O adeus às armas?
Em 24 de junho, a Frente de Libertação Nacional da Córsega anunciou a decisão unilateral de iniciar o processo de desmilitarização e sair da clandestinidade. Após o adeus às armas do IRA e do ETA, esse anúncio assinala o fim das três últimas lutas armadas da Europa Ocidental. As soluções políticas ainda são incertas Pierre Poggioli
Os três movimentos armados em luta contra os Estados britânico, espanhol e francês sobreviveram várias décadas a mais que outras organizações clandestinas que emanavam de nações sem Estado, na Bretanha, nas Antilhas francesas, na Catalunha, no País de Gales e na Escócia. Eles sobreviveram igualmente a numerosas lutas armadas de extrema esquerda que marcaram a Europa nos anos 1970 e 1980: Fração do Exército Vermelho na Alemanha, Brigadas Vermelhas na Itália, Ação Direta na França, Organização Revolucionária 17 de Novembro na Grécia, para citar apenas as mais célebres.
A perenidade do Exército Republicano Irlandês (IRA), do Euskadi ta Askatasuna (ETA) e da Frente de Libertação Nacional da Córsega(FLNC) explica-se antes de tudo por sua ancoragem nos territórios em questão. Nem a repressão nem as dissoluções decididas pelos Estados conseguiram erradicá-los. Apesar da estigmatização da “opção pelas armas”, essas organizações clandestinas não foram encaradas como “terroristas” pelos corpos sociais dos quais eram oriundas. Intimamente associadas a formações públicas ou “ramos políticos”, elas se valem da aceitação de reivindicações históricas, apesar de certos erros ou desvios. Sua luta lhes deu forte visibilidade, impelindo os Estados a fazer várias tentativas de soluções negociadas, alternadas com longas ondas punitivas. No entanto, apesar de inúmeros pontos em comum e de intercâmbios regulares, essas organizações tinham projetos políticos diferentes.1 Sua história e sua renúncia à clandestinidade devem ser vistas em contextos particulares.
Primeira das três organizações a decretar o abandono das armas, o IRA nasceu em 1919, no contexto da guerra de independência (1919-1921), e emana do Sinn Féin, movimento político criado em 1905. Dividido durante a guerra civil irlandesa (1922-1923),2 ele concentrou em seguida suas ações contra os interesses britânicos, principalmente na Irlanda do Norte. No final dos anos 1960, os católicos, minoritários no norte, reclamaram a igualdade de direitos civis com os protestantes. A repressão brutal pelas forças britânicas quando das marchas pacíficas por essa igualdade provocou seu retorno à luta armada.
No Euskadi, o Partido Nacionalista Basco (EAJ-PNV) foi fundado em julho de 1895. Durante a Segunda República espanhola, o “estatuto de Guernica” adotado em 1936 concedeu “autoridade” verdadeira à região, que se tornou um Estado quase independente, mas a ditadura franquista suprimiu esse estatuto e forçou o governo basco ao exílio. Em dezembro de 1958, jovens que se opunham aos conservadores do PNV criaram o ETA e deram golpes duros no regime franquista. Posteriormente, a organização encontrou um viés político com a Herri Batasuna, que surgiu em 1978 e contou com vários representantes eleitos locais antes de sua dissolução em 2000.
Em 21 de agosto de 1975, Edmond Simeoni e militantes da Ação Regionalista Corsa (ARC) ocuparam em Aléria a adega de um importante viticultor repatriado em meio a um amplo escândalo agrícola. As forças da ordem intervieram em grande número; dois policiais foram mortos. Uma semana depois, a ARC foi dissolvida e enfrentamentos sangrentos aconteceram em Bastia. A FLNC foi fundada em 5 de maio de 1976, como reação a esses acontecimentos.3 Organizações clandestinas – a Frente Camponesa de Libertação da Córsega (FPLC) e a Ghjustizia Paolina – haviam-na precedido no início dos anos 1970, mas elas só tinham uma existência marginal na resistência corsa, dominada pela ARC,fundada em 1967 pelos irmãos Edmond e Max Simeoni, e que deu lugar após sua dissolução à Associação dos Patriotas Corsos (APC) e depois à União do Povo Corso (UPC).
Desde o início, a luta defendida da FLNC foi de menor intensidade que aquela levada a efeito pelo IRA e pelo ETA. O movimento clandestino sempre evitou as ondas de atentados assassinos. Ele se limitou a ações muito específicas e pontuais, visando essencialmente edifícios e serviços do Estado, ou construções que desfiguravam o litoral corso. Ele não foi confrontado, é verdade, com as mesmas situações que os bascos ao enfrentar o franquismo e seus prolongamentos, ou os irlandeses às voltas com uma situação de guerra.
A deposição das armas
Para além dos contextos locais, as primeiras evoluções em direção aos processos de paz têm a ver com a situação internacional. Na Irlanda, de onde é originária uma poderosa diáspora instalada nos Estados Unidos, a diplomacia norte-americana pesou para reforçar o processo de desmilitarização do conflito, levado a efeito em 1994 por um primeiro cessar-fogo que permitiu a abertura de discussões depois dos Acordos da Sexta-Feira Santa, concluídos em 10 de abril de 1998, em um período de forte crescimento econômico no sul da ilha, apresentada então como o “tigre céltico”.
Em 28 de julho de 2005, o IRA ordenou a todos os seus militantes que depusessem as armas, pedindo-lhes que lutassem pela reunificação da ilha e pelo fim da tutela britânica pelas vias democráticas. Em 26 de setembro de 2005, o chefe da comissão de desarmamento, o general canadense John de Chastelain, anunciou que o arsenal do IRA tinha sido completamente desmantelado.
No país basco, o ETA foi consideravelmente enfraquecido pela situação política oriunda do pós-franquismo e pela força da repressão, por vezes totalmente ilegal,4 que cresceu após os atentados islâmicos de Madri de março de 2004. As campanhas de atentados que provocaram a morte de civis, assim como o assassinato de personalidades próximas do PNV, favoráveis à paz, ou de jornalistas, enfraqueceram sua luta. Levando em conta o crescimento de poder em seu movimento de um discurso favorável à paz, o ETA anunciou em 20 de outubro de 2011 a “cessação definitiva de sua atividade armada”. Essa decisão decorre de um “engajamento claro, firme e definitivo”, após numerosas tréguas de vários tipos. Em 21 de fevereiro de 2013, os especialistas da Comissão Internacional de Verificação do Cessar-Fogo (não reconhecida pelo governo espanhol) confirmaram o início da desativação do armamento da organização. Enfim, em 20 de julho de 2014, o ETA anunciou que tinha completado o “desmantelamento das estruturas logísticas e operacionais ligadas à condução da luta armada”.
A FLNC também estava muito enfraquecida pelas ondas de interpelações. As discórdias mortais dos anos 1990 entre movimentos clandestinos (cerca de vinte militantes assassinados) deixaram marcas, assim como certos desvios em negócios ligados à prática do imposto revolucionário. O assassinato do prefeito Claude Erignac, em 6 de fevereiro de 1998, não se inscrevia numa estratégia dos movimentos clandestinos, mas reforçou o campo dos partidários de uma reflexão sobre os limites da ação armada. O apoio da população e da juventude diminuiu, e a situação beneficiou os nacionalistas considerados “moderados”.
Situações políticas diferentes
Desde o processo de paz na Irlanda, concluído com os Acordos de Saint Andrews, em 13 de outubro de 2006, o Sinn Féin governa Belfast com o Partido Unionista Democrata (DUP, protestante). Ele avançou ainda mais nas últimas eleições europeias, incluído aí o Sul. A demografia dinâmica da comunidade católica lhe deixa esperança de realizar cedo ou tarde seu sonho de unificação.
No País Basco, o adeus às armas decorre de um processo militar unilateral iniciado pela esquerda independentista. Não houve nenhum acordo prévio com os governos espanhol ou francês, ainda que emissários espanhóis tenham realizado negociações discretas em Oslo, antes de interrompê-las brutalmente. O ETA se recusa a se dissolver se algumas de suas reivindicões não forem satisfeitas: reunião dos prisioneiros políticos dispersos nas prisões espanholas e francesas, tratamento prioritário dos detentos doentes e do dossiê dos refugiados bascos. Na cena política pública, os independentistas majoritariamente alinhados à direita avançam fortemente, rivalizando com os autonomistas do PNV no poder. O movimento basco, em que se confundem todas as tendências, considera ultrapassado o estatuto atual de autonomia e reivindica o direito à autodeterminação.
Na Córsega, a decisão da FLNC visivelmente não foi alvo de debates no seio do movimento nacionalista. Ela também não ocorreu após reais avanços políticos negociados – por exemplo, em 1981, com o primeiro estatuto da ilha ou as discussões do Estatuto Joxe, em 1989 – nem mesmo depois de uma reunião dos militantes detidos na França. Apenas os votos recentes da Assembleia da Córsega testemunham uma evolução notável. A inscrição da Córsega na Constituição Francesa por uma maior descentralização, pela cooficialidade da língua corsa, pelo estatuto de residente permanente para limitar a proliferação das residências secundárias e por um regime fiscal específico: muitas reivindicações defendidas agora por uma maioria de representantes eleitos de todas as tendências, para além da representação nacionalista, que conta com catorze de 51 representantes.
Na Assembleia da Córsega, a corrente moderada, que rejeita o emprego da violência, tornou-se majoritária, contrariamente ao que ocorria nos anos 1980 e 1990. Ela chegou a reforçar sua posição nas eleições municipais de 2014, sobretudo em Bastia, onde Gilles Simeoni, filho de Edmond Simeoni, tornou-se prefeito com o apoio de dissidentes de esquerda e de direita. A coalizão Femu a Corsica, de Jean-Christophe Angelini e Gilles Simeoni, desestabilizou a ala “radical”, que teme se ver marginalizada num momento-chave para a evolução institucional da ilha. Esta, no entanto, permanece bem longe de ser conquistada, já que o governo não parece disposto a aceitar os votos da Assembleia da Córsega. Em visita à ilha em 12 de maio, o ministro do Interior, Bernard Cazeneuve, fechou a porta às reivindicações mais simbólicas, ainda que em julho a ministra da Descentralização, Marylise Lebranchu, tenha servido como moderadora para suas propostas.
Uma paz de cemitério?
O adeus às armas da FLNC, um mês após essas declarações ministeriais, surpreendeu muitos observadores, ainda que a violência política parecesse chegar a um final de ciclo. Nada faz pensar que ele seja consequência de negociações ou que fará o governo evoluir. A libertação dos militantes detidos e a interrupção das perseguições não parecem estar na ordem do dia.
Estamos bem longe da situação da Irlanda, na qual toda a classe política britânica acompanhou o processo de paz e permitiu libertar os presos de então, deixando a eles a tarefa de convencer o IRA a abandonar as armas. Se a resposta se limitasse a migalhas de poder, o futuro poderia ser mais sombrio do que pensam alguns, angélicos ou cínicos. Soldados perdidos e uma juventude testemunha da agonia da cultura corsa correm o risco de se desviar para posições identitárias confusas ou para uma marginalidade que confirma cada vez mais a influência da grande delinquência.
Isso porque assistimos à instalação de uma criminalidade organizada, que evolui para um novo tipo de máfia, diferente dos modelos italianos e inédito na ilha. Seu desenvolvimento é indissociável a um só tempo do sistema político insular, marcado pelo predomínio dos clãs, e das estratégias de um Estado que concentra sua repressão sobre os nacionalistas, deixando que os grupos criminosos se recomponham.
Apesar de seus erros, a luta armada tinha contribuído para conter as forças mafiosas. Hoje, a Córsega deteriora-se por causa das renúncias e do fatalismo. O flagelo mafioso dinamita todas as engrenagens da sociedade, para acabar regendo de forma definitiva as relações sociais, econômicas e políticas. Intimidações de todo tipo, pressões, cortes na vida econômica e assassinatos sucedem-se: a engrenagem ameaça se tornar irrefreável se não houver uma reação.
Pierre Poggioli é dirigente histórico da Frente de Libertação Nacional da Córsega (FLNC) e antigo membro nacionalista da Assembleia da órsega (1984 – 1998). Sua última obra é Corse: entre néo-clanisme etmafia, Fiara Édition, Cabruccia, 2013.
[Publicado na edição 87 do Le Monde Diplomatique Brasil – outubro de 2014]