O acesso dos povos indígenas ao ensino superior
O acesso às universidades por estudantes indígenas, historicamente privados da cidadania em um país historicamente estruturado sobre bases escravistas, racistas e neocolonizadoras, constitui uma das vias de acesso à conformação democrática, que se pretende a partir da visão institucionalizada e normatizada a partir de 1988
O ano de 1985 marcou o fim agonizante de um regime ditatorial que deixou o Brasil fraturado, endividado, com milhares de mortos e desaparecidos e com a sede de democracia que inspirou o movimento Diretas-Já e que, ainda que não tenha alcançado o resultado imediato buscado, isto é, a realização de eleições diretas para presidente, inspirou o ambiente de novos ares que parecia surgir. Em relação aos povos indígenas, a ditadura mostrou-se também violenta, colonizadora e etnocida, como demonstra o relatório da Comissão Nacional da Verdade, de 2014, e pesquisas recentes. Ao menos 8.350 indígenas foram comprovadamente mortos, além de terem sido proibidos de praticar suas culturas, falar suas línguas; sofreram inúmeros processos de desterritorialização etc.
Em 1988, após histórica e direta participação dos povos indígenas na Constituinte, a nova Carta promulgada consagrava os direitos fundamentais, a democracia e os limites à atuação do Estado brasileiro, historicamente racista e autoritário.
Em relação aos povos indígenas do Brasil em suas mais de quatrocentas distintas culturas e etnias, se somados os povos em contato direto e intermitente com a sociedade envolvente e também os povos e grupos isolados, a citada Constituição promoveu verdadeira ruptura com a visão assimilacionista e garantiu, enquanto direito fundamental e cláusula pétrea, o direito a ser diferente e viver com dignidade, com direito de acesso aos serviços públicos garantidos a qualquer cidadã e cidadão brasileiros ao determinar que é garantida a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, preservação das culturas indígenas, afro-brasileiras etc.
A consideração às matrizes e cosmologias de cada etnia indígena, quilombola etc. pela Constituição implica a necessidade de que se favoreça ao povo brasileiro a aquisição de capacidade crítica para compreender que a supressão direta ou indireta, por omissão e tolerância, das bases essenciais para que referidas culturas possam se projetar e seguir seus naturais processos relacionais, implica em etnocídio e não podem ser admitidas.

Devem o Estado e a sociedade brasileira, inclusive o setor privado e produtivo, preservar os referenciais identitários dos povos indígenas e de suas culturas, seja por meio de políticas públicas eficazes ou, ainda, pela cobrança das autoridades no sentido de que respeitem e cumpram as leis, nacionais e internacionais.
O acesso às universidades por estudantes indígenas, historicamente privados da cidadania em um país historicamente estruturado sobre bases escravistas, racistas e neocolonizadoras, constitui uma das vias de acesso à conformação democrática, que se pretende a partir da visão institucionalizada e normatizada a partir de 1988.
Embora importantes universidades venham adotando nos últimos anos um modelo adequado e que observa as necessidades e os contextos cosmológicos de nossos povos originários, equívocos evidentes ainda podem ser encontrados, por exemplo, mesmo por ocasião da adoção de políticas afirmativas. Vale dizer, não bastam boas intenções, é preciso que nossos povos ancestrais sejam ouvidos para que se aprenda com eles.
Os povos indígenas, suas línguas, tradições e estratégias de resistências se atualizam no tempo, assim como se renovam as brutais violências promovidas pelo estado em relação a esses povos. Os ecos das guerras justas dos séculos passados ressoam nas violações de direitos nos dias atuais e no silenciamento.
A despeito do racismo e das permanentes práticas anti-indígenas no Brasil, nas últimas décadas acompanhamos substantivos avanços dos direitos originários, especialmente a partir da carta constitucional promulgada em 1988. Dentre os direitos conquistados estão as ações afirmativas e seus desdobramentos na oferta da educação escolar indígena diferenciada, a criação de cursos específicos para a formação de professores indígenas e a Lei de Cotas, sobre a qual focaremos o debate nos parágrafos seguintes.
A Lei 12.711 de 29 de agosto de 2012, conhecida como Lei de Cotas, deve ser entendida como conquista dos movimentos populares, com o destaque ao protagonismo do movimento negro e do movimento indígena, grupos mantidos historicamente à margem dos territórios universitários. A efetivação da política de cotas tem colocado em xeque o sistemático racismo nas instituições de ensino superior, à medida que a cada ano as salas de aulas, corredores e outros espaços universitários expressam a presença da juventude negra e, ainda que em menor quantidade, a indígena, trazem em suas mochilas uma bagagem repleta de saberes milenarmente construídos.
Segundo o censo do ensino superior no Brasil, de 2018, apresentado pelo Inep-MEC, 57.706 indígenas têm matrícula em diversos cursos superiores, fato que demonstra o grau de dificuldade para entrada nos referidos cursos, e essa dificuldade se acentua ainda mais no que se refere à entrada de indígenas-mulheres no ensino superior, que infelizmente lideram a lista entre pretas, pardas, amarelas e não declaradas, com 0,5% a ocupar as universidades públicas em todo país.
Observa-se, ao mesmo tempo, a problemática das altas taxas de evasão de indígenas, uma vez que os valores sustentados pelo humanismo não conseguem comportar as pluriepistemologias presentes nos diversos corpos-territórios ingressantes nas universidades. A situação se agrava quando nos deparamos com o alto grau de vulnerabilidade socioeconômica dessas/es estudantes e a insuficiente política de garantia da permanência nos referidos cursos.
As universidades estaduais paulistas paulatinamente aderiram à Lei de Cotas, possibilitando o diálogo intercultural ao mesmo tempo em que reconhecem a dívida histórica deixada pelas ações bandeiristas em relação aos povos indígenas. A respeitada Universidade de São Paulo (USP) foi a última das universidades estaduais a aderir a esse processo irreversível, deparando-se com uma série de desafios para a garantia da lisura na admissão das pessoas que preencheriam as referidas vagas.
Importa ressaltar que os coletivos dos movimentos negro e indígena protagonizaram uma árdua batalha na realização de uma série de articulações e ações políticas que desembocaram na adoção do regime de cotas na USP. Inúmeras reuniões e uma greve realizada em 2016 foram fundamentais para romper a redoma que impedia o ingresso desses grupos subalternizados na conceituada instituição de ensino superior (IES).
No que tange ao movimento indígena, merecem destaque as mobilizações realizadas pelo coletivo Levante Indígena da USP, que esteve lado a lado com o movimento negro e outros coletivos nas negociações pela realização das ações afirmativas na universidade. Em 2017 o Levante Indígena da USP entregou em mãos um documento à Reitoria que propunha a adoção das cotas, bem como o vestibular diferenciado para estudantes indígenas, quilombolas e de comunidades tradicionais.
Depois de muitos diálogos e articulações políticas, em 2017 a USP adotou a reserva de 50% das vagas de cada curso para estudantes que cursaram o ensino médio em escola pública. Nessa reserva, a instituição aprovou o porcentual de 35% de vagas para ingresso de estudantes autodeclarados pretos, pardos e indígenas, política que ficou conhecida como PPI, levando em consideração que este é um “índice equivalente à proporção desses grupos no Estado de São Paulo verificada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)”, segundo matéria do Jornal da USP.
Reconhecendo a PPI adotado pela USP como um avanço, é necessário realizar uma avaliação crítica das ações no sentido de perceber que a mesma ficou distante de contemplar as reais as demandas dos povos indígenas. Os membros do Levante Indígena da USP e membros do núcleo Rede Indígena, vinculado ao Instituto de Psicologia, compostos por docentes, pesquisadores, estudantes da universidade, além de voluntários, realizaram levantamentos indicando que a realização da PPI na USP impactou com a diminuição do número de ingressantes indígenas, uma vez que as normativas determinam que os candidatos indígenas concorrerão às mesmas vagas com candidatos de pertencimento negro e pardo. A proposta do vestibular diferenciado foi rejeitada.
No entanto, o modelo aprovado coloca os indígenas em desvantagem, demonstrando os diversos equívocos na implantação das ações afirmativas voltadas para os povos indígenas na instituição. O alto déficit histórico da educação escolar indígena é uma barreira para a entrada de estudantes indígenas no ensino superior e, além disso, nos últimos anos a educação escolar indígena vem seguindo outro parâmetro curricular pautado na educação escolar indígena diferenciada, bilíngue, intercultural, específica e comunitária.
Assim sendo, fica evidente a necessidade de vestibulares específicos, com a análise do memorial do candidato e com provas realizadas preferencialmente nos territórios originários, como fazem outras importantes universidades, como a Unicamp, UFSCAR, UFMG e outras IES.
Em maio de 2022 o Conselho Universitário da USP aprovou a criação da Pró-Reitoria de Inclusão e Pertencimento (PRIP), responsável pelas ações relacionadas às políticas afirmativas e permanência naquela universidade. Entre outros compromissos, a nova Pró-Reitoria assumiu de imediato a construção da Comissão de Heteroidentificação para averiguar a autodeclaração de candidatos aptos a se beneficiar do recorte étnico-racial e, para tal, organizou uma audiência pública que foi realizada no dia 12 de julho do corrente ano, nas dependências da USP. A audiência contou com a presença de representantes da universidade, representantes do Ministério Público do Estado de São Paulo e da União, Defensoria Pública do Estado de São Paulo e da União, além de representantes de coletivos e dos movimentos negro e indígena.
Apesar da presença de representantes dos povos indígenas, foi esclarecido no decorrer da audiência que pessoas de pertencimento indígena não serão averiguadas pela Comissão de Heteroidentificação, pois os critérios fenotípicos não atendem às realidades indígenas.
Tal medida é acertada, considerando as diversidades socioculturais dos povos indígenas; no entanto, permanece um equívoco nas normativas, quando se estabelece o reconhecimento dos candidatos indígenas por meio do Registro Administrativo de Nascimento de Indígena (Rani), emitido pela Fundação Nacional do Índio (Funai). Trata-se de um documento que pode servir para solicitar o registro civil, que equivale ao documento de nascido vivo, entregue aos pais pelo hospital, ou seja, é um documento totalmente dispensável para nascimentos de indígenas fora das aldeias. Sendo meramente administrativo, não pode servir em hipótese nenhuma como parâmetro para aquisição do direito às cotas para ingresso em universidades.
Exigir o Rani como prova de pertencimento indígena é um absoluto desconhecimento da realidade indígena. A Funai reluta contra o reconhecimento de indígenas que vivem nas cidades, portanto, não é uma instituição representativa dos direitos originários.
Avançando nas avaliações, somos da opinião de que a USP não deveria entregar à Funai a reponsabilidade de selecionar os candidatos aptos a se beneficiar das vagas reservadas. Diálogos focados com as organizações representativas desses povos demonstrariam facilmente que a referida agência oficial indigenista não é confiável, pelo contrário, trata-se de uma instituição anti-indígena, especialmente na atual conjuntura política.
Para exemplificar, o jornal Valor Econômico publicou matéria no dia 6 de junho de 2022 informando que o MPF apresentou denúncia contra o presidente da Funai, Marcelo Xavier, por este ter caluniado o procurador Ciro de Lopes Barbuda, acusando-o de fazer apologia ao crime, por ter se pronunciado favorável à demarcação do território Tupinambá na Bahia.
Na edição do dia 12 de maio de 2021, o Brasil de Fato informou que a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) entrou com representação criminal no MPF contra o presidente da Funai, após Sônia Guajajara, coordenadora da organização indígena, ser intimada pela Polícia Federal. A Funai tem criminalizado lideranças indígenas, como aconteceu com a própria Sônia Guajajara e Almir Suruí em 2021. Não sem razão, o referido presidente da Funai vem sendo rechaçado inclusive nas esferas internacionais, como ocorreu em 21 de julho último, ao ser cobrado por suas ações durante a realização do evento “Fundo para o Desenvolvimento dos Povos Indígenas da América Latina e Caribe” (Filac), em Madri, ocasião em que foi chamado de “assassino” e “miliciano”, vendo-se obrigado a se retirar o evento.
Portanto, é inadmissível que uma instituição que viola os direitos dos povos indígenas e persegue as lideranças desses povos seja legitimada para fins de nomear o direito de pessoas indígenas ingressarem nas universidades pelo regime de cotas.
Os debates protagonizados pelo movimento indígena apontam para um processo que leve em consideração o autorreconhecimento do candidato indígena, acompanhado por um documento de reconhecimento assinado por lideranças indígenas e/ou associação indígena do povo ao qual o candidato se reconhece.
A USP, instituição que mantem em seu quadro docentes pesquisadores indigenistas renomados, tem que ampliar o diálogo com as organizações do movimento indígena nacional e local. Ouvir as vozes historicamente silenciadas e promover políticas públicas inclusivas, sintonizadas com as demandas desses povos.
Garantir o acesso das/os estudantes indígenas ao ensino superior implica em resistência à desterritorialização, ideia com dimensões muito superiores ao critério puramente geofísico.
Cultura é território sagrado.
Aline Ngrenhtabare Kaxiriana Lopes Kayapó, pertencente aos povos indígena Mebengokré do Pará, Aymara-Peru e Tupinambá da Terra Indígena Uruitá, mãe do Yupanki Bepriabati, escritora, ilustradora, ceramista, batedora de açaí, artista plástica, pesquisadora indígena, empreendedora, ativista no movimento indígena nacional, membra fundadora do Movimento Wayrakuna Brasil – Rede de Resistência artístico-filosófica que se vincula à reflexão da resistência das indígenas mulheres no Brasil e no mundo. Membra do conselho editorial da GRUMIN, graduanda em Direito pela UNIFTC, membra do Núcleo de Direitos Indígenas e Quilombolas da Comissão de Direitos Humanos da OAB-SP e membra do Parlamento Indígena do Brasil.
Edson Bepkro Kayapó, pertencente ao povo Mebengokré, nascido no estado do Amapá. É membro do Parlamento indígena do Brasil, doutor em Educação, professor no IFBA e no PPGER/UFSB, escritor e membro do Núcleo de Direitos Indígenas e Quilombolas da Comissão de Direitos Humanos da OAB-SP.
Flávio de Leão Bastos Pereira, pós-doutorado em Direitos Humanos e Tecnologia pela Mediterranean International Centre For Human Rights Research, Programa New Technologies and Law, na Calabria (Itália), no qual apresentou pesquisa sobre o uso da tecnologia pelos povos indígenas na defesa de seus territórios. Especialista em Genocídios e Direitos Humanos pelo Zoryan Institute e Universidade de Toronto (Canadá). Professor convidado da Universidade Tecnológica de Nuremberg (2020-2022). Coordenador do Núcleo de Direitos Indígenas e da Memória, ambos da Comissão de Direitos Humanos da OAB/SP. Autor da obra Genocídio Indígena no Brasil: O Desenvolvimentismo entre 1964 e 1985, Ed. Juruá, 2018.