
A Bolívia é o caso mais atual de um movimento amplo na América Latina em que os povos originários estão assumindo um protagonismo crescente na política e obtêm avanços significativos como o respeito a seu sistema judicial. Os horizontes parecem abertos para a constituição de Estados plurinacionais
Em outros tempos, aqui mesmo na América do Sul, alguns líderes ficaram conhecidos como “pais” das populações que governavam. No Brasil, por exemplo, Getúlio Vargas foi o “Pai dos Pobres”. Herói da independência uruguaia, o general José Artigas também é chamado por lá de “Pai da Nação”. Mas o que estará mudando na política do continente quando um índio, ex-líder sindicalista e plantador de coca chega ao posto mais alto da República boliviana e se torna o “hermano presidente” para dois terços da população do país, majoritariamente indígena?
Apesar das freqüentes turbulências incitadas pela oposição, o governo de Evo Morales é apoiado pela maioria dos eleitores do país: 67,4%, conforme apontou o referendo ratificatório realizado em agosto. Agora, depois de um acordo político com os setores mais moderados da oposição, o país se prepara para votar sua nova Carta Magna, em 25 de janeiro. Caso aprovado, o texto constitucional fortalecerá ainda mais a participação dos indígenas na política do país, uma demanda dos chamados povos originários – hoje, essa é a forma preferida de tratamento pelas comunidades indígenas não só da Bolívia, mas de vários países latino-americanos.
Já no Equador, a nova Constituição entrou em vigor em outubro, incorporando avanços como o respeito às formas de propriedade e de direito tradicionalmente aplicadas pelas comunidades originárias. O movimento indígena do país também é considerado um ator político fundamental, responsável pela deposição de três presidentes nos últimos 11 anos (Abdalá Bucaram, em 1997, Jamil Mahuad, em 2000, e Lucio Gutiérrez, em 2005).
“Em dois dias, uma comunidade pode solucionar problemas que demorariam dez anos na Justiça comum”, conta o ativista indígena Joaquim Toroshima, da Ecuarunari (Confederação dos Povos de Nacionalidade Quéchua do Equador). Ele milita há quase duas décadas no movimento indígena – começou como alfabetizador em seu povo, os Kisapincha, da província de Tungurahua – e hoje é um dos coordenadores da entidade. “O que temos hoje é um grande avanço em relação à época em que o movimento começou. Antes, o índio era somente o peão; o patrão dispunha dele como queria.”
A Ecuarunari foi uma das entidades convocadoras do Encontro Internacional de Solidariedade com a Bolívia, evento que reuniu 1.584 delegados indígenas, entre os dias 23 e 25 de outubro, em Santa Cruz de La Sierra. O objetivo era angariar apoios internacionais entre os movimentos sociais, no momento difícil por que passa o país – da mesma forma que vem ocorrendo no plano oficial da Unasul (União das Nações Sul-Americanas) –, mas a ocasião serviu também para mostrar como os povos indígenas têm um protagonismo crescente na região andina.
O encontro foi ainda uma boa amostra do que é fazer política à moda indígena, por assim dizer. Iniciado com um ritual de xamãs equatorianos, envolvendo elementos como fogo, flores, pães, roupas e instrumentos musicais tradicionais, o evento teve discursos entremeados por danças e canções, além de distribuição de folhas de coca para a platéia.
E enquanto o evento se desenrolava em solo boliviano, na Colômbia – onde a Constituição já reconhece, desde 1991, a plurinacionalidade do Estado e, portanto, mecanismos como os da Justiça tradicional – milhares de indígenas da região de Cauca organizavam uma minga (palavra com sentido semelhante ao de mutirão) para reivindicar direitos sociais e respeito às comunidades, que vêm sendo expulsas de suas terras, além de sofrer com assassinatos, sobretudo de seus líderes. Na mesma semana, no Peru, indígenas bloquearam as vias que ligam as regiões de Cuzco e Puno ao resto do país em protesto contra os decretos legislativos que referendam um tratado de livre-comércio com os Estados Unidos.
Reivindicações étnicas
Na Bolívia, a nova Constituição nasce sob as bênçãos de Pachamama (deusa andina da terra) e do Deus cristão, conforme proclama o preâmbulo do documento. O governador do departamento de Cochabamba, Rafael Puentes, acompanhou como militante político a luta indígena e camponesa no país nas últimas três décadas e traça um panorama histórico desse processo: “É a primeira vez que as dimensões etnoculturais, sócio-classistas e patrióticas estão reunidas em um só movimento. Nunca se viveu algo assim na história do país”.
O governador, que participou do encontro em Santa Cruz, lembra que a mobilização indígena constituída a partir dos anos 1980 foi fundamental na construção do movimento que elegeu Morales. Na análise de Puentes, apesar de serem pouco expressivos numericamente, por estarem organizados em torno de reivindicações por direitos territoriais e respeito a especificidades culturais, os povos originários da região oriental do país1 foram imprescindíveis para despertar um enfoque étnico nas exigências da maioria quéchua e aimará2 da região andina.
Puentes lembra que, nos anos 1990, o ponto de encontro entre a mobilização dos indígenas do oriente e a luta dos quéchuas e aimarás, focada principalmente nos sindicatos, urbanos ou rurais, foi a região de Cochabamba, mais precisamente a área conhecida como Chapare. Oprimidos pelas políticas neoliberais, que se relacionavam tanto com o desemprego e a queda de renda como com a invasão de territórios tradicionais e a privatização dos recursos naturais, restou a esses “refugiados econômicos” buscar trabalho nas plantações de coca. O cenário político se completou com a reação patriótica aos abusos dos militares norte-americanos e suas políticas de erradicação da coca, com a justificativa de combate ao tráfico. O conflito mais conhecido desse período é a Guerra da Água, em 2000, quando o povo de Cochabamba se levantou contra o contrato da empresa norte-americana Bechtel para a concessão do sistema público de abastecimento de água. Em 2003, veio ainda a chamada Guerra do Gás, que mobilizou milhares de pessoas e resultou na deposição do então presidente, Gonzalo Sanchez de Lozada. Foram nessas manifestações e nas seguintes que apareceram reivindicações por uma Assembléia Constituinte. “A liderança do processo foi inegavelmente indígena e, se não fosse ela, estaríamos condenados a repetir os muitos fracassos que já tivemos na história do país”, diz o governador de Cochabamba.
Uma boa amostra do nível de organização dos indígenas das terras baixas é a Assembléia do Povo Guarani (APG), que existe desde os anos 1980 e já tem suas decisões validadas por lei nacional. Como relata Amancio Vaca, um dos coordenadores da APG, são mais de 350 comunidades guaranis, com cerca de 150 mil habitantes, que se reúnem periodicamente para escolher seus mburuvichas (líderes), com mandatos bianuais.
O nível de organização de entidades como essa dá respaldo para a idéia de autonomia indígena, ponto importante da nova Constituição e que prevê o autogoverno da propriedade e da Justiça comunitárias. A noção que norteia a incorporação dessas instituições ao marco legal do país é a complementaridade, como diz o vice-ministro de Descentralização da Bolívia, Fabián Yaksic: “Não podíamos seguir mantendo essas instituições na clandestinidade, como organismos paralelos. A Justiça comunitária não tem nada a ver com pena de morte ou linchamentos; é uma via expedita de resolver rapidamente conflitos que às vezes a Justiça ordinária levaria anos para examinar. A regulamentação dela vai justamente evitar manipulações ou excessos”.
Engana-se ainda (ou age de má-fé) quem imagina que as reivindicações indígenas por Estados plurinacionais possam envolver separatismo – um tema de interesse de grupos brancos e, sobretudo, de estrangeiros. É o caso da recente expulsão do embaixador norte-americano Philip Goldberg: o governo boliviano constatou que ele estava se reunindo indevidamente com os políticos do oriente separatista pouco antes dos conflitos mais graves, em setembro. Delírio persecutório? Não a se julgar pelo currículo do agente ianque, que esteve envolvido desde os anos 1990 em diversas missões relacionadas ao processo de desmantelamento da ex-Iugoslávia.
Os horizontes abertos pela idéia da constituição de Estados plurinacionais, como acontece no Equador e na Bolívia, têm gerado manifestações entusiasmadas, como a do português Boaventura de Souza Santos, que saudou a experiência equatoriana como uma “oportunidade histórica que não se pode desperdiçar”. Já um artigo dos italianos Antonio Negri e Giuseppe Cocco publicado na imprensa brasileira no início do ano destacava a experiência boliviana: “O caráter inovador da revolução boliviana está no fato de o poder constituinte se inserir no sistema das fontes do direito”. De fato.
*Spensy Pimentel é jornalista e doutorando em antropologia pela Universidade de São Paulo (USP).