O 4 de agosto de 1789, a abdicação dos riscos - Le Monde Diplomatique

REVOLUÇÃO FRANCESA

O 4 de agosto de 1789, a abdicação dos riscos

27 de setembro de 2011
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As dinâmicas revolucionárias às vezes se apoiam em alianças surpreendentes. Assim, nada predispunha os deputados reunidos em 1789 a derrubar um sistema secular de dominação. Como os representantes da nobreza e do clero, incitados pelos delegados do Terceiro Estado, acabaram abolindo os privilégios?

(Cena do filme Les Miserables (1933) do diretor Raymond Bernard)

Em 1902, Leninescreveuo livro Que fazer?. Neleconsiderou quenão pode haver grande transformaçãosocial semorganização “principalmentede homenscuja profissãoé a atividaderevolucionária”,isto é, agitadores, organizadores e especialistas em propaganda.Os bolcheviques rapidamenteadotaram esse modelo, abrindoum caminho a serseguido pormuitos outros, incluindoaqueles de diferentesopções ideológicas.O papel dessesmilitantes aguerridos–um JanValtin, umMax Hölz –no desencadeamentode greves einsurreições, assim como nodesenvolvimento e intercâmbio deideias, fez queeles se tornassem referência obrigatóriano imaginário progressista.[i]

Essasminorias atuantestambémdespertaram o interesseda polícia política:elas constantementereforçaram sua cooperação– seu internacionalismo precede frequentemente o próprio internacionalismoproletário–e buscaramincansavelmente,por trás de todaa mobilização social,as atividades ocultas de organizações subversivas perseguindo outros fins.

Apesar dese oporem, praticamente, em tudo, essas duasvisões concordam ao considerarque as dinâmicasrevolucionárias surgem da açãoconsciente,planejada e organizada de certos atores.

 

Divisão e reunificação dos Estados Gerais

A Revolução Francesademonstrou ainadequação detal análise.De fato, seestudarmos,como fez ohistoriador norte-americanoTimothyTackett,[ii]os membrosdas três ordens–clero, nobreza eTerceiro Estado–convocados, em maio de 1789, paraos Estados Gerais, édifícil encontraros habituais suspeitos da sedição.Ao contrário, se reuniram indivíduosque estavam entre osmais respeitáveisdo reino, príncipes, duques,marqueses, condes,barões,arcebispos, bispos, juízes, advogados, médicos,professores universitários,banqueiros…Com exceção deuma centena de membrosdo Terceiro Estadoe de partedo cleroformado porpárocos, a grande maioriados mildelegadosque convergiram a Versalhespertencia às categorias mais privilegiadasdo antigo regime.

No entantosão eles queem algumas semanasiriam derrubar as próprias basesdo sistemamonárquico.Anos após o fato, oconstituinteMalouetainda se espantava com o trabalho feitoem 1789:“De alguma forma,sem nenhum plano, nenhumobjetivo específico, os homensdivididos em suasintenções,seus hábitos eseus interesses,foram capazes de seguiro mesmo percursoe chegaramjuntos à subversãototal”.[iii]

Para explicar este fenômeno, historiadores comoAlbertSoboulou Michel Vovellefocaram numa profunda crise financeirado Antigo Regime,no antagonismo entre a burguesiafinanceira e a nobreza fundiária.Na verdade, aprimeira financiavacada vez maisas dívidasda monarquia, sem, no entanto, teracesso ao poder político,capturadopela segundaem virtudede seu nascimento.

Apesar de correta nesse mérito, essa análiseignorademais o encadeamento de eventos pelos quais os delegadosdos Estados Gerais se transformaram em revolucionários e, coletivamente, concluíram que omundo político e institucionalquesempre conheceram deveria ser derrubado.

A revoluçãoaconteceuaos trancos e barrancos, ninguémconseguiudominá-la completamente. Ela começou como reforço daunidade doTerceiro Estadoque, ironicamente,seria incentivadopela atitudedo cleroe da nobreza.De fato, recusando-se ase juntar como Terceiro Estado eforçando-o areunir-se separadamente,as classes privilegiadascontribuíram paraque este desenvolvesse uma coesão que suas diferençasde origeme aspiraçõestornavam improvável.A intransigênciados nobres, liderados porsuafacção mais conservadora, provocouuma hostilidadevirulentacontra eles.Sua arrogânciae desdémirritaram até mesmo os delegados maismoderadosdo Terceiro Estado, de modo queeles se constituíram, em 17 de junho,em Assembleia Nacional, semrepresentantes das duasoutras ordens.

O decretode fundaçãodessa assembleiaindicavaque ela passaria a controlartoda a arrecadação de impostos.A medida,extremamenterevolucionária,imediatamentedesencadeou a hostilidadedo rei.Este último deixou entenderqueiriadissolver a assembleiae posicionou as tropas,cercando asala do Conselho.Masa queda de braço estava instalada,os deputadostomaram o novo papela sério e, encorajados peloapoio entusiasmadode centenas deversalheses e parisienses que assistiam às sessões, declararamquequalquer um quetentassedispersá-losouprendê-losseria “culpado de um crimecapital”. A audáciadesseato coletivoacelerou o ritmoda mobilização,uma boa partedo cleroe, depois, 47 nobres, sejuntaram à Assembleia Nacional.O reientão provocouuma reviravolta.Ele ordenou ao cleroe à nobrezaque se sentassem na assembleia, noque eleainda chamavaos Estados Gerais.Os deputados das três ordens se puseram a trabalharemvárias salase comissões,reduzindopouco a poucoos antagonismosexistentes entre eles, apenas alguns dias antes.

Alentapacificação das relaçõesem Versalhes, no entanto,contrastava como agravamento da situaçãogeral no país.Uma violenta insurreição popular eclodiu, em 12 de julho, em Paris. A Bastilhafoi tomada no dia 14,e cenas delinchamento(incluindo a dointendente de Parise seu filho,acusados como responsáveispelas dificuldadesde abastecimento) se multiplicaram.Os saques e tumultosse espalharam paraas províncias, causando o queé conhecido comoo Grande Medo.Aadministração realpareciaà beirado colapso eincapaz derestaurar a calma.Inquietos –e às vezeshorrorizados– com a situação, os deputadosinauguraram umasérie de debatessobre as medidas a tomar para acabar comos distúrbios.Oencontro histórico de4 agosto de 1789realmente começoucom um debate sobre um decretopara restaurara lei e a ordem…

 

“A posteridadenuncavai acreditar”

Em meio aosdebates, dois representantesda alta aristocracia, ovisconde deNoaillese oduque deAiguillon–ecoandoas queixas dosmanifestantes–propuseram, para surpresa deseus colegas, acabar comos direitos feudais e estabelecerum impostoproporcional à renda.O duque de Chatelet,cortesão epar do reino,comandante-em-chefe das tropasquereprimiram osdistúrbios emParis,em meados de julho,e consideradointransigente, declarou oficialmenteque renunciaria aos direitossobresuas terras, sujeitoa uma "compensação justa".

Uma espécie deeuforiatomou contada assembleia e,um após outro, os deputadosvieram fazersuas próprias ofertas: introduçãode um sistema judicial grátis,supressão dos direitoscasuais do clero, os direitos de caça, a reformado imposto sobre o sal e transações comerciais, abolição de certos privilégiosprovinciaisou municipais…Às2 horas da manhã, aparentemente,nada restava a oferecer.Por um breve momentouma curiosa mistura deidealismo, inquietudee fraternidadereuniu os deputados de todas as ordens.Ummomento, que odeputadoPellerin,tarde da noite,assim descreveuem seu diário:“A posteridadenuncavai acreditar no quea Assembleia Nacionalfezno espaço decinco horas.[Ela]destruiuos abusosque existem hánovecentos anose que um século defilosofiatinham combatidoem vão”.[iv]

Claro,os antagonismosressurgiram em seguida,quando se discutiua nacionalização dos bens do clero, ou quando, em 19 de junhode 1790,a assembleiavotoua abolição danobreza hereditária, provocando a saídade grande partedos aristocratas, que forampara os exércitosdos emigrantes lutarcontra a Revolução.Mas a noitede4 de agosto de 1789, queviu aabolição dos privilégios,não deixa de ser uma ilustraçãoesclarecedorade como,numa situação de crise,as dinâmicas específicasda assembleiapodem ter levadoos membrosa adotarposições revolucionárias que, algumas semanasantes,lhes teriam parecido totalmenteinconcebíveis.

 

 

BOX

"Vocês julgam os crimes da aurora" Por Victor Hugo

Quando vocês traduzem, juízes, no seu tribunal

A Revolução, que foi dura e bárbara

E feroz a ponto de caçar as corujas;

Que, sem respeito, faquir, derviches, marabus,

Importunou todas as pessoas da igreja, e fez fugir,

Só com o olhar, o padre e o jesuíta,

A ira lhes toma.

 

Sim, é verdade, doravante

O homem-rei, o homem-deus, fantasmas dos cumes,

Se apagam, fantasmas guerreiros, vampiras pontificais;

Um vento misterioso sopra nessas testas pálidas;

E vocês, o tribunal, vocês estão indignados.

Que luto! As negras moitas de lágrimas estão banhadas;

As festas da noite voraz terminaram;

O mundo sombrio lamenta; só agonias!

É dia, é terrível! e o morcego

É cego, e a doninha erra bradando;

O verme perde seu esplendor; infelizmente, a raposa chora;

Os animais que iam caçar de noite, na hora

Em que o passarinho dorme, estão desesperados;

A desolação dos lobos enche o bosque;

Os espectros oprimidos não sabem mais o que fazer;

Se isso continuar, e se esta luz

Persistir a atemorizar a águia do mar e o corvo;

O vampiro morrerá de fome na sepultura;

O raio sem piedade toma a sombra e a devora… –

Ó juízes, vocês julgam os crimes da aurora.

 

L’Année terrible (1871) (O ano terrível). Paris: Gallimard, coleção “NFR”, 1985.



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