O “amigo” inconveniente
Para a Europa, os Estados Unidos estão se tornando um aliado indesejável, que invade unilateralmente os países e, com a desculpa da “defesa preventiva”, gasta fortunas astronômicas com seu orçamento militar. Nessas condições, é surpreendente que a sobrevivência da Aliança Atlântica não seja posta em discussão
É fato que as análises sobre o vínculo transatlântico entre Europa e Estados Unidos vêm se multiplicando. O ex-primeiro-ministro francês Edouard Balladur1, por exemplo, preconiza um novo equilíbrio entre os dois atores na administração da segurança mundial. Afoito, considera “Ocidente” sinônimo de “democracia” em seu último livro. A opinião é compartilhada pelo relatório Towards a grand strategy for an uncertain world: renewing transatlantic partnership, elaborado por cinco antigos generais que hoje trabalham com a Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan). Apoiados em conceitos do pensamento belicista americano, tais como o da preempção no emprego da força nuclear2, os autores vislumbram a criação de uma diretoria conjunta entre Estados Unidos e União Européia para revitalizar a aliança militar3.
Os dois escritos têm alguns pontos comuns: eles entendem o mundo exterior à Otan como uma ameaça4; apresentam como natural a idéia de um Ocidente unido por valores similares frente a uma globalização caótica; e reclamam a ampliação das missões da organização, após a constatarem a impotência dos exércitos ocidentais nas intervenções do Afeganistão e do Iraque.
Uma questão, porém, ainda não foi debatida: e se os Estados Unidos constituírem um grave risco para a segurança internacional nos próximos vinte anos? Longe de ser ilegítima, esta interrogação vai além da equipe atualmente no poder em Washington e deveria ao menos suscitar o debate entre os europeus. O terrorismo islâmico e a proliferação das armas de destruição em massa são ameaças bem reais, mas se classificarmos, por acordo tácito, os Estados Unidos na categoria “soluções”, excluiremos de antemão uma outra eventual fonte de terror.
O planeta está passando por uma fase de transição. De um sistema unilateral militarizado, dominado por uma única hiperpotência, emerge progressivamente um multilateralismo, caracterizado pela ascensão de novas potências (China, Índia e União Européia), pela existência de outros Estados com arma nuclear (Israel, Paquistão, Coréia do Norte e futuramente o Irã) e pela necessidade de lidar com a escassez do petróleo e das matérias-primas. Muito além das ameaças mais evidentes alguns prováveis roteiros de guerra vêm se desenhando em função de ações militares decididas de forma isolada, tal como a invação do Iraque, e da disputa por recursos parcos. Nesse cenário, não é absurdo imaginar que Washington desempenhe um papel desestabilizador.
Implantado em 1991, o unilateralismo americano possui características únicas, que se ampliaram repentinamente com o trauma dos atentados de 11 de setembro de 2001. Hoje, o poder dos Estados Unidos transpõe os limites gerais associados à soberania clássica e se estende ao planeta como um todo. Sem rivais, sua identidade interventora é justificada por um “particularismo sacralizado” ou um “messianismo democrático radical”. Isso significa, antes de qualquer coisa, ter o poder de recusar as regras de segurança comuns. Desde a época de Bill Clinton (1993-2001), as autoridades americanas avançaram muito nessa matéria, adotando uma série de medidas tais como a retirar-se do Tratado Antimísseis Balísticos de 1972 para implantar, por conta própria, o programa de defesa antimíssil; aplicar de forma muito “maleável” a convenção biológica, que proíbe toda arma desta natureza5; e recusar as inspeções sobre as armas químicas, alegando a necessidade de proteger segredos industriais. Ao proceder desta forma, Washington posiciona-se exatamente como a China e o Irã, rivais que tanto critica.
Podemos citar ainda a rejeição da convenção contra as minas antipessoal, que visava “proteger as tropas americanas na Coréia”, e a recusa em negociar os termos para o comércio das armas leves, sob alegação de que a 4ª Emenda da Constituição americana estabelece o direito de posse individual. Os Estados Unidos também rechaçaram a justiça coletiva representada pela Corte Penal Internacional (CPI), embora a sua criação tivesse sido proposta pelo próprio presidente Clinton. O Congresso chegou ao ponto de ameaçar cortar os subsídios fornecidos aos países do Sul caso eles não assinassem um tratado bilateral se compromentendo a não extraditar cidadãos americanos processados pela CPI.
Afinal, quem é o inimigo?
O unilateralismo é também o poder de decidir quem é o “inimigo”: o Irã, a Al Qaeda, o Iraque, etc. Essa enunciação consegue impor à comunidade internacional uma agenda, atualmente a da “guerra global contra o terrorismo” e contra a proliferação nuclear. O discurso em que George W. Bush denunciou “o eixo do mal”, em janeiro de 2002, é um exemplo da capacidade de influenciar o resto do mundo. Naquele momento, o presidente americano mudou o foco: da guerra contra o terrorismo islâmico responsável pelos atentados de 11 de setembro, passou para a luta contra a proliferação nuclear. Afinal, nem a Coréia do Norte, nem o Irã haviam sido acusados de cultivarem relações suspeitas com Osama Bin Laden e era preciso arrumar outro motivo para se contrapor a eles. Enquanto apresentava uma lista precisa de países perigosos, Bush atribuía atestados de “proliferadores aceitáveis” à Israel, Índia e Paquistão, reconhecendo que nem todas as eventuais bombas nucleares são desestabilizadoras.
Outra possibilidade permitida pela posição de hiperpotência é a realizar, sozinha, ações militares: o esforço de defesa americano representa a metade das despesas mundiais com armamentos. A ponderação atual sobre o emprego de pequenas armas nucleares (mini-nukes) e a afirmação do princípio da guerra preemptiva transparecem componentes estratégicos da formação de um país que nunca conheceu a guerra de destruição total em seu próprio território6 – mas que vem refletindo placidamente sobre meios de desencadeá-la no dos outros.
Por fim, conforme podemos verificar com o Iraque, o unilateralismo é o direito que um país outorga a si mesmo de redesenhar o mapa do planeta. Um bom exemplo disso é o projeto do “Grande Oriente Médio”. Os Estados Unidos foram a última democracia conduzir uma guerra química no decorrer da segunda metade do século XX. A vítima foi o Vietnã, onde 40 milhões de litros do “agente laranja” foram despejados entre 1961 e 1971. Recentemente, os tribunais americanos aceitaram indenizar soldados vítimas dessa arma assustadora, mas ainda se recusam a reconhecer o direito dos vietnamitas.
As eleições a
mericanas podem alterar essa configuração? A resposta é simples: tanto Hillary Clinton e Barack Obama como John Mc Cain compartilham da visão messiânica dos Estados Unidos. Ou seja, ela deve persistir, mesmo que temperada por uma dose mais ou menos consistente de consultas junto aos Aliados. O individualismo, o moralismo e a excepcionalidade que impregnam as elites e a opinião pública explicam o sentimento consensual de que ninguém tem o direito de questionar a pureza das intenções americanas. Nem a justeza das suas definições do Bem e do Mal7.
A passagem estratégica da dissuasão, doutrina de preservação da paz que funcionou durante toda a Guerra Fria, para a preempção, tem sua origem na excepcionalidade americana, que supõe que a segurança do país não deve depender de ninguém e pode justificar ataques preventivos. Os atentados de 11 de setembro consolidaram postulados dessa natureza. O único freio psicológico para essa guinada é o assassinato de quatro mil soldados no Iraque, que pesa mais sobre o debate eleitoral do que a morte de centenas de milhares de iraquianos.
Outra constante programática dos aspirantes à Casa Branca é a solidariedade incondicional com Israel, o que torna mais aleatória ainda a possibilidade de paz duradoura no Oriente Médio. Ao discutir o mundo muçulmano, a maior parte dos discursos políticos comporta o termo de fascismo islâmico, como se o Islã fosse a fonte exclusiva da violência e do radicalismo8. Aliás, a diplomacia americana adotou para a região o critério de dois pesos para duas medidas. Prova disso é a declaração de Richard Holbrooke, conselheiro de Bill Clinton: “a questão central na Palestina não era a democracia, mas sim a paz com Israel. Nessa região, entre a paz e a democracia, eu escolho a paz sem hesitação”9. O comentário parece aplicar-se também ao Irã. Por ser o único país da região com presidente democraticamente eleito, com 55% dos votos, ele é “menos islâmico” do que a Arábia Saudita. E tampouco está tão avançado em termos de capacidade nuclear quanto o Paquistão ou Israel. Mesmo assim, é o “inimigo”.
Há ainda uma última característica comum aos candidatos: a predileção pelo dimensionamento excessivo da ferramenta militar e do uso da força. O orçamento militar americano para o ano de 2009 ultrapassa os US$ 600 bilhões e o apoio da opinião pública à política belicista não encontra equivalente em outras democracias – 82% contra 44% na Europa10.
O princípio da supremacia militar
Qualquer que seja sua vinculação política, os estrategistas de Washington não concebem outra coisa senão uma coordenação americana da segurança mundial. Esse direito moral baseia-se no princípio da supremacia militar, um caminho que vem mostrando seus limites tanto no Iraque quanto no Afeganistão. Porém, em vez de suscitar uma reflexão crítica, o impasse iraquiano desembocou numa estratégia de prompt global strike, que prevê o pronto-ataque a qualquer ponto do planeta por mísseis convencionais, sem o risco de colocar tropas no solo.
A “fabricação” do inimigo por estrategistas e centros de reflexão continua sendo uma prática muito eficiente. No relatório intitulado Estratégia de segurança nacional, redigido pelo Centro para o Progresso Americano11 para a pré-candidata Hillary Clinton, a lista dos adversários potenciais é análoga à dos neo-conservadores e inclui China e Rússia, rivais na corrida pela liderança global. É interessante constatar de que maneira o debate sobre a desvalorização do dólar em relação ao euro foi transformado, por influência da dialética americana, num debate sobre a subvalorização do iuan chinês. Contudo, o risco de guerra é pouco elevado entre essas potências nucleares: a dissuasão permanecerá a regra ainda por muito tempo.
Os próximos países na relação de Hillary são os integrantes do “eixo do mal”, entre os quais o Irã ocupa um lugar à parte. Por fim, há as nações “nocivas”, como a Síria, a Venezuela e Cuba. Para eles, a ação unilateral americana não está excluída, em particular como forma de compensar uma eventual derrota no Iraque. Afinal, a decisão de optar por uma guerra “vencível” contra um inimigo secundário é sempre possível, como foi a caso com a invasão da ilha caribenha de Granada por Ronald Reagan, em 1983, depois da revolução iraniana de 1979.
Já contra o Irã, a abordagem muda totalmente de figura: o risco de um conflito nuclear existe de fato. Quando Barack Obama descartou utilizar esse tipo de recurso para atacar alvos vinculados à Al Qaeda ou aos talibãs, foi imediatamente criticado por Hillary. Para ela, um presidente americano não pode descartar a opção da bomba atômica.
Outro cenário provável de confronto é a guerra pelo controle dos recursos. Mais do que nunca, os Estados Unidos estão importando grandes quantidades de produtos de base e de recursos energéticos. Inevitavelmente, a sua dependência vai aumentar: a previsão para 2030 é de trazer do exterior 66% do petróleo e 20% do gás consumidos, contra 47% e 18% atuais 12. Ao mesmo tempo, as necessidades energéticas da Índia e da China também são imensas. De que maneira Washington lidaria com a disputa por captação desses recursos escassos com uma potência regional ou global? Respeitando o jogo livre do mercado ou optando pela ação armada?
Nenhum desses cenários é certo. Mas a transição rumo a um sistema de multilateralismo abre a perspectiva de um período instável. As fases de paz duradouras são vinculadas ao equilíbrio das potências, e não ao desenvolvimento ou ao recuo da democracia no mundo. Para garantir a estabilidade durante a Guerra Fria, por exemplo, o Ocidente apoiou ou instalou ditaduras como a dos coronéis na Grécia e dos militares na América Latina. Em compensação, os momentos de desequilíbrio internacional nascem da afirmação de novas potências e da sua vontade de modificar a ordem existente. Basta lembrarmos da Alemanha contestando as condições draconianas do Tratado de Versalhes, ou do Paquistão e da Índia buscando redesenhar o traçado do mapa colonial.
E a atual vontade americana de prevenir o surgimento de um competidor à sua altura não reflete uma preocupação com a segurança mundial. Pelo contrário. Foi fascinante ouvir o então secretário de defesa Donald Rumsfeld explicar às autoridades chinesas, em novembro de 2005, o quanto o seu esforço militar era preocupante, fingindo ignorar que ele representava apenas um sexto do orçamento do Pentágono. Não menos espantosas são as acusa
ções contra os agentes iranianos, que estariam desestabilizando o Iraque. Como se os 150 mil soldados americanos e britânicos e os 150 mil mercenários que atuam naquele território tivessem contribuído para a paz na região!
Ora, é claro que os Estados Unidos constituem um risco. A Europa deve se interrogar a respeito do projeto diplomático escondido por trás do apelo em prol de um papel reforçado da Otan. Depois do Afeganistão, e principalmente do Iraque, qual dos países não-ocidentais13 irá considerar as capacidades de projeção da Otan como uma força destinada a estabilizar uma região em crise?
Neste contexto, onde estaria o interesse da Europa? Em primeiro lugar, na construção de uma segurança internacional multilateral, que leve em conta os interesses legítimos de todas as partes, e não apenas o direito do Ocidente em administrar a segurança do planeta. Dessa forma, os excessos de violência e a ilegalidade devem ser condenáveis nos mesmos termos. As mortes de palestinos em conseqüência de bombardeios israelenses são tão inadmissíveis quanto as vítimas dos atentados terroristas. O mesmo pode ser dito sobre a captura ilegal de um indivíduo: no caso das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc), essa prática é chamada de seqüestro, mas para a Base de Guantanamo é “detenção arbitrária”. Ingrid Betancourt foi raptada em 23 de fevereiro de 2002 pelos guerrilheiros colombianos. O Campo Delta de Guantanamo foi “inaugurado” em 27 de fevereiro de 2002 pelos primeiros prisioneiros vindos do Afeganistão, até hoje sem julgamento.
Para exercer verdadeiramente o seu papel, a Europa precisa parar de enxergar a si mesma como um espelho da América, e diferenciar-se no que diz respeito a três decisões essenciais. Em primeiro lugar, o seu projeto diplomático não pode ser outro senão o de uma potência militar sem ambição imperial. Decorre disso uma modificação sensível do seu vínculo com a Otan, a qual continua sendo o único sistema de aliança militar no planeta. A união dos europeus foi por água abaixo com as divergências a respeito da invasão no Iraque. A ameaça de guerra contra o Irã apresenta os mesmos riscos.
Em segundo lugar, a estratégia européia de recurso à força precisa diferenciar-se dos conceitos americanos de destruição, oferecendo táticas de neutralização. Nas crises recentes de Kosovo, do Timor-Leste e do Afeganistão, os ocidentais acabaram arcando com os custos de reconstrução das infra-estruturas que eles mesmos haviam destruído. Quem sabe não é mais vantajoso preservá-las o máximo possível, evitando assim que as populações “libertadas” se transformem em inimigos?
Por fim, a Europa deveria dispor do seu próprio sistema de avaliação das crises, e não mais depender das informações fornecidas pelos americanos. As mentiras que os Estados Unidos e os britânicos aprontaram para justificar a guerra no Iraque sublinham essa urgência. Dificilmente o tema da segurança mundial será debatido com o público geral. Mas ele é de uma atualidade inegável.
*Pierre Conesa é antigo alto-funcionário da Otan. Autor, entre outros, de Mécaniques du chaos: bushisme, prolifération et terrorisme, editora L’aube, La Tour d’Aigues, 2007.