O antídoto “coronafé”: A análise política do discurso de igrejas evangélicas
Este trabalho faz parte da série “A análise dos discursos sobre a pandemia da Covid-19” produzida pelo Grupo de Pesquisa “Discurso, Redes Sociais e Identidades Sócio-Políticas (Discurso)”. Nesta segunda fase nos detemos na análise dos principais porta-vozes nacionais e internacionais dos discursos negacionista e científico. Apresento a análise política de um dos principais porta-vozes nacionais do discurso negacionista sobre a pandemia: lideranças de igrejas evangélicas.
Partindo do olhar da pandemia como acontecimento e recuperando a teoria do discurso desenvolvida por Ernesto Laclau e Chantal Mouffe[i], na qual se destaca que as disputas de narrativas presentes no contexto democrático remetem a uma confrontação entre diferentes práticas e projetos antagônicos, delimitando em termos de identidades, um nós versus um eles, temos como objetivo promover a análise política das práticas discursivas a respeito da Covid-19. Nessa análise são abordados os discursos de lideranças de igrejas pentecostais e neopentecostais sobre a pandemia a partir de falas, atitudes, notícias, posts nas redes sociais e performances. Apontando desde as primeiras manifestações sobre o coronavírus, as crítica às medidas de prevenção e do fechamento temporário de igrejas, assim como o ataque a imprensa, até a relação desse porta-voz com o Presidente da República, Jair Bolsonaro, e suas demonstrações de apoio.
O crescimento significativo do número de seguidores das igrejas evangélicas no Brasil, em especial das pentecostais e neopentecostais, chama a atenção de muitos pesquisadores. O Brasil, um país tradicionalmente católico, vem presenciando uma maior presença das igrejas nos meios de comunicação — TV, rádio e mídias sociais —, bem como, desde a redemocratização, houve um crescimento da participação dos evangélicos no cenário político e nos demais espaços de poder governamentais, tanto no Poder Legislativo como no Executivo.
As igrejas pentecostais e neopentecostais e seus midiáticos líderes
Desde a Reforma Protestante, a igreja evangélica se constitui no país com divisões, entre os grupos de heranças protestantes mais tradicionais e os neopentecostais e pentecostais. As igrejas pentecostais, como a Assembleia de Deus Vitória em Cristo, acreditam na continuidade dos dons espirituais dados a partir do Espírito Santo, como as orações em línguas e nas curas milagrosas — destaca-se a vivência pessoal de Deus através do Batismo no Espírito Santo. As neopentecostais, como a Igreja Universal do Reino de Deus, a Igreja Mundial do Poder de Deus e a Igreja Internacional da Graça de Deus, normalmente são lideradas por um showman e, em sua maioria, fazem promessas para que o seu seguidor tenha uma vida próspera, em relação a bens materiais e também oferecem curas divinas, apelando para a dramatização, a fim de provocar emoções.
Lideranças dessas igrejas, como os pastores (ou bispos) Silas Malafaia, Edir Macedo, R. R. Soares e Valdemiro Santiago têm se transformado em interlocutores privilegiados e até mesmo em tutores do atual presidente. Inicialmente, vale ressaltar que os evangélicos foram da aliança pragmática com o Partido dos Trabalhadores (PT) à conversão a Bolsonaro nas eleições de 2018. O apoio dos religiosos foi fundamental para sua eleição e a aproximação entre os dois atores se explica inicialmente pela postura mais conservadora de Bolsonaro. Além disso, as lideranças das igrejas pentecostais e neopentecostais também se alinham ao presidente nos posicionamentos em relação à pandemia da Covid-19, se apresentam de forma negacionista e relativizam o vírus.
Esses líderes, todos contrários ao isolamento social horizontal e ao fechamento temporário de igrejas, defendem que o vírus é inofensivo, que é mais uma tática de Satanás e prometem curas milagrosas[ii]. Agarrados na esperança de que a fé em Deus é superior a qualquer mal e que seus seguidores estarão salvos no final da pandemia. Atacam os grandes grupos de comunicação do país — principalmente a Rede Globo e a Folha de São Paulo —, os governadores, as universidades, os cientistas ou qualquer foco de oposição às medidas negacionistas do governo Bolsonaro, afirmando que induzem a população ao pânico, não protegendo o pobre, mas agradando a classe média e os ricos.
Por outro lado, alguns líderes evangélicos mais tradicionais, já se posicionaram como defensores das medidas recomendadas pela Organização Mundial de Saúde (OMS) e assinaram o manifesto O governante sem discernimento aumenta as opressões – Um clamor de fé pelo Brasil[iii], pedindo o afastamento do atual presidente.
Silas Malafaia é um pastor pentecostal brasileiro, líder da Assembleia de Deus Vitória em Cristo, graduado em psicologia, presidente da editora Central Gospel e do Conselho Interdenominacional de Ministros Evangélicos do Brasil. Empresário e um grande influenciador nas redes sociais, Malafaia é dono de um canal no Youtube com um milhão de inscritos e utiliza o Twitter diariamente para se posicionar a favor de Bolsonaro. O pastor é conhecido por sua atuação política, discurso de ódio sobre temas como direitos dos LGBTQIA+ e por condenar o aborto. Na pandemia, aponta que pior que o coronavírus é o caos social, bem como afirmou que não teria problema os jovens voltarem a trabalhar e pegar a doença, porque não aconteceria nada com eles, pensamento refutado por especialistas.
Os pastores neopentecostais e televangelistas, Edir Macedo, Valdemiro Santiago e Romildo Ribeiro Soares, fazem ações próximas durante a pandemia. Macedo, fundador e líder da Igreja Universal do Reino de Deus, empresário, proprietário da Record – terceira maior emissora de TV brasileira — e autor de diversos best-sellers religiosos, disse para seus fiéis não se preocuparem com o coronavírus e pediu para não repassassem nada de coisa ruim sobre coronavírus nas redes sociais. Valdemiro, fundador da Igreja Mundial do Poder de Deus, vem apelando por altas doações em dinheiro aos fiéis para manter seu programa de TV e prometeu a cura da Covid-19 através de uma semente vendida por ele a mil reais. R. R. Soares, fundador e líder da Igreja Internacional da Graça de Deus, também empresário, advogado, escritor, cantor e compositor, afirma que água consagrada por ele cura a Covid-19 e também pede doações aos fiéis por meio de transferências bancárias pelo período que durar a crise do coronavírus. Além disso, seu filho se reuniu com o presidente para revisar multas das igrejas e perdoar dívidas[iv], sua igreja possui uma dívida milionária para com o Estado.
A pandemia evidenciou ainda mais o radicalismo destas lideranças em relação a outros grupos não-conservadores raiz por questões ideológicas e movimentações políticas. A irresponsabilidade no papel frente a luta contra a Covid-19 é evidendenciada pela propagação de fake news. Além da religião ter sido mais uma vez usada como um produto de consumo e os fiéis como seus consumidores, a mercantilização da fé, com a filosofia de quanto mais se dá mais é abençoado e por isso, os fiéis devem realizar grandes doações e ofertas em dinheiro e pagar dízimos. Houve a disseminação de teorias da conspiração, charlatanismo, promessas de cura e prosperidade. Assim, foram feitas inúmeras críticas e acusações de que estas igrejas são agências de exploração financeira de pessoas pobres, onde há o enriquecimento ilícito e diversas irregularidades.
A adaptação das igrejas ao novo normal
Com a proibição de aglomerações para frear o avanço do coronavírus no país, as igrejas precisaram se reinventar e aceitar o novo normal. Com a paralisação temporária de atividades presenciais nas igrejas, as igrejas evangélicas, assim como as católicas, apostaram na tecnologia e passaram a realizar celebrações e cultos através de plataformas on-line. Os cultos não pararam em algumas igrejas, e por descumprir medidas de combate à Covid-19 no início da pandemia, foram multadas. Hoje, já foram reabertas sob protocolo, com capacidade reduzida, mais celebrações para evitar aglomerações, álcool em gel e regras de distanciamento.
Foram realizadas diversas demonstrações de fé pelo país, como o drive-thru da oração (ou drive-thru da fé) e o jejum religioso, com o objetivo de fortalecer a fé das pessoas e não desamparar os fiéis nesse momento difícil. Este tipo de oração por drive-thru, normalmente era realizado por fiéis voluntários ou até mesmo pastores, que seguiam as recomendações dos órgãos de saúde, como manter distância e utilizar mascara e álcool em gel. Localizavam-se embaixo de uma tenda ou ao ar livre em frente ou próximos a igreja, e assim os motoristas estacionavam seus veículos para receber as palavras religiosas, e, em alguns minutos já podiam seguir seus rumos.
O jejum nacional religioso foi convocado no dia 5 de abril pelo presidente Jair Bolsonaro, que convidou apoiadores, em especial, as lideranças das igrejas evangélicas, a fazer um jejum para livrar o Brasil do coronavírus, que contou com a divulgação e participação de pastores como Silas Malafaia e o deputado Marco Feliciano para o movimento por eles chamado de Santa Convocação. No entanto, algumas igrejas não apoiaram a ideia e anunciaram que não promoveriam a ação, como o pastor Guilherme de Carvalho, da Igreja Esperança, em Belo Horizonte, que afirmou nas mídias sociais que Presidente não convoca autoridades religiosas nem pastores evangélicos. Ele não tem autoridade para isso. Sendo uma clara violação do princípio da soberania das esferas. No dia, diversos religiosos, alguns vestindo roupas com a bandeira do Brasil, foram ao Palácio da Alvorada para fazer orações em favor de Bolsonaro.
Também em abril, o governo federal lançou o projeto Brasil Acolhedor, com o objetivo de oferecer apoio para a população vulnerável à Covid-19. Com o slogan Solidariedade é o nosso elo mais forte, a proposta era doar bens, itens de higiene pessoal e cestas básicas a todos que necessitam. O projeto é conduzido pela primeira-dama Michelle Bolsonaro e foi oficializado com o apoio da Convenção Geral das Assembleias de Deus no Brasil (CGADB), esta reúne milhares de pastores em seu quadro de afiliados, em uma conferência on-line oficializaram a parceria e definiram metas no auxílio às pessoas socialmente vulneráveis.
A economia sofreu grande impacto pelo novo coronavírus, principalmente nas casas de famílias mais pobres. Fica claro o importante papel das igrejas no auxílio à essas populações mais vulneráveis, em todo o país são inúmeras as doações para os mais necessitados. A pandemia mostrou que podemos ser solidários e que há esperança em um futuro melhor, com mais solidariedade e amizade. Alguns pastores fazem uso das redes sociais para divulgar suas opiniões, propagar a palavra de Deus e alcançar pessoas com interesses em comum. Todavia, acabam fazendo um desserviço à luta da epidemia, se portando como contrários ao isolamento social e ao movimento #ficaemcasa, por temer o esvaziamento das igrejas e dos cofres, além de apontar falácias de que quem crê em Deus está livre do vírus, que a epidemia é coisa de satã, uma vingança divina, e há aqueles que ainda oferecem curas.
Segundo o cientista político e sociólogo peruano José Luis Pérez Guadalupe[v], o Brasil é um dos países onde evangélicos mais avançam na política. Para o sociólogo, a bancada evangélica é formada no país, em sua maioria, por políticos que procuram favorecer seu próprio grupo e defender a agenda moral – o combate ao aborto, à ideologia de gênero e ao casamento de pessoas da comunidade LGBTQIA+ – ao invés do bem comum do país. O peruano aponta que a bancada BBB — Bíblia, boi e bala —, passou a ser BBBB — Bíblia, boi, bala e Bolsonaro —, mas, não há um pensamento homogêneo dos evangélicos, caso existisse um senso comum entre o grupo, eles seriam o maior partido político do Brasil.
A atual ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves, também pastora evangélica, esteve envolvida em diversas polêmicas devido suas declarações. A ministra defende que é o momento das igrejas ocuparem a nação e que elas podem ajudar a transformar o Brasil. Em reunião ministerial do dia 22 de abril[vi], divulgada na íntegra pelo Supremo Tribunal Federal, Damares afirmou que o governo tem os valores como pilar, é pró-vida e pró-família, além de relacionar o coronavírus com a questão do aborto — E quando eu falo valores aí eu quero olhar pro nosso novo ministro aqui da saúde (na época o então Ministro da Saúde do Brasil Nelson Teich, hoje ex-ministro) e dizer: Ministro, valores estão lá no seu ministério também. Neste momento de pandemia a gente está vendo aí a palhaçada do STF trazer o aborto de novo para a pauta. Lá estava a questão das mulheres que são vítimas do zika vírus e vão abortar, e agora vem do coronavírus? Será que vão querer liberar que todos que tiveram coronavírus poderão abortar no Brasil? Vão liberar geral? O seu ministério, Ministro, está lotado de feminista que tem uma pauta única que é a liberação de aborto. Quero te lembrar, Ministro, já que está chegando agora, este governo é um governo pró-vida, um governo pró-família.
Em junho, um grupo de lideranças evangélicas foi ao Planalto orar pelo fim da baderna e do quebra-quebra, na época aconteciam protestos de bolsonaristas pró-governo contra os protestos pela defesa da democracia, vidas negras importam e contra o governo; bem como pediam nas orações por harmonia entre os três poderes em meio a tensões e pedidos de impeachment do presidente Bolsonaro. Alguns dizeres foram reproduzidos pelos pastores presentes: Esse País não vai ser Venezuela; Deus quem escolhe e retira as autoridades públicas; Brasil acima de tudo, Deus acima de todos. O último, também slogan do presidente durante as eleições 2018. O encontro contou com a presença de onze líderes de igrejas pentecostais e neopentecostais, entre eles estava Silas Malafaia.
Nas mídias sociais, em especial, no Twitter e na playlist #FalaMalafaia no canal de Silas Malafaia do Youtube, encontram-se as práticas discursivas e a posição do pastor que diz ser aliado e não alienado do presidente Bolsonaro. Entre os assuntos mais comentados atualmente estão o coronavírus, Jair Bolsonaro, a Rede Globo e a imprensa, os governadores, o STF e as indicações do presidente, os partidos de esquerda – PT, PSOL, PCdoB, PSB e PDT -, Rodrigo Maia, Sergio Moro, Donald Trump, entre outros. O pastor tem uma postura alarmista nas redes sociais, tende a exagerar em seus pronunciamentos, tuítes e vídeos.
Malafaia fala que cristãos não podem votar nos partidos da esquerda porque eles são animais amestrados, contrários aos princípios e valores dos crentes. Segundo ele, esses partidos são a favor da ideologia de gênero e são contra as mulheres que sofrem estupro denunciarem os estupradores, o que é uma calúnia. Ataca a imprensa, chamando jornalistas de inescrupulosos e que distorcem os fatos, diz que os puxa-sacos e bajuladores de Bolsonaro estão repetindo os mesmos erros da história, por não falarem nada sobre os erros do presidente – principalmente pela indicação de Kassio Nunes ao STF -, segundo o pastor a indicação não tem nada a ver com as posições de líderes evangélicos e está aliada à esquerda, com posições socialistas.
No começo da pandemia, houve muita briga com o Governo Federal sobre a igreja ser considerada ou não um serviço essencial. Muitos pastores, desde o início, defenderam a manutenção das igrejas abertas, como o pastor Marcos Vinícius de Divinópolis em Minas Gerais, que também é vereador e chegou a ser detido por fazer um drive culto sem alvará na rua e declarou: Defendemos o retorno das igrejas de forma consciente e com a observância de todas as medidas recomendadas pela Organização Mundial de Saúde. Segundo matéria do Tribuna Online[vii], o pastor Marcelo Ferreira, presidente da Associação dos Pastores Evangélicos da Serra (Apes), no Espírito Santo, comunicou que há relato de fechamento de templos por conta da crise gerada pela pandemia e de religiosos que estão com problemas financeiros para quitar o espaço, buscando renegociações do aluguel. Apesar de todas as diferentes estratégias adotadas diante da pandemia, a arrecadação das igrejas sofreu uma grande queda, e hoje elas enfrentam dificuldades para pagar as contas.
A análise do discurso das igrejas pentecostais e neopentecostais
O discurso das igrejas evangélicas, em especial das igrejas pentecostais e neopentecostais, será analisado articulando a abordagem e conceitos da teoria do discurso de Laclau e Mouffe, com a proposta do enquadramento (frame analysis) implementada por Errejón Galván[viii], onde os marcos específicos do discurso são: marco do diagnóstico, do prognóstico e de motivação. O tom das performances é emotivo, profético e encorajador, com apelo a fé, aponta as verdades para convencer e persuadir seu público, explicita o crescimento da desigualdade social devido a quarentena — as pessoas vão morrer de fome por não ter emprego, as empresas vão falir e com isso vai aumentar o desemprego da população. Evidencia o antagonismo de coragem versus medo, que para vencermos o coronavírus precisamos da fé.
As práticas discursivas dessas igrejas em relação a pandemia da Covid-19 se baseiam no antídoto coronafé. Ou seja, quem tem fé em Deus está protegido. As lideranças das igrejas pentecostais e neopentecostais procuram acalmar seus fiéis, além de prometerem curas milagrosas, antes mesmo de uma vacina ou outro remédio de eficácia comprovada. Segundo Edir Macedo, coronafé é aquela confiança, aquela certeza de que Deus está contigo e que ele nunca, jamais, em tempo algum vai falhar com aqueles que nele tem crido. Em vídeo publicado no Instagram, o líder da Universal diz: Veja só, todo mundo está falando no coronavírus e o mundo inteiro está ajoelhado diante dessa maldição, dessa praga chamada coronavírus. Muitas pessoas estão internadas, muitas pessoas estão em quarentena e o pior, a maioria das pessoas — porque no planeta são 7,5 bilhões de pessoas e morreram alguns milhares de pessoas com essa praga. Mas, o pior de tudo é que a maioria das pessoas não sabe que a maior praga não é a coronavírus, é a coronadúvida e para você enfrentar o coronavírus, que é a coronadúvida, você que está ileso do coronavírus, você tem que estar com o antídoto que é chamado de coronafé.
No marco de diagnóstico do discurso negacionista das igrejas pentecostais e neopentecostais, o principal problema identificado reside na crítica ao isolamento social horizontal como medida de prevenção da Covid-19, um dos pontos nodais identificados no contexto da pandemia é de que o vírus é uma fantasia causada pela mídia, dito isto precisa abrir tudo porque causa menos danos. Ademais, a fé é importante para a estrutura emocional, para vencer a doença. As camadas sociais menos favorecidas possuem condições precárias de habitação, de saúde, precisam trabalhar para ter dinheiro, se alimentar e colocar comida na mesa de sua família, não possuem trabalho fixo ou se encontram desempregadas. Diferente do isolamento para ricos e pessoas de classe média que, na maioria dos casos, podem trabalhar de home office, vão receber salário mesmo permanecendo em casa, possuem reservas de dinheiro e conseguem se manter durante a pandemia. Dessa forma, o isolamento social é desigual para a população e agrava a disparidade entre as classes sociais.
Outro problema constatado por esse discurso é a histeria causada pela mídia, pelos governadores do país e os grupos de oposição ao governo federal, que alteram dados para enganar e assustar a população indecisa sobre qual orientação seguir. Para estas lideranças, essas atitudes têm como objetivo atingir e derrubar o presidente. Outra questão é a da proibição de realizar celebrações com fiéis em igrejas e templos. A igreja é o último refúgio das pessoas, a instituição precisa estar presente na vida das pessoas para dar esperança para elas, até porque quem tem fé em Deus está protegido de todo mal. No entanto, é publicamente reconhecido que a proibição da realização de cultos provocou uma queda acentuada no recolhimento de dízimos e ofertas.
No marco de prognóstico, a principal questão da dimensão vencedora é o emprego, o trabalhador precisa voltar a trabalhar, os fiéis às suas igrejas e os bolsonaristas querem seguir as recomendações do presidente e não as orientações dos governadores, que segundo esse discurso, estão fazendo uma quarentena politiqueira. Defendem o fim do isolamento social, pois o povo precisa trabalhar e fazer a economia girar, análogo às práticas discursivas de Bolsonaro de que o Brasil não pode parar, além de não acreditarem na nocividade da epidemia do novo coronavírus. Muitos que apontam a fé como cura da doença, confiam que a epidemia é inofensiva e mais uma tática de Satanás.
O traçado de fronteira que delimita o eles é constituído em especial pela grande mídia – principalmente, a Rede Globo –, esta vem sofrendo ataques de bolsonaristas diariamente. O Pastor Silas Malafaia, acredita que o jornalismo da emissora é inescrupuloso e parcial, uma vez que perdeu-se a sensatez, deturpa notícias e deixa de ser órgão de informação para virar partido político e divulgar apenas suposições para enganar o povo. De forma análoga, com a saída do Ministério da Justiça e Segurança Pública, Sérgio Moro passou a sofrer grandes críticas de apoiadores do governo federal pela atitude de se alinhar com a Globo para externar conversas que teve com o presidente e a deputada federal Carla Zambelli (PSL), além de publicar artigos, dar entrevistas e comparar o atual governo com o PT.
Assim como a mídia, que induz a população ao pânico, os governadores como Flávio Dino (MA) e até mesmo os aliados de Bolsonaro na campanha presidencial, como João Doria (SP) e Wilson Witzel (RJ) – este último se encontra temporariamente afastado do cargo – também provocaram histeria ao se comportarem de forma contrária a posição de Bolsonaro sobre a Covid-19, e ordenarem o fechamento provisório do comércio em seus estados. Grande parte dos líderes pentecostais, neopentecostais e seus fiéis apontam a quarentena como uma farsa e julgam que os governadores não protegem o pobre, estão deixando a camada social menos favorecida ainda mais vulnerável, mas agradam a classe média e os ricos.
Os governadores estão se apresentando como uma forte oposição às ações do governo. De início, se reuniram sem Bolsonaro para debater sobre a gravidade da circunstância do país e do comportamento do presidente. Depois, com os atos organizados por bolsonaristas que pediam a intervenção militar no país e o AI-5, se reuniram em uma carta de apoio ao Congresso[ix], destacando que as declarações do presidente afrontam princípios democráticos. Nos últimos acontecimentos, principalmente por promover aglomerações, não utilizar máscara em eventos e não ter autorizado a compra de 46 milhões de doses da CoronaVac, vacina contra Covid-19 produzida pelo Instituto Butantã em parceria com o laboratório chinês Sinovac, os governadores demonstraram estarem muito insatisfeitos com as posturas do presidente.
As insatisfações ficam explícitas nas entrevistas e tuítes de alguns governadores do país, como a indagação do governador paulista, Doria: Convide os governadores para um encontro cuja pauta seja a preservação da vida. Quem sabe com uma atitude como essa o senhor possa demonstrar grandeza? Bem como Dino, do Maranhão, que mencionou no Twitter: Não queremos uma nova guerra na Federação. Mas com certeza os governadores irão ao Congresso Nacional e ao Poder Judiciário para garantir o acesso da população a todas as vacinas que forem eficazes e seguras. Saúde é um bem maior do que disputas ideológicas ou eleitorais.
As orientações dos órgãos de saúde, como a OMS e o Ministério da Saúde, dos médicos, universidades e cientistas, estão sendo criticadas pelas lideranças das igrejas pentecostais e neopentecostais. No início da quarentena, foram um dos primeiros a rejeitarem veementemente a suspensão de atividades coletivas, alegando que a obrigação das igrejas neste momento de pandemia é de reunir os fiéis para prestar culto a Deus, somada à importância de se testemunhar a fé, com o argumento quem tem fé em Deus está protegido e não deve temer nada, que a doença vai cair quando chegar no fiel com o Espírito Santo.
O pastor Silas Malafaia, em seu Twitter, ao criticar a eficácia do isolamento social no combate a Covid-19 no Brasil, teve alguns dos seus tuítes excluídos pela própria rede social, que alegou que as publicações do pastor são contrárias às informações de saúde pública orientadas por fontes oficiais e que poderiam colocar as pessoas em maior risco de transmitir Covid-19. Além deste episódio, o pastor teve problemas com a Justiça do Rio de Janeiro, esta determinou a proibição da Assembleia de Deus Vitória em Cristo de realizar cultos durante a pandemia, prevendo multa para desobediência. Malafaia foi um dos muitos pastores que desrespeitaram as medidas de isolamento social durante a pandemia. Em abril, chegou a afirmar que os profetas do caos vão ficar envergonhados porque não vai ter catástrofe no Brasil, e que dentro de pouco tempo, o país desfrutará de um tempo de prosperidade e paz como nunca houve. Hoje, o país está lidando com uma catástrofe de mais de 5 milhões de infectados pela Covid-19 e mais de 150 mil mortes, o terceiro país com o maior número de casos do mundo e o segundo com maior número de mortes.
No discurso das igrejas pentecostais e neopentecostais, fica evidente a relação de antagonismo entre o nós e o eles. Os sentimentos de hipocrisia, histeria, mentira, exagero, medo, gerados pelos atores do eles — como a mídia, os governadores, os órgãos de saúde, a oposição ao governo, vagabundos, esquerdistas e comunistas —, prejudicam o nós — os trabalhadores vulneráveis com a pandemia e injustiçados pelo isolamento social, os pastores que precisam dar a palavra e os fiéis para buscar a fé na igreja para vencer a pandemia e não podem pelas restrições e o presidente, que está do lado da verdade.
A proposta de solução se dá através de formas de acalmar a população, minimizar a doença, dar esperança aos fiéis e mostrar que o caos social será pior que a Covid-19, e consistem em frases como: Não se preocupe com o coronavírus; Não entre em pânico porque esse problema vai passar; Quem tem fé em Deus tá protegido; Vai morrer gente pelo coronavírus? Vai. Mas se houver caos social, vai morrer muito mais. Outras soluções como curas milagrosas e forças-tarefa nos terminais das estações de transporte público, com o objetivo de fazer uma limpeza para amenizar a disseminação da doença também foram propostas nas práticas discursivas das igrejas pentecostais e neopentecostais.
No marco de motivação, o que se destaca na ideologização da fronteira do discurso dessas igrejas é, por um lado, a figura do nós como aqueles que necessitam voltar a vida normal, sem a quarentena social, voltar ao trabalho e a igreja, para se manter financeiramente e se agarrar na fé em Deus para enfrentar a pandemia e todo mal. Por outro, a figura do eles colocada como os donos da farsa e da mentira, que maximizam a doença, constituem uma quarentena desigual para a população – a qual beneficia os ricos e torna o pobre mais vulnerável -, e promovem histeria para influenciar o povo a ficar contra o Presidente da República.
No processo de reconstrução histórica, social e política, busca motivar seus seguidores utilizando o argumento que outras doenças e pandemias presentes no Brasil e as que passaram pelo país há anos matam/mataram mais que o coronavírus. Se houver caos social, vão morrer mais pessoas. Aponta o histórico da mídia em ser uma influenciadora política, onde não é divulgado o número de recuperados da doença, que é superior ao número de mortos. A imprensa não se preocupa com o grande número de mortos por água contaminada em todos os anos, o objetivo é aterrorizar a população porque o caos vende, além de derrubar o presidente porque ele não favorece a imprensa.
Malafaia, por exemplo, foi bastante criticado nas redes sociais por publicar dados fora de contexto e enganar a população, principalmente o povo abençoado do Brasil – seus seguidores, assim por ele chamados. O pastor utiliza estratégias persuasivas de oratória e ataca especialistas, afirmou que a tuberculose mata cerca de 125 mil pessoas por mês no mundo e a de que a infecção por H1N1 é superior à da epidemia da Covid-19, e que estas doenças não possuem a mesma atenção do coronavírus na mídia, porém, por exemplo, não apresenta que há cura e tratamento disponível para tuberculose e a taxa de mortalidade mundial por H1N1 é menor que a do coronavírus.
As performances giram em torno da esperança de que a fé em Deus é superior a qualquer mal e que os seus seguidores estarão salvos no final da pandemia e da tendência pró-Bolsonaro, a confiança no presidente escolhido por Deus e que livrou o país da corrupção da esquerda — em especial, o PT de Lula e Dilma —, considerando que o governo que está avançando desde sua eleição, o apoiam e criticam o isolamento social. Dessa forma, das medidas propostas pelos líderes evangélicos, o destaque se dá em oferecer apoio para Jair Bolsonaro, orando pelo presidente e pedindo o fim do isolamento social, apoiando a convocação do presidente para a realização de um jejum religioso nacional para o país superar a crise e divulgando vídeos no Youtube apresentando “verdades” sobre o coronavírus e apoiando, através de suas redes sociais, as orientações do presidente.
Outras atividades de destaque realizadas pelos líderes das grandes igrejas pentecostais e neopentecostais foram a transmissão de cultos e celebrações online, o jejum religioso, as orações no Planalto e os Drive-thrus da fé, para continuar levando a palavra de Deus para os fiéis. Alguns acontecimentos chamam atenção, como o fato do Pastor Valdemiro Santiago divulgar vídeos pedindo dinheiro para manter sua igreja e programas religiosos na TV, além de receitar uma semente de mil reais como cura da Covid-19. O Missionário R.R. Soares, líder da Igreja Internacional da Graça de Deus, também prometeu a cura do vírus através de uma água consagrada por ele, bem como a Igreja Catedral Global do Espírito Santo em Porto Alegre (RS), que prometeu imunização do coronavírus com óleo ungido. Além disso, muitas igrejas e grupos relacionados às mesmas realizaram ações sociais, como doações de EPI’s para a Unidade de Pronto Atendimento (UPA) e hospitais que estão em carência de equipamentos, e a arrecadaram alimentos e distribuíram cestas básicas em bairros periféricos, para dar um pouco de auxílio para as camadas sociais menos favorecidas.
No Quadro de Caracterização das Identidades Antagônicas, o eles é identificado como pessoas sem fé, convertidas em uma personificação do mal, do inimigo, e equiparados ao coronavírus. Assim, nessa cadeia de equivalências, se articulam desde os já tradicionais inimigos, como os vagabundos, baderneiros, corruptos, esquerdistas, socialistas, povo do quebra-quebra, comunistas, abortistas, feministas, LGBTQIA+ e ideologias de gênero, até os novos traidores como governadores politiqueiros – principalmente, Dória, Dino e o ex-governador Witzel e os ex-ministros Moro e Mandetta – e a imprensa parcial, mentirosa e inescrupulosa. Já o nós é sintetizado pelo coronafé, práticas discursivas análogas às do presidente, que engloba as igrejas pentecostais e neopentecostais, seus seguidores, pastores (ou bispos), fiéis, os pró-vida e pró-família, a esperança, a fé, a verdade, a negação da imprensa, a honestidade, a sinceridade, o bem, o amigo, os cidadãos de bem, o Bolsonaro e seus apoiadores, os empresários, os trabalhadores, o povo do verde e amarelo, a calma, a minimização da pandemia, os achismos, a demonização do isolamento social e defensores de templos e igrejas abertas e o isolamento seletivo
O apelo do discurso na disputa pela hegemonia
Os apoiadores desses discursos são os fiéis evangélicos, alguns popularmente conhecidos como a Ministra Damares, já mencionada neste trabalho, o ex-bispo da Igreja Universal e candidato à reeleição a prefeitura do Rio de Janeiro, Marcelo Crivella, o Deputado Silas Câmara, o presidente Jair Bolsonaro, os políticos da bancada evangélica, cantores gospel, pessoas públicas e pastores. O perfil da maioria desses apoiadores é de pessoas com ideais mais tradicionais, mais próximos ao conservadorismo, moram em zonas mais periféricas, valorizam a família — composta unicamente por um homem e uma mulher —, confiam que serão prósperos por adorarem e fazerem culto a Deus, acreditam na cura gay, são mais suscetíveis a influências, até mesmo de cair em golpes e fake news, dizem ser pró-vida, ao amor e a família.
O professor Paul Freston[x], chama atenção para a valorização populista do cristianismo como cultura e identidade mais do que como fé e valores. Assim, destaca a existência de um populismo evangélico brasileiro caracterizado por elementos específicos, refletindo a história recente do país (o antipetismo) e a história longínqua (o anti-humanismo brasileiro, resultante da extrema concentração de poder, que sempre existiu ao lado da cordialidade e acomodação). Como uma característica complementar e marcante Freston destaca a relativa falta de um “outro” definido pela religião, a não ser os “secularistas”; as religiões afro-brasileiras cumprem esse papel no discurso pentecostal de base, mas muito debilmente no discurso dos seus líderes políticos; e o catolicismo, o antigo alvo, não poderia servir para uma corrente que tivesse pretensões majoritárias, o que autoriza o apoio a um líder político que ainda se identifica como católico (FRESTON, 2020)[xi]:
Segundo pesquisa do Datafolha[xii], publicada pelo jornal Folha de São Paulo em dezembro de 2019, 31% dos religiosos são evangélicos; dentro desse número, a maioria são mulheres e representam 58%, para 42% de homens. No que tange a cor da pele, 43% é parda, 30% branca, 16% preta, 3% amarela, 2% indígena e 5% outras cores. Em relação a idade, 23% tem de 45 a 59 anos, 22% de 35 a 44 anos, 21% de 25 a 34 anos, 19% de 16 a 24 anos e 16% de 60 anos ou mais. Por escolaridade, 49% tem ensino médio, 35% ensino fundamental e 15% ensino superior. Em relação a renda, 48% tem renda até 2 salários mínimos, 21% de 2 a 3 salários mínimos, 17% de 3 a 5 salários mínimos, 7% de 5 a 10 salários mínimos e 2% tem renda superior a 10 salários mínimos. Nas regiões do país, 39% moram ao Norte, 33% no Centro-Oeste, 32% no Sudeste, 30% na região Sul e 27% no Nordeste.
Em relação à Covid-19, parte dos evangélicos não possuem os mesmos pensamentos, demonstrando que não é um grupo totalmente unificado. Alguns líderes evangélicos e fiéis criticam o endeusamento da ciência na crise do coronavírus, apontam uma suposta queda da credibilidade da mídia, oram e pedem preces por pacificação, para que o clima de conflito político e social acabe[xiii], querem o fim do isolamento social e estão apoiando Bolsonaro, outros mantiveram o bom senso e acreditam na gravidade da doença, seguindo as orientações da OMS. Todavia, a grande maioria das lideranças das grandes igrejas pentecostais e neopentecostais seguem apoiando Bolsonaro, como evidenciado pela visita de onze representantes dessas igrejas ao Planalto[xiv] e sintetizado na fala de Malafaia, mais um antagonismo presente na prática discursiva das igrejas pentecostais: o povo brasileiro, que é um povo pacífico e que tem a marca do verde e amarelo versus o povo de quebra-quebra e de baderna.
Nos primeiros meses da pandemia no Brasil, uma pesquisa realizada pelo Datafolha demonstrou que os evangélicos relativizam mais a pandemia e tendem a avaliar o governo Bolsonaro de forma mais positiva.[xv] Entretanto, a postura negacionista do presidente diante da maior crise sanitária global reduziu um pouco seu apoio entre os evangélicos, algumas manifestações de repúdio e pedidos de afastamentos foram realizadas pelo grupo. As críticas aos evangélicos aumentam devido à postura de algumas lideranças, que estão entrelaçadas ao charlatanismo, a corrupção e o estelionato.
Notícias e promessas de curas milagrosas são inaceitáveis para quem possui conhecimento científico. Normalmente os críticos são pessoas com formação acadêmica, que tiveram oportunidades e acesso à informação, estes moram em regiões centrais e passam a ridicularizar tais pensamentos considerados como alienados. Os críticos procuram demonstrar através do conhecimento científico as diversas razões que refutam os argumentos dos apoiadores na tentativa de convencê-los, já os apoiadores, movidos pela paixão, acreditam nas lideranças das igrejas porque são homens enviados pelo Senhor, abraçam a fé e a esperança, são a personificação do bem na luta contra o mal.
Para especialistas, estamos vivendo uma transição religiosa nos últimos anos e a igreja evangélica deve ter mais adeptos daqui a alguns anos, superando até mesmo o número de fiéis da Igreja Católica.[xvi] Segundo José Eustáquio Alves, professor aposentado da Escola Nacional de Ciências Estatísticas do IBGE, o número de evangélicos cresce em média 0,8% ao ano desde 2010, enquanto a de católicos diminui 1,2% no mesmo período. Para o professor, a presença de evangélicos no Congresso são o reflexo mais direto desta transição no país.
O apocalipse está próximo?
Recapitulando, no discurso das igrejas evangélicas, em especial as pentecostais e neopentecostais, valores como a preservação da vida, solidariedade, prosperidade, o bem, a verdade, manter a calma, apoiar o presidente, em tempos de coronavírus são destacados. Estes se antagonizam com o pânico, a hipocrisia, o mal, a desigualdade social aumentada com o isolamento social, a mentira, a imprensa inescrupulosa, as abortistas, feministas, comunistas, esquerdistas, a cristofobia, onde o conhecimento científico é bastante ignorado. As práticas discursivas desse grupo na Covid-19 possui uma abordagem negacionista, diz girar em torno da preservação da vida, mas crê que só a fé basta para se livrar do vírus. As igrejas pentecostais e neopentecostais personificam o antídoto coronafé para derrotar o coronavírus.
Um dos pontos nodais do discurso das igrejas evangélicas é a defesa da vida, o termo vida é usado sempre em todos os pronunciamentos dos líderes religiosos e seus seguidores, o grupo se considera pró-vida. Assim, os evangélicos são totalmente contrários à questão do aborto, veem como assassinato de seres vivos indefesos. Em declaração sobre o aborto do caso da menina de 10 anos que foi estuprada pelo tio[xvii], o pastor Silas Malafaia afirmou em um dos seus vídeos, que as miseráveis feministas do inferno inescrupulosas se aproveitaram da comoção emocional para falar sobre a questão do aborto, que segundo o líder protestante, é a cultura da morte realizada pelos covardes bandidos da sociedade. Em seu discurso, o aborto é colocado como o massacre dos poderosos contra os indefesos, e pior do que o estupro é o assassinato de um ser indefeso pois a vida é o dom mais precioso que Deus deu.
Logo, por que a pandemia da Covid-19, que já matou milhares de pessoas em esfera global, não é vista pelo grupo com tanto repúdio? Por que minimizam a doença e insistem em desrespeitar o isolamento social, colocando em risco a vida de diversas pessoas? O presidente notoriamente se importa mais com a economia do que com preservação da vida e considera a Covid-19 uma gripezinha, então, por que apoiá-lo?
Tudo se explica pelo grande projeto de Deus. O bispo Edir Macedo em sua obra Plano de Poder afirma que os votos dos cristãos são movidos pelo interesse dos próprios cristãos em ter representantes genuínos e o interesse de Deus que Seu projeto de nação se conclua.[xviii] Bolsonaro foi acolhido pelos evangélicos porque é visto como o messias, o salvador da nação brasileira, aquele que coloca o Brasil acima de tudo e Deus acima de todos. O escolhido para resguardar os valores tradicionais, o nacionalismo, a família constituída com um pai homem chefe de família e uma esposa mulher, sem coisas mundanas[xix]. O apoio ao presidente permanece, pois, seus interesses são similares, e Deus quem escolhe e retira as autoridades públicas.
Em tempos de crise, sempre há histeria, pessoas ficam amedrontadas e em pânico, principalmente em pandemias globais. A hashtag #fimdomundo ganhou as mídias sociais durante a pandemia, com diversas especulações de que o Apocalipse está próximo. O número de infectados e mortos no mundo inteiro, a adaptação com o novo modo de vida dos povos e por ainda ser desconhecida uma vacina, cura ou o término da doença, leva os fiéis a refletirem se a Covid-19 é realmente o fim do mundo ou se estamos enfrentando mais um dos alertas de Deus referente a todos os pecados da sociedade, a vingança divina que veio para fazer justiça contra as coisas mundanas. No entanto, o dia do juízo final é desconhecido. O livro do Apocalipse pretende passar uma mensagem de esperança para cristãos que estavam sofrendo naquela época e precisavam de ânimo para pôr um fim no sofrimento. Por fim, segundo as práticas discursivas das igrejas mencionadas na pesquisa, se você estiver com o antídoto que é chamado de coronafé, você estará imune a todo mal, que é o próprio coronavírus e todos os eles do discurso.
Vanessa Barroso Barreto, Jorge O. Romano, Ana Carolina Aguiar Simões Castilho, Caroline Boletta de Oliveira Aguiar, Érika Toth Souza, Juana dos Santos Pereira, Larissa Rodrigues Ferreira, Myriam Martinez dos Santos e Pamella Silvestre de Assumpção, Thais Ponciano Bittencourt, Liza Uema, Paulo Augusto André Balthazar, Annagesse de Carvalho Feitosa, Eduardo Britto Santos, Daniel Macedo Lopes Vasques Monteiro, Daniel S.S. Borges, Juanita Cuellar Benavídez, Renan Alfenas de Mattos e Ricardo Dias são pesquisadoras e pesquisadores do grupo de pesquisa “Discurso, Redes Sociais e Identidades Sócio-Políticas (DISCURSO)” vinculado ao Programa de Pós-Graduação de Ciências Sociais em Desenvolvimento Agricultura e Sociedade e ao Curso de Relações Internacionais do DDAS/ICHS da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, registrado no CNPq e com apoio de ActionAid Brasil.
[i] LACLAU, Ernesto & MOUFFE, Chantal. Hegemony and socialist strategy: towards a radical democratic politics. London: Verso. 1985. LACLAU, E. A Razão Populista Ed. Três Estrelas, São Paulo, 2013.
[ii] Metodologicamente, ao longo do texto, colocamos em itálico palavras ou significados tanto expressos nas práticas discursivas dos porta-vozes como aquelas que achamos adequadas, em termos de significado, pelo trabalho analítico e que gostaríamos de destacar.
[iii] Disponível em: https://docs.google.com/forms/d/e/1FAIpQLSd-0vtdF0g2rk-IR_EfIl1hLCcRKsavNgHU_Lz2JqOdL8EN7w/viewform
[iv] CORRÊA, Marcello. Reunião de Bolsonaro com pastor e secretário da Receita levanta suspeita de ingerência a favor de igrejas. O Globo, 30 abr. 2020. Disponível em: https://oglobo.globo.com/brasil/reuniao-de-bolsonaro-com-pastor-secretario-da-receita-levanta-suspeita-de-ingerencia-favor-de-igrejas-24403737
[v]DAMASCENO, Márcio. “Brasil é país onde evangélicos mais avançam na política.” Carta Capital, 8 nov. 2018. Disponível em: https://www.cartacapital.com.br/sociedade/brasil-e-pais-onde-evangelicos-mais-avancam-na-politica/
[vi] CNN BRASIL. STF divulga ÍNTEGRA do vídeo da reunião ministerial de 22 de abril. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=TjndWfgiRQQ
[vii] OLIVEIRA, Leone. Arrecadação em igrejas caiu 50% com a pandemia na Grande Vitória. Tribuna Online, 11 ago. 2020. Disponível em: https://tribunaonline.com.br/arrecadacao-em-igrejas-caiu-50-com-a-pandemia-na-grande-vitoria
[viii] Em seu trabalho sobre análises do movimento socialista na Bolívia, Galván faz essa articulação que propomos aqui entre a análise política do discurso e a proposta metodológica de marcos interpretativos. Cf.: GALVÁN, I. E.: La lucha por la hegemonía durante el primer gobierno del MAS en Bolivia (2006-2009): un análisis discursivo. Madrid: Universidad Complutense, tesis de doctorado, 2012. Como outro exemplo, dessa metodologia ver também Paixão e razão: Os discursos políticos na disputa eleitoral de 2018. Jorge O. Romano (Org.) – São Paulo: Veneta, 2018. Disponível em: https://diplomatique.org.br/wp-content/uploads/2019/03/livropaixaoerazao.pdf
[ix] DOCA, Geralda. Em resposta a Bolsonaro, 20 governadores divulgam carta de apoio ao Congresso. O Globo, 19 de abr. 2020. Disponível em: https://oglobo.globo.com/brasil/em-resposta-bolsonaro-20-governadores-divulgam-carta-de-apoio-ao-congresso-24382307
[x] Paul Charles Freston é professor catedrático em religião e política em contexto global, na Balsillie School of International Affairs e na Wilfrid Laurier University, Canadá. Doutor em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas e pós-doutor pela University of Oxford, possui mestrado em Latin American Studies na University of Liverpool e Christian Studies pela Regent College e graduação em História e Antropologia Social pela University of Cambridge.
[xi] FRESTON, Paul. Bolsonaro, o populismo, os evangélicos e América Latina. In: Novo ativismo político no Brasil: os evangélicos do século XXI. Rio de Janeiro: Konrad Adenauer Stiftung, 2020. p. 380 e 381.
[xii] G1. 50% dos brasileiros são católicos, 31%, evangélicos e 10% não têm religião, diz Datafolha. G1, 13 jan. 2020. Disponível em: https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/01/13/50percent-dos-brasileiros-sao-catolicos-31percent-evangelicos-e-10percent-nao-tem-religiao-diz-datafolha.ghtml
[xiii] No dia 4 de maio, a Coalizão Pelo Evangelho assinou o manifesto “Pela Pacificação da Nação em Meio à Pandemia”.
[xiv] SILAS MALAFAIA OFICIAL. [AO VIVO] – ORAÇÃO EM FAVOR DO BRASIL COM A PRESENÇA DO PRESIDENTE BOLSONARO E LÍDERES EVANGÉLICOS. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=Fhn9-bLRxi0
[xv] PRANDI, Reginaldo; PAULINO, Mauro; JANONI, Alessandro. Presidente se afasta de bolsonaristas católicos ao minimizar pandemia, aponta Datafolha. Folha de S.Paulo, 13 abr. 2020. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2020/04/presidente-se-afasta-de-bolsonaristas-catolicos-ao-minimizar-pandemia.shtml
[xvi] ZYLBERKAN, Mariana. Evangélicos devem ultrapassar católicos no Brasil a partir de 2032. VEJA, 4 fev. 2020. Disponível em: https://veja.abril.com.br/brasil/evangelicos-devem-ultrapassar-catolicos-no-brasil-a-partir-de-2032/
[xvii] G1. Menina de 10 anos estuprada pelo tio no Espírito Santo tem gravidez interrompida. G1, 17 ago. 2020. Disponível em: https://g1.globo.com/pe/pernambuco/noticia/2020/08/17/menina-de-10-anos-estuprada-pelo-tio-no-es-tem-gravidez-interrompida.ghtml
[xviii] MACEDO, E.; OLIVEIRA, C. Plano de poder: Deus, os cristãos e a política. Rio de Janeiro:
Thomas Nelson Brasil, 2008. p.123.
[xix] Segundo o Dicionário Online de Português: Próprio do mundo material, por oposição ao mundo espiritual. Dado aos prazeres da carne ou à busca por riquezas e bens materiais.